segunda-feira, 30 de julho de 2012

Quem são os verdadeiros idiotas latino-americanos?



"Os Estados Unidos parecem destinados pela providência a encher a América de miséria em nome da liberdade".
Simón Bolívar (1783-1830), em carta de 5 de agosto de 1829 endereçada a Patrício Campbell.


        Desde outubro de 1820, quando David Jewitt, capitão do corsário Heroína, tomou posse das Malvinas em nome do governo de Buenos Aires, os portenhos exerciam a soberania sobre as ilhas, onde se instalou uma pequena colônia dedicada à criação de ovinos.  Em meados de 1829, foi estabelecida uma guarnição militar, cujo comando coube ao comerciante franco-alemão Louis Vernet.  Ainda naquele ano, Juan José Viamonte, governador da província de Buenos Aires, proibiu a pesca da baleia na região.  Confrontado com a impossibilidade de fazer valer a lei, Juan Manuel Rosas, sucessor de Viamonte, criou em 1831 um imposto a ser pago pelos navios pesqueiros.  Estes últimos, entretanto, continuavam a passar por Puerto Soledad sem recolher um único centavo.  Nesse ínterim, Vernet tomou a iniciativa de apresar três barcos norte-americanos que carregavam peles de foca sem permissão. 

       O incidente resultou em vingança, a 28 de dezembro de 1831.  A fragata Lexington, da marinha dos Estados Unidos, desembarcou em Puerto Soledad, destruiu a artilharia existente no local, queimou a pólvora da guarnição e capturou seis oficiais argentinos.  Rosas instruiu seu ministro Maza a apresentar um protesto formal.  O cônsul norte-americano Slacum e o encarregado de negócios Bayles foram expulsos de Buenos Aires.  Antes de sair, porém, a dupla informou à representação britânica que as ilhas estavam desguarnecidas e poderiam ser tomadas com facilidade.  Um pouco mais tarde, em 2 de janeiro de 1833, a corveta inglesa Clio, comandada por John James Onslow, chegou às Malvinas.  Onslow comunicou ao governador provisório das ilhas, Pinedo, que tinha ordens de ali içar o pavilhão britânico e  expulsar as tropas argentinas.  Sem meios para resistir, Pinedo obedeceu.  O ministro Maza voltou a protestar, sem receber qualquer resposta da parte de Londres.

                                                                       (...)

         Em 1851, quando o Paraguai era presidido por Carlos Antonio López, foi designado cônsul dos Estados Unidos em Assunção Edward A. Hopkins, sócio da empresa United States and Paraguay Navigation, sediada em Rhode Island.  Após tentativas dos norte-americanos de influir nos litígios territoriais entre os países da região e de controlar a navegação no rio Paraná, o governo paraguaio decidiu, em 1854, não ratificar um tratado de comércio e navegação ambicionado pelos Estados Unidos.  A United States and Paraguay Navigation, após ser punida por transgredir a legislação paraguaia, acabou impedida de operar no país.  Hopkins, que brigou com soldados guaranis, foi expulso e passou a atuar sucessivamente junto aos presidentes Pierce e Buchanan como um verdadeiro inimigo do Paraguai. 

         Logo em seguida, o navio Water Witch, da marinha norte-americana, violou uma autorização de trânsito que lhe havia sido concedida e ultrapassou os limites do Paraguai, atingindo o porto matogrossense de Corumbá.  O governo López, então, emitiu um decreto que proibia o ingresso de navios de guerra estrangeiros em águas paraguaias.  Todavia, em fevereiro de 1855, o Water Witch, ignorando a proibição, tentou ultrapassar uma barreira no rio Paraná, em frente ao Forte Itapiru.  Recusando-se os norte-americanos a retroceder, mesmo com os disparos de advertência feitos a partir do forte, os paraguaios alvejaram a embarcação, quebrando-lhe o leme e matando o timoneiro.  Somente nestas condições ocorreu a retirada. 
 
         Respondendo a uma forte campanha na imprensa, o Congresso dos Estados Unidos, em maio de 1857, aprovou o envio ao Paraguai de uma armada de vinte vasos de guerra, com a finalidade de obrigar o governo López a pedir desculpas.  Esta força chegou ao seu destino no começo de 1859.  Incapaz de confrontá-la, López se viu obrigado à rendição, emitiu as desculpas pretendidas e assinou, sob pressão, o tratado de interesse dos Estados Unidos.      

                                                                       (...)

          Os governos do Chile e da Bolívia, em 1872, assinaram um tratado secreto para solucionar suas disputas fronteiriças.  Estava em jogo a exploração, por capitalistas ingleses e chilenos, das ricas jazidas de salitre existentes no litoral boliviano e no sul do vizinho Peru.  Dois anos mais tarde, um acordo suplementar pelo qual a Bolívia se comprometeria a não aumentar os impostos sobre o salitre durante 25 anos foi rejeitado pelo Congresso deste país.  Tropas chilenas, logo em seguida, ocuparam os territórios em que se localizavam as jazidas.  

         Ainda em 1874, a Bolívia assinara com o Peru um tratado de defesa, com o objetivo de impedir que o Chile estabelecesse o domínio sobre a costa pacífica da América do Sul.  O crescimento das hostilidades resultou na Guerra do Pacífico (1879-1883), conflito no qual as disciplinadas forças armadas chilenas estavam destinadas a triunfar facilmente sobre seus adversários.  No Peru, o Partido Civil vitorioso nas eleições de 1872 tinha dissolvido o Exército, constituindo uma Guarda Nacional com vinte batalhões sediados em Lima.  Iniciada a guerra, o presidente Mariano Ignacio Prado deixou o país, sob o pretexto de comprar armas, fato que foi interpretado como uma fuga às custas do Estado.  Assumindo a defesa da capital, Nicolás de Piérola estabeleceu-se como ditador.

        Quando tomaram Lima, os chilenos não sabiam com quem firmar negociações de paz, tamanha a desordem interna peruana.  Um general, Andrés Cáceres, organizou uma força guerrilheira que tanto combatia os chilenos quanto recrutava camponeses para o ataque aos latifundiários.  Estes, por sua vez, pediam ajuda ao exército ocupante para controlar a rebelião e restabelecer o status quo.
 
         Sem desprezar os objetivos da burguesia chilena, Halperin Donghi revela que a Guerra do Pacífico levou os capitalistas europeus (e secundariamente os norte-americanos) a tomarem o partido do Chile. Após a retirada dos chilenos, o governo britânico e seus banqueiros em atividade na região promoveram um verdadeiro saque à economia peruana.  Passaram a cobrar o pagamento de empréstimos no total de 51 milhões de libras esterlinas.  Perdidos os territórios produtores de salitre, decadentes suas reservas de guano e com a agricultura de exportação em má fase, o Peru simplesmente não tinha como pagar.  Foi assinado, então, o Contrato Grace, através do qual o governo peruano cedia aos credores a exploração da malha ferroviária durante 66 anos, aceitava a importação sem ônus das máquinas e materiais necessárias à sua reconstrução e permitia o livre trânsito no lago Titicaca; obrigava-se a entregar três milhões de toneladas de guano, dois milhões de hectares de selva na região do Perené e ainda a pagar 33 prestações de 80 mil libras.  

                                                                    (...)

            A exposição destes episódios já distantes no tempo e pouco conhecidos dos brasileiros não funcionará como introdução a um libelo antiamericano ou antibritânico.  Antes servirá para que lancemos nossas vistas sobre um tipo humano que, sem ser muito original, multiplicou notavelmente sua presença na América Latina a partir da ascensão de Margaret Thatcher e Ronald Reagan aos governos do Reino Unido e dos Estados Unidos.

            Pretendendo-se porta-vozes da modernidade e adeptos do único modelo viável de sociedade, os ditos neoliberais, por vezes chamados de entreguistas pela militância sindical, ou de yuppies quando especialmente fascinados pelo consumo de ponta, pareceram de todo vencedores no início dos anos 90, quando simultaneamente estavam no poder Fernando Collor no Brasil, Carlos Salinas no México e Carlos Menem na Argentina.

            O ideário neoliberal, a grosso modo, consistia em vender as empresas estatais, de preferência para gestores competitivos vindos dos países do Primeiro Mundo, instituir a "livre negociação" de preços e salários, eliminar custos trabalhistas e direitos sociais, reduzir ou mesmo quebrar a influência dos sindicatos e das organizações populares, liberar importações com ou sem contrapartida dos exportadores.  No plano cultural, em promover um alinhamento com o mundo anglo-saxônico, caracterizado pelo individualismo e criador por excelência do regime de livre iniciativa.  Escritores talentosos como o peruano Mario Vargas e o venezuelano Carlos Rangel (este falecido prematuramente em 1988) apresentavam seus conterrâneos de tendência política nacionalista ou esquerdista, ou mesmo as pessoas ligadas a manifestações culturais de inspiração não ocidental, como elementos atrasados, caipiras, possivelmente fadados a desaparecer com a evolução das sociedades da região.

           A rápida mudança para o Paraíso do desenvolvimento, como se sabe, não se concretizou, apesar do entusiasmo de seus profetas.  Um a um, os governantes neoliberais naufragaram entre planos econômicos fracassados, escândalos pessoais e denúncias de saque ao patrimônio público.  Esgotado o modelo, são raros os políticos latino-americanos que se atrevem, em campanha, a declarar-se liberais ou conservadores.  Sem alguns apelos ao distributivismo e à justiça social, ainda que falsos, é impossível, ou quase, o êxito eleitoral.  Isto não significa, obviamente, que a esquerda esteja no melhor dos mundos.  A configuração político-econômica do século XXI, bastante marcada pelos ganhos anteriores da burguesia, materiais e ideológicos, limita o campo de ação dos socialistas de todos os matizes que virtualmente cheguem à chefia de Estados que perderam, em larga margem, poder de decisão.

            Entretanto, mesmo com a crise que se abate sobre os países outrora denominados "centrais", os neoliberais, neocons e yuppies tardios prescrevem a velha receita: alinhamento incondicional, submissão às diretrizes econômicas "metropolitanas", imitação fiel nos terrenos da estética e da cultura.  Quando desprezados, com razão, por vezes cultivam abertamente o saudosismo das defuntas ditaduras.  Têm como referência o Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano, obra de Narlochs e Tios Reis hispânicos.
 
            Convido-os, passando pelas estações que iniciam esta postagem com conexões para muitas outras que podem ser sugeridas, a fazer o inventário da renúncia à autodeterminação de seus respectivos países.  Creio que deste processo emergirão os verdadeiros "verdadeiros idiotas".
                                                           

Referências:

COTLER, Julio.  Peru: classes, Estado e nação.  Brasília: Funag, 2006, pp. 91 a 106.
DONGHI, Tulio Halperin.  História da América Latina.  Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, pp. 158/159. 
PEÑA, Paco.  As intervenções norte-americanas na América Latina.  In: O livro negro do capitalismo/org. Gilles Perrault.  Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 302 a 303.
PIGNA, Felipe.  Los mitos de la historia argentina, vol. 2.  Buenos Aires: Planeta, 2005, pp. 197 a 199. 

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