quarta-feira, 24 de outubro de 2012

ONU prova que a mídia é contra a democracia e a liberdade de expressão


Dica de , no Twitter


A mídia contra a democracia


No caso brasileiro, um verdadeiro “consenso forjado” foi paulatinamente se formando entre os órgãos da mídia desde a chamada “Nova República” (1985), influenciando decisivamente a reversão do modelo econômico brasileiro instalado – embora com transformações – desde os anos 1930.

Os ventos neoliberais e conservadores e o papel da mídia
Refletir sobre o conjunto dos meios de comunicação – a “mídia” – implica mobilizar teorias, conceitos e a história com vistas a caracterizá-los e a compreender seu papel na sociedade capitalista, particularmente no Brasil.
Observando os fenômenos que se desenvolvem desde a década de 1980, percebe-se uma notável guinada conservadora (em termos econômicos, políticos, sociais e ideológicos) em diferentes sociedades, que assim se expressam: desmonte, embora parcial em razão das resistências sociais, do Estado de bem-estar social; revalorização ideológica da “meritocracia”, sintetizada pela ideia mítica do "self made man", desconsiderando-se as estruturas sociais; efetivação de um conjunto de “reformas orientadas para o mercado”, sintetizadas pela ideologia neoliberal, tais como a reforma gerencial do Estado (no que tange a seu núcleo ideológico privado) e os amplos processos de abertura dos mercados nacionais, de privatização e de desnacionalização; ênfase em políticas sociais terceirizadas(à iniciativa privada) e focalizadas em oposição à universalização de direitos; desconfiança quanto à participação popular na tomada de decisões públicas; aproximação da política aos valores religiosos (em alguns casos, em acordo com as tradições da “democracia cristã”), com implicações no papel da família na constituição de políticas públicas; papel crucial, vinculado aos interesses do G7, desempenhado pelas chamadas “agências multilaterais”, tais como o FMI, o BID e o Bird na aplicação concreta dessas políticas nos “países periféricos”;1 fusão e concentração de empresas dos mais distintos setores, o que inclui a própria mídia, criando-se poderosos oligopólios empresariais; extrema liberalização dos mercados financeiros, cujas consequências são sentidas até hoje; entre diversos outros aspectos. Esses são elementos gerais da agenda neoliberal/conservadora que, contudo, foi adotada de formas distintas em cada sociedade específica.
Nenhuma dessas mudanças pode ser compreendida sem o atuante papel da mídia nas mais diversas sociedades. No caso brasileiro, foco deste artigo, um verdadeiro “consenso forjado” foi paulatinamente se formando entre os órgãos da mídia desde a chamada “Nova República” (1985), influenciando decisivamente a reversão do modelo econômico brasileiro instalado – embora com transformações – desde os anos 1930.2
A “era neoliberal e conservadora”, como foram considerados os acontecimentos entre a década de 1980 até o crash de 2008, sem que, mesmo nos dias atuais, tenha sido inteiramente superada, teve e tem nos órgãos da mídia o papel primordial como “aparelho privado de hegemonia”: conceito criado por Antonio Gramsci que sintetiza a atuação desses órgãos como agentes político-ideológicos voltados à organização dos interesses de determinadas classes e segmentos sociais, assim como à formação e vetos das agendas dos governos.
Deve-se notar que, além da referida atuação como aparelho de hegemonia, estruturalmente a mídia privada opera numa zona cinzenta entre os interesses privatistas (dela própria como empresa capitalista que objetiva o lucro) e privados (de grupos sociais e econômicos representados pelos meios de comunicação) e a esfera pública.3 A defesa de interesses privados – notadamente o das classes médias e do capital – no âmbito da esfera pública, lócus em que diversos interesses se contrapõem e onde a ideologia do “bem comum” e do “interesse geral” procuram se colocar ideologicamente acima dos diversos interesses específicos, marca a atuação da mídia. Em outras palavras, são agentes privados que procuram representar o “todo”, o “público”, ocultando seus verdadeiros interesses. Logo, transitam num ambiente nebuloso, porque, além do mais, procuram se legitimar de modo permanente em nome da ideologia da “opinião pública”, conceito fugidio, maleável e marcado fundamentalmente pela opinião de determinados grupos capazes de expressar opiniões específicas, por meio da própria mídia, adquirindo dessa forma o status de “verdade”, pois potencialmente capaz de se tornar dominante. Essa imanente confusão entre as esferas privada e pública define a atuação da mídia, sobretudo no Brasil.
Emergência histórica de direitos versus o modus operandi da mídia no Brasil
Historicamente, a mídia privada nasce e se desenvolve como decorrência da sociedade capitalista, representando os novos segmentos dominantes. Contudo, desde a Revolução Francesa a preocupação com o direito à informação – num contexto do reconhecimento de direitos em sociedades desiguais – constitui fator crucial ao próprio conceito do “Estado de direito democrático”. No artigo 11º da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” da Revolução Francesa, assim é tratado o tema da comunicação: “A livre comunicação dos pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem: todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, embora deva responder pelo abuso dessa liberdade nos casos determinados pela lei”. Já no século XX, após a Segunda Guerra Mundial, a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, em seu artigo 19º, assim define o direito à comunicação: “Todo indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.4 Embora ambas expressem momentos históricos específicos e novas correlações de força (predominância do capitalismo e da filosofia política liberal), as declarações representam ainda hoje marcos no pensamento político, jurídico e filosófico ocidental e são tomadas como balizas para a democratização das sociedades no que tange ao direito à expressão de ideias, à informação e à comunicação. Em outras palavras, exprimem a lógica da “democracia liberal” em termos políticos.
Essa tradição “liberal-democrática” tem sido, no Brasil, reiteradamente contrastada, uma vez que o sistema midiático organizado pela ditadura militar instaurada em 1964 não foi essencialmente transformado. Cerca de onze famílias controlam, mesmo depois da redemocratização, um número incrivelmente grande de meios e modalidades (legais e “cruzadas”) de comunicação, acarretando um conjunto de poderes que se opõe aos pressupostos teórico-filosóficos tanto da democracia quanto do próprio “liberalismo democrático”.
Vejamos algumas dessas consequências concretas no Brasil: 
a) o sistema de concessão e renovação das concessões de rádios e TVs é controlado politicamente pelo Congresso Nacional, e parcelas dos parlamentares são também proprietárias desses meios, processo que implica simultaneamente brutal intransparência decisória, promiscuidade política entre detentores de meios de comunicação e do poder político e descumprimento de normas constitucionais que regulam a comunicação;5 

b) majoritariamente, a mídia brasileira é privada e comercial, isto é, há ainda poucos meios estatais, e os comunitários foram apropriados fartamente por igrejas que se confundem com empreendimentos empresariais, impondo às diversas faces do país (estético-cultural, racial, regional e política etc.) a não representação de seus universos simbólicos na mídia. Quem se informa apenas pelos grandes veículos de comunicação privados (jornais, revistas, rádios, TVs e mesmo os grandes portais da internet vinculados a esses meios) tem visão parcial e relativamente homogênea do país, em contraste à sua enorme diversidade; 

c) a seletividade de suas coberturas, isto é, por razões políticas conjunturais (o que inclui apoios e vetos partidários e eleitorais), ideológicas ou relacionadas a interesses que defendem, questões e problemas ou não retratados ou retratados com ênfases completamente distintas. Exemplos marcantes referem-se à omissão das coberturas das mazelas do processo de privatização durante os governos Collor e FHC, assim como dos escândalos “não investigados” pela mídia em relação a este último: casos da “emenda da reeleição”, do “Banestado”, entre tantos outros, em contraste à sanha investigativa nos governos Lula. No caso deste, o chamado escândalo do “mensalão” é retratado como inédito na vida política brasileira (forma e conteúdo) e, mais ainda, como o “mais sórdido” já produzido “por um partido político”. É curioso como toda a lógica privatizante, no sentido de predominância de interesses privados, do sistema político brasileiro (casos do financiamento privado, notadamente extralegal de campanhas, do multipartidarismo extremamente flexível que leva à necessidade de coligações para vencer e governar, com toda sorte de barganhas, e da facilidade em criar e fundir partidos, entre outros aspectos) é desconsiderada em nome da acusação de um agrupamento político. A seletividade é, portanto, política, ideológica e editorial, e marca decisivamente o modus operandi da mídia brasileira desde os anos 1940. Deve-se observar, dessa forma, o contraste entre a cantilena – professada pelos meios de comunicação, pelos “liberais” e pelos crentes da “sociedade civil” liberal – de que a mídia pratica um “jornalismo investigativo”, por sua vez crucial e pressuposto à democracia.6 
Embora na democracia deva haver liberdade de fiscalizar e mesmo de investigar algo ou alguém por qualquer pessoa ou instituição, sua legalidade e legitimidade estão sujeitas essencialmente à contestação, à revisão e à aceitação ou não do poder público como “provas válidas”. Por isso, aceitar a mídia como agente de investigação, sem mediações conceituais e proteção aos envolvidos, como o direito de resposta, por exemplo, implica conceber um poder paralelo ao Estado, portanto contrário ao caráter monopolista deste; poder esse que, reitere-se, é constituído por e dirigido a interesses privados e voltados à conservação do status quo. Apesar dessas características, a ideologia da “neutralidade”, da “independência”, do “apartidarismo” (lato e estrito) e da busca pelo “bem comum” faz parte da retórica “pública” desses agentes político-ideológicos privados, que erigem estratégias retóricas como “opinião pública”, “liberdade de expressão”, “defesa da sociedade”, “sentimento nacional”, entre tantos outros, para se legitimar.
A democratização do sistema midiático como pressuposto à democracia no Brasil7
O conjunto dos aspectos analisados neste artigo leva à conclusão de que não haverá democracia sem a reforma democratizante do sistema midiático, desconcentrando-se sua propriedade, revendo-se o processo de concessão e renovação, permitindo-se, por meios político-institucionais, que vozes distintas e plurais tenham acesso à comunicação e à informação, entre inúmeras outras bandeiras levantadas, por exemplo, pelos movimentos sociais em prol da democratização da comunicação, tais como o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC – www.fndc.org.br).8
Deve-se ressaltar que a democracia é concebida como um sistema político garantidor de direitos individuais e coletivos amplos e diversos, entre os quais os vinculados à manifestação de interesses e de opiniões, o que implica a possibilidade de pessoas e grupos se comunicarem e se informarem por meios distintos, garantindo a pluralidade de pontos de vista de uma dada sociedade.
O conservadorismo político (pressão pela diminuição dos direitos sociais e da participação popular nas decisões públicas), econômico-financeiro (a adesão maciça à agenda neoliberal “orientada para o mercado”), simbólico-comportamental (ênfase na meritocracia individual em detrimento de direitos coletivos), entre outras formas de manifestação da agenda conservadora mundial e brasileira, teve e tem na mídia um ator político-ideológico que vem atuando de forma uníssona em favor do retrocesso político e social.
O sistema midiático brasileiro, constituído por órgãos privados, comerciais, partidários(em sentido lato e/ou estrito), sem freios e contrapesos, elitizados e oligopolizados, tem contribuído fortemente para o retardo da democracia brasileira, que, quando comparada a outras sociedades, tem muito a se desenvolver.9 A experiência histórica permite afirmar que tais órgãos atuam conservadoramente contra a democracia!
Francisco Fonseca é mestre em Ciência Política e doutor em História, professor de Ciência Política na FGV-SP e autor de diversos artigos e livros, entre os quais O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil (2005) e Liberalismo autoritário – Discurso liberal e práxis autoritária na imprensa brasileira (2011), ambos pela Editora Hucitec.
** Publicado originalmente no site Le Monde Diplomatique Brasil.
Nota:
1 O caso da privatização da água – inclusive da chuva – na Bolívia, por pressão dos bancos multilaterais, o que gerou a famosa “revolta das águas de Cochabamba”, é sintomático. Ver www.youtube.com/watch?v=aTKn17uZRAE.
2 Analisei a construção desse “consenso” e o intitulei como “forjado”, uma vez que se tornou hegemônico, no livro O consenso forjado – A grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil, Hucitec, São Paulo, 2005.
3 Esfera pública é uma terminologia polissêmica e controvertida, tendo em vista os pressupostos adotados por matrizes teóricas distintas. O marxismo nega esse conceito.
4 O artigo 19 dessa declaração inspirou a criação da ONG Article 19: http://www.article19.org/, também presente no Brasil: artigo19.org.
5 Particularmente o descumprimento e/ou não regulamentação dos artigos 220 (proibição de monopólios), 221 (exigências para programação) e 223 (complementaridade entre os sistemas público, privado e estatal) da Constituição Federal. Esse quadro levou recentemente à constituição de blogs e fóruns digitais alternativos que se contrapõem aos órgãos da grande mídia, que é chamada, criativa e sintomaticamente por esses blogs, de “PIG”: Partido da Imprensa Golpista. Já na Argentina foi aprovada há pouco tempo a importante Ley de Medios, que democratiza o sistema midiático: www.argentina.ar/_es/pais/nueva-ley-de-medios/C2396-nueva-ley-de-medios-punto-por-punto.php.
6 Deve-se ressaltar, além do mais, que o papel de investigar é prerrogativa do Estado, cujas funções são conferidas pela Constituição à luz do conceito maior do Estado de direito democrático, por meio de instituições oficiais e impessoais, tais como, no plano federal, o Ministério Público (no âmbito criminal e de direitos difusos), a Corregedoria Geral da União (quanto à fiscalização de verbas e contratos federais), a Polícia Federal (no tocante a crimes federais, de naturezas diversas) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), relacionado à fiscalização de movimentações financeiras. A lógica do Estado democrático, baseada nos controles internos e externos, que constam do direito constitucional e administrativo, e, mais modernamente, no chamado “controle social” (da sociedade politicamente organizada perante o Estado e mesmo perante entidades privadas, como a mídia), são os instrumentos de investigação e fiscalização nos quais cada sociedade deve se fiar.
7 O mundo digital (possibilidades abertas pela internet e pelas redes sociais) não é, até o momento, significativamente distinto dos meios tradicionais aqui analisados, pois, sobretudo no Brasil, os portais são dominados pelas mesmas empresas de comunicação tradicionais; o acesso ao mundo digital é reduzido, comparativamente à população, e localizado nas classes médias; além de a utilização, pela maior parte dos usuários, concentrar-se em fins interpessoais e de entretenimento.
8 Ver também outros movimentos que lutam pela democratização da mídia: http://www.comunicacaodemocratica.org.br/, http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/, http://www.direitoacomunicacao.org.br/, http://www.intervozes.org.br/, http://www.cartamaior.com.br/ e http://www.tver.org.br/. A agenda da comunicação democrática é ampla e inclui acesso digital (equipamentos, combate ao analfabetismo digital, gratuidade da banda larga etc.), entre inúmeras outras bandeiras: todas fundamentais, sobretudo aos mais pobres e excluídos na sociedade brasileira.
9 Elaborei reflexões teóricas e empíricas acerca de uma agenda de reforma da mídia no Brasil, comparativamente a outros países: “Mídia e poder: interesses privados na esfera pública e alternativas para sua democratização”. In: Fábio de Sá e Silva et al. (orgs.), Estado, instituições e democracia: democracia, Brasília, Ipea, 2010, Livro 9, v.2. 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O referendum islandês e os silêncios da mídia


Extraído do Carta Maior


Os cidadãos da Islândia referendaram, ontem, com cerca de 70% dos votos, o texto básico de sua nova Constituição, redigido por 25 delegados, quase todos homens comuns, escolhidos pelo voto direto da população, incluindo a estatização de seus recursos naturais.

Os cidadãos da Islândia referendaram, ontem, com cerca de 70% dos votos, o texto básico de sua nova Constituição, redigido por 25 delegados, quase todos homens comuns, escolhidos pelo voto direto da população, incluindo a estatização de seus recursos naturais. A Islândia é um desses enigmas da História. Situada em uma área aquecida pela Corrente do Golfo, que serpenteia no Atlântico Norte, a ilha, de 103.000 qm2, só é ocupada em seu litoral. O interior, de montes elevados, com 200 vulcões em atividade, é inteiramente hostil – mas se trata de uma das mais antigas democracias do mundo, com seu parlamento (Althingi) funcionando há mais de mil anos. Mesmo sob a soberania da Noruega e da Dinamarca, até o fim do século 19, os islandeses sempre mantiveram confortável autonomia em seus assuntos internos.

Em 2003, sob a pressão neoliberal, a Islândia privatizou o seu sistema bancário, até então estatal. Como lhes conviesse, os grandes bancos norte-americanos e ingleses, que já operavam no mercado derivativo, na espiral das subprimes, transformaram Reykjavik em um grande centro financeiro internacional e uma das maiores vítimas do neoliberalismo. Com apenas 320.000 habitantes, a ilha se tornou um cômodo paraíso fiscal para os grandes bancos.

Instituições como o Lehman Brothers usavam o crédito internacional do país a fim de atrair investimentos europeus, sobretudo britânicos. Esse dinheiro era aplicado na ciranda financeira, comandada pelos bancos norte-americanos. A quebra do Lehman Brothers expôs a Islândia que assumiu, assim, dívida superior a dez vezes o seu produto interno bruto. O governo foi obrigado a reestatizar os seus três bancos, cujos executivos foram processados e alguns condenados à prisão.

A fim de fazer frente ao imenso débito, o governo decidiu que cada um dos islandeses – de todas as idades - pagaria 130 euros mensais durante 15 anos. O povo exigiu um referendum e, com 93% dos votos, decidiu não pagar dívida que era responsabilidade do sistema financeiro internacional, a partir de Wall Street e da City de Londres.

A dívida externa do país, construída pela irresponsabilidade dos bancos associados às maiores instituições financeiras mundiais, levou a nação à insolvência e os islandeses ao desespero. A crise se tornou política, com a decisão de seu povo de mudar tudo. Uma assembléia popular, reunida espontaneamente, decidiu eleger corpo constituinte de 25 cidadãos, que não tivessem qualquer atividade partidária, a fim de redigir a Carta Constitucional do país. Para candidatar-se ao corpo legislativo bastava a indicação de 30 pessoas. Houve 500 candidatos. Os escolhidos ouviram a população adulta, que se manifestou via internet, com sugestões para o texto. O governo encampou a iniciativa e oficializou a comissão, ao submeter o documento ao referendum realizado ontem.

Ao ser aprovado ontem, por mais de dois terços da população, o texto constitucional deverá ser ratificado pelo Parlamento.

Embora a Islândia seja uma nação pequena, distante da Europa e da América, e com a economia dependente dos mercados externos (exporta peixes, principalmente o bacalhau), seu exemplo pode servir aos outros povos, sufocados pela irracionalidade da ditadura financeira.

Durante estes poucos anos, nos quais os islandeses resistiram contra o acosso dos grandes bancos internacionais, os meios de comunicação internacional fizeram conveniente silêncio sobre o que vem ocorrendo em Reykjavik. É eloqüente sinal de que os islandeses podem estar abrindo caminho a uma pacífica revolução mundial dos povos.


Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.

domingo, 21 de outubro de 2012

Economistas da Unicamp lançam Manifesto em Defesa da Civilização




São Paulo - Diante do quadro de regressão social que atinge os países ditos desenvolvidos, com supressão progressiva de direitos, um grupo de economistas formados pela Unicamp decidiu elaborar um "Manifesto em Defesa da Civilização". Assinaturas começaram a ser colhidas também pelo site Petição Pública e a iniciativa se espalhou. O documento pergunta:

Estamos nós, hoje, vivendo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? E se isso for verdade: quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão? 

Segue a íntegra do manifesto:

MANIFESTO EM DEFESA DA CIVILIZAÇÃO

Vivemos hoje um período de profunda regressão social nos países ditos desenvolvidos. A crise atual apenas explicita a regressão e a torna mais dramática. Os exemplos multiplicam-se. Em Madri uma jovem de 33 anos, outrora funcionária dos Correios, vasculha o lixo colocado do lado de fora de um supermercado. Também em Girona, na Espanha, diante do mesmo problema a Prefeitura mandou colocar cadeados nas latas de lixo. O objetivo alegado é preservar a saúde das pessoas. 

Em Atenas, na movimentada Praça Syntagma situada em frente ao Parlamento, Dimitris Christoulas, químico aposentado de 77 anos, atira contra a própria cabeça numa manhã de quarta-feira. Na nota de suicídio ele afirma ser essa a única solução digna possível frente a um Governo que aniquilou todas as chances de uma sobrevivência civilizada. Depois de anos de precários trabalhos temporários o italiano Angelo di Carlo, de 54 anos, ateou fogo a si próprio dentro de um carro estacionado em frente à sede de um órgão público de Bologna. 

Em toda zona do euro cresce a prática medieval de anonimamente abandonar bebês dentro de caixas nas portas de hospitais e igrejas. A Inglaterra do Lord Beveridge, um dos inspiradores do Welfare State, vem cortando recorrentemente alguns serviços especializados para idosos e doentes terminais. Cortes substantivos no valor das aposentadorias e pensões constituem uma realidade cada vez mais presente para muitos integrantes da chamada comunidade europeia. Por toda a Europa, museus, teatros, bibliotecas e universidades públicas sofrem cortes sistemáticos em seus orçamentos. Em muitas empresas e órgãos públicos é cada vez mais comum a prática de trabalhar sem receber. Ainda oficialmente empregado é possível, ao menos, manter a esperança de um dia ter seus vencimentos efetivamente pagos. Em pior situação está o desempregado. Grande parte deles são jovens altamente qualificados. 

A massa crescente de excluídos não é um fenômeno apenas europeu. O mesmo acontece nos EUA. Ali, mais do que em outros países, a taxa de desemprego tomada isoladamente não sintetiza mais a real situação do mercado de trabalho. A grande maioria daqueles que hoje estão empregados ocupam postos de trabalhos precários e em tempo parcial concentrados no setor de serviços. Grande parte dos postos mais qualificados e de melhor remuneração da indústria de transformação foram destruídos pela concorrência chinesa. 

Nesse cenário, a classe média vai sendo espremida, a mobilidade social é para baixo e o mercado de trabalho vai ficando cada vez mais polarizado no país das oportunidades. No extremo superior, pouquíssimos executivos bem remunerados que têm sua renda diretamente atrelada ao mercado financeiro. No extremo inferior, uma massa de serviçais pessoais mal pagos sem nenhuma segurança, que vivem uma realidade não muito diferente dos mais de 100 milhões que recebem algum tipo de assistência direta do Estado. O Welfare State, ao invés de se espalhar pelo planeta, encampando as tradicionais hordas de excluídos, encolhe, aumentando a quantidade de deserdados. 

Muitos dirão que essa situação será revertida com a suposta volta do crescimento econômico e a retomada do investimento na indústria de transformação nestes países. Não é verdade. É preciso aceitar rapidamente o seguinte fato: no capitalismo, o inevitável avanço do progresso tecnológico torna o trabalho redundante. O exponencial aumento da produtividade e da produção industrial é acompanhado pela constante redução da necessidade de trabalhadores diretos. Uma vez excluídos, reincorporam-se – aqueles que o conseguem – como serviçais baratos dentro de um circuito de renda comandado pelos detentores da maior parcela da riqueza disponível. Por isso mesmo, a crescente desigualdade de renda é funcional para explicar a dinâmica desse mercado de trabalho polarizado. 

Diante desse quadro, uma pergunta torna-se inevitável: estamos nós, hoje, vivendo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? E se isso for verdade: quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão? 

A angústia torna-se ainda maior quando constatamos que as possibilidades de conforto material para a grande maioria da população deste planeta são reais. É preciso agradecer ao capitalismo, e ao seu desatinado desenvolvimento, pela exuberância de riqueza gerada. Ele proporcionou ao homem o domínio da natureza e uma espantosa capacidade de produzir em larga escala os bens essenciais para as satisfações das necessidades humanas imediatas. Diante dessa riqueza, é difícil encontrar razões para explicar a escassez de comida, de transporte, de saúde, de moradia, de segurança contra a velhice, etc. Numa expressão, escassez de bem estar! 

Um bem estar que marcou os conhecidos “anos dourados” do capitalismo. A dolorosa experiência de duas grandes guerras e da depressão pós 1929, nos ensinou que deveríamos limitar e controlar as livres forças do mercado. Os grilhões colocados pela sociedade na economia explicam quase 30 anos de pleno emprego, aumento de salários e lucros e, principalmente, a consolidação e a expansão do chamado Estado de Bem Estar Social. Os direitos garantidos pelo Estado não deveriam ser apenas individuais, mas também coletivos. Vale dizer: sociais. Dessa maneira, ao mesmo tempo em que o direito à saúde, à previdência, à habitação, à assistência, à educação e ao trabalho eram universalizados, milhares de empregos públicos de médicos, enfermeiras, professores e tantos outros eram criados. 

O Welfare State não pode ser interpretado como uma mera reforma do capitalismo, mas sim como uma grande transformação econômica, social e política. Ele é, nesse sentido, revolucionário. Não foi um presente de governos ou empresas, mas a consequência de potentes lutas sociais que conseguiram negociar a repartição da riqueza. Isso fica sintetizado na emergência de um Estado que institucionalizou a ética da solidariedade. O individuo cedeu lugar ao cidadão portador de direitos. No entanto, as gerações que cresceram sob o manto generoso da proteção social e do pleno emprego acabaram por naturalizar tais conquistas. As novas e prósperas classes médias esqueceram que seus pais e avós lutaram e morreram por isso. Um esquecimento que custa e custará muito caro às gerações atuais e futuras. Caminhamos para um Estado de Mal Estar Social! 

Essa regressão social começou quando começamos a libertar a economia dos limites impostos pela sociedade, já no início dos anos 70. Sob o ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e da competição, a ética da solidariedade foi substituída pela ética da concorrência ou do desempenho. É o seu desempenho individual no mercado que define sua posição na sociedade: vencedor ou perdedor. Ainda que a grande maioria das pessoas seja perdedora e não concorra em condições de igualdade, não existem outras classificações possíveis. Não por acaso o principal slogan do movimento Occupy Wall Street é “somos os 99%”. Não por acaso, grande parte da população espanhola está indignada. 

Mesmo em um país como o Brasil, a despeito dos importantes avanços econômicos e sociais recentes, a outrora chamada “dívida social” ainda é enorme e se expressa na precariedade que assola todos os níveis da vida nacional. Não se pode ignorar que esses caminhos tomados nos países centrais terão impactos sob essa jovem democracia que busca, ainda, universalizar os direitos de cidadania estabelecidos nos meados do século passado nas nações desenvolvidas.

Como então acreditar que precisamos escolher entre o caos e austeridade fiscal dos Estados, se essa austeridade é o próprio caos? Como aceitar que grande parte da carga tributária seja diretamente direcionada para as mãos do 1% detentor de carteiras de títulos financeiros? Por que a posse de tais papéis que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza gerada pela totalidade da sociedade ganham preeminência diante das necessidades da vida dos cidadãos? Por que os homens do século XXI submetem aos ditames do ganho financeiro estéril o direito ao conforto, à educação e à cultura? 

As respostas para tais questões não serão encontradas nos meios de comunicação de massa. Os espaços de informação e de formação da consciência política e coletiva foram ocupados por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das banalidades. É mais importante perguntar o que o sujeito comeu no café da manhã do que promover reflexões sobre os rumos da humanidade. 

A civilização precisa ser defendida! As promessas da modernidade ainda não foram entregues. A autonomia do indivíduo significa a liberdade de se auto-realizar. Algo impensável para o homem que precisa preocupar-se cotidianamente com sua sobrevivência física e material. Isso implica numa selvageria que deveria ficar restrita, por exemplo, a uma alcateia de lobos ferozes. Ao longo dos últimos de 200 anos de história do capitalismo, o homem controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a sobrevivência e o bem estar de toda a população do planeta. Isso não pode ficar restrito para uma ínfima parte. Mesmo porque, o bem estar de um só é possível quando os demais à sua volta encontram-se na mesma situação. Caso contrário, a reação é inevitável, violenta e incontrolável. A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro. É preciso colocar novamente em movimento as engrenagens da civilização. 

Assinaturas

DAVI DONIZETI DA SILVA CARVALHO
EDUARDO FAGNANI
CAMILA LINHARES TEIXEIRA
CLAUDIO LEOPOLDO SALM
MILTON LAHUERTA
EDSON CORREA NUNES
MIRIAM DOMINGUES
WILMA PERES COSTA
NEIRI BRUNO CHIACHIO
NATÁLIA MINHOTO GENOVEZ
PEDRO GILBERTO ALVES DE LIMA
SAMIRA KAUCHAKJE
FABIO DOMINGUES WALTENBERG
ALICIA UGÁ
JULIANO SANDER MUSSE
AMÉLIA COHN
LIGIA BAHIA
MAGDA BARROS BIAVASCHI
FABRÍCIO AUGUSTO DE OLIVEIRA
ANTONIO CARLOS ROCHA
RODRIGO PEREYRA DE SOUSA COELHO
GABRIEL QUELHAS DE ALMEIDA
MARIENE GONÇALVES TUNG
AMILTON MORETTO
ANA AURELIANO SALM
MARCIO SOTELO FELIPPE
FREDERICO MAZZUCCHELLI
CELIO HIRATUKA
EDUARDO BARROS MARIUTTI
ANGELA MOULIN SIMÓES PENALVA SANTOS
ANGELA MARIA CARVALHO BORGES
JOÃO MIRANDA SILVA FAGNANI
RODOLFO AURELIANO SALM
EVA LUCIA SALM
ÉDER LUIZ MARTINS
FERNANDA MAZZONI DE OLIVEIRA
MICHELLE MAUREN DOVIGO CARVALHO
FELIPE LARA CIOFFI
ALOISIO SERGIO ROCHA BARROSO
RONEY MENDES VIEIRA
NAIRO JOSÉ BORGES LOPES
MARIA FERNANDA CARDOSO DE MELO
WILSON CANO
NEREIDE SAVIANI -
FREDERICO LOPES NETO
MARIA DE FÁTIMA BARBOSA ABDALLA
BRANCA JUREMA PONCE
LUIZ GONZAGA DE MELLO BELLUZZO
ALAN GUSMÃO SILVA
JOSE ANTONIO MORONI
VANESSA CRISTINA DOS SANTOS
JOSÉ CLAUDINEI LOMBARDI
EDSON DONIZETTI XAVIÉR DE MIRANDA
MARIA EDUARDA PAULA BRITO DE PINA
MARIA DE FATIMA FELIX ROSAR
CÁSSIA HACK
DERMEVAL SAVIANI
ROBSON SANTOS DIAS
RODRIGO TAVORA GADELHA
JORGE LUIZ ALVES NATAL
LUCIANO VIANNA MUNIZ
ALUIZIO FRANCO MOREIRA
MARISE VIANNA MUNIZ
JURACI COLPANI
ALESSANDRO CESAR ORTUSO
GENILDO SIQUEIRA
CARLOS EDUARDO DE FARIAS
CARLOS ALONSO BARBOSA DE OLIVEIRA
JOSE DAMIRO DE MORAES
FERNANDO MOREIRA MORATO
CELSO JOÃO FERRETTI
SILVIA ESCOREL DE MORAES
DANIEL ARIAS VAZQUEZ
EVERTON DAB DA SILVA
JOÃO GABRIEL BARRETO SILVA ROCHA
CELSO EUGÊNIO BRETA FONTES
SARAH ESCOREL
VINICIUS GASPAR GARCIA
DENIS MARACCI GIMENEZ
DENISE DO CARMO SILVA PEREIRA
JEFFERSON CARRIELLO DO CARMO -
VAGNER SILVA DE OLIVEIRA
GABRIEL PRIOLLI
JÉSSICA MARCON DALCOL
MARINA VENÂNCIO GRANDOLPHO
PEDRO HENRIQUE DE MELLO LULA MOTA
DANIEL SANTIAGO MOREIRA
VANESSA MORAES LUGLI
SANDRA MARIA DA SILVA LIMA
CARLOS RAFAEL LONGO DE SOUZA
MARIA SILVIA POSSAS
LUCIANA RAMIREZ DA CRUZ
CAROLINA PIGNATARI MENEGHEL
PEDRO DOS SANTOS PORTUGAL JÚNIOR
JOSÉ AUGUSTO GASPAR RUAS
WELLINGTON CASTRO DOS SANTOS
ALESSANDRO FERES DURANTE
DANIEL HERRERA PINTO
PEDRO HENRIQUE VERGES
DAVI JOSÉ NARDY ANTUNES
CARLA CRISTIANE LOPES CORTE
CARLOS ALBERTO DRUMMOND MOREIRA
DANIEL DE MATTOS HÖFLING
MARCELO WEISHUPT. PRONI
ENIO PASSIANI
JOSÉ DARI KREIN
ANSELMO LUIS DOS SANTOS
FABIO EDUARDO IADEROZZA
HIGOR FABRÍCIO DE OLIVEIRA
DANER HORNICH
HELDER DE MELO MORAES
JOSE EDUARDO DE SALLES ROSELINO JUNIOR
JULIANA PINTO DE MOURA CAJUEIRO
FERNANDO CATALANI
FERNANDA PIM NASCIMENTO SERRALHA
LEANDRO PEREIRA MORAIS
MARCELO PRADO FERRARI MANZANO
OLIVIA MARIA BULLIO MATTOS
RENATO BROLEZZI
LUCAS JANNONI SOARES
MÁRCIO SAMPAIO DE CASTRO
MARIA PINON PEREIRA DIAS
LUIZ MORAES DE NIEMEYER NETO
RODRIGO COELHO SABBATINI
LÍCIO DA COSTA RAIMUNDO
FERES LOURENÇO KHOURY

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Crônica da morte anunciada do PSDB


“Os tucanos chegam a esta eleição jogando toda a sua sobrevivência em São Paulo, com o grave risco de, se perderem, ter decretada sua desaparição política”


Faltando doze dias para o 2º turno das eleições para a prefeitura de Sampa, e somente após críticas massivas pela omissão, o tucano José Serra aveccorreligionários (leia-se comparsas) lançou esta semana, numa livraria da cidade, seu programa de governo. Segundo editorial da Carta Maior, o evento foi na verdade uma espécie de “programa de lazer tucano”, uma encenação de seriedade para ser filmada e tapar buraco na propaganda eleitoral.
A contrapelo das pesquisas e do elevado teor de hipocrisia de um candidato que, após criticar a cartilha anti-homofóbica idealizada pelo MEC, foi obrigado a admitir que, em 2009, quando governador de SP, distribuiu material idêntico na rede estadual – ambos produzidos pela mesma ONG, a Ecos – Serra exerceu sua especialidade: a simulação.
A propósito do exercício supostamente democrático de “discutir a cidade com os cidadãos”, suas propostas mal-ajambradas – afetando um falso rigor técnico e ocultando metas, custos, recursos e a probabilidade de cumpri-las – se resumem a apenas um item, assim descrito pela insuspeita UOL: “Em um dos poucos momentos em que dedicou sua fala às suas propostas, Serra lembrou a promessa de construir 30 AMAs (Assistência Médica Ambulatorial). ‘Mas não a ponto de detalhar onde vamos fazer’ (ressalvou). ‘Isso seria impossível (sic). Mas tem o compromisso”(????????).
Planejamento incrível! Um compromisso exemplar com o eleitor!
A propósito e quase na mesma pauta, ressalto aqui o artigo dessa semana de Emir Sader, “Os tucanos do começo ao fim”, plenamente sintonizado com o que vem repisando esta colunista há séculos. Observa Emir que “os tucanos nasceram de forma contingente na política brasileira, apontaram para um potencial forte, tiveram sucesso por via que não se esperava, decaíram com grande rapidez e agora chegam a seu final”.
Mas ele mata a cobra e mostra o pau, prosseguindo com sua retrospectiva política ao relatar que os tucanos nasceram de setores descontentes do PMDB, sobretudo de Sampa, sob o domínio de Orestes Quércia (de triste memória), tentaram a eleição de Antonio Ermírio de Morais, em 1986, pelo PTB, mas Quércia os derrotou. Daí articularam-se para sair do PMDB e formar um novo partido que, apesar de contar com Franco Montoro, um democrata–cristão histórico, optou pela sigla da social- democracia e escolheu o símbolo do tucano para dar-lhe um toque de brasilidade, isto é, made in Brazil.
Assim como os macacos, as araras, as cobras, abacaxis e bananas devidamente incorporados ao nosso Inconsciente Colonial e a nunca por demais esquecida Carmem Miranda: yes, nós temos tudo isso.
O grupo, essencialmente paulista, foi incorporando alguns dirigentes nacionais como Tasso Jereissati, Álvaro Dias, Artur Virgilio, entre outros. Mas o núcleo central sempre foi paulista – Mario Covas, Franco Montoro, FHC. A candidatura de Covas à presidência foi sua primeira aparição pública nacional. Oculto atrás do perfil de candidatos como Collor, Lula, Brizola, Ulysses Guimarães, Covas tentou encontrar seu nicho com um lema que já apontava para o que definiria os tucanos – “Por um choque de capitalismo”.
A propósito de choques, não deixar de ler A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo de desastre, de Naomi Klein, Rio, Nova Fronteira, 2008. Esgota o assunto e elucida de uma vez por todas a doutrina e a prática política do tucanato.
O segundo capítulo da sua definição ideológica inscreveu-se a partir do namoro com o governo Collor, concretizando a entrada de alguns tucanos no governo – Celso Lafer, Sergio Paulo Rouanet: revelava-se a fascinação que a “modernização neoliberal” exercia sobre os tucanos. O veto de Covas impediu que os tucanos fizessem o segundo movimento, isto é, o ingresso formal no governo Collor – o que os teria feito naufragar com o impeachment e talvez tivesse fechado seu caminho posterior para a presidência, via FHC.
Mas o modelo que definitivamente eles seguiram veio da Europa: da conversão ideológica e política dos socialistas franceses de Mitterrand e do governo de Felipe Gonzalez na Espanha. Como corrente ideológica, esta social-democracia (que já não era mais social e muito menos democracia) optava pela adesão ao neoliberalismo, lançado inicialmente pela direita tradicional européia até ser abraçado pelas elites latino-americanas. Aliás, na AL ocorreu um fenômeno similar: introduzido por Pinochet sob ditadura militar, o modelo foi recebendo adesões de correntes originariamente nacionalistas – o MNR da Bolívia, o PRI do México, o peronismo da Argentina – e de correntes social democratas – o Partido Socialista do Chile, a Ação Democrática da Venezuela, o Apra do Peru, o PSDB do Brasil.
Na década de 90, como outros governantes de correntes neoliberais – a exemplo de Menem (Argentina), Carlos Andres Peres (Venezuela), Ricardo Lagos (Chile), Salinas de Gortari (México) – no Brasil, os tucanos puderam chegar à presidência, porquanto a América Latina se transformava na região do mundo com governos neoliberais em suas modalidades mais truculentas.
O programa do FHC foi apenas uma triste adaptação ancilar do mesmo programa ao qual o FMI engessou todos os países da periferia em geral, e a América Latina em particular. Ao adotá-lo, o FHC reciclava definitivamente seu partido a ocupar o lugar no centro do bloco de direita no Brasil, uma vez que os partidos de origem na ditadura – PFL, PP – tinham se esgotado. Quando Collor foi derrubado, Roberto Marinho disse que a direita não voltaria jamais a eleger um candidato seu, dando a entender que teriam que buscar alguém fora de suas fileiras – o que ocorreu com FHC.
A princípio, sua gestão teve o mesmo “sucesso espetacular” que os demais governos neoliberais da América Latina no primeiro mandato: privatizações, corte de recursos públicos, desregulamentações, abertura acelerada do mercado interno, flexibilização laboral. Contava com 3/5 do Congresso e com o apoio em coro da mídia. Também como outros governos, mudou a Constituição para ter um segundo mandato. E da mesma forma que outros, conseguiu ser reeleger já com dificuldades, porque seu governo havia mergulhado a economia numa profunda e prolongada recessão.
Negociou de novo com o FMI, foi se desgastando cada vez mais, uma vez que a estabilidade monetária não levou à retomada do crescimento econômico, nem à melhoria da situação da massa da população e acabou banido, sem apoio, vendo seu candidato derrotado.
Sader sentencia: “Aí os tucanos já tinham vivido e desperdiçado seu momento de glória. Estavam condenados a derrotas e à decadência. Se apegaram a São Paulo, seu núcleo original, de onde fizeram oposição, muito menos como partido – debilitado e sem filiados – e mais como apêndice pautado e conduzido pela mídia privada.
Derrotado três vezes sucessivas para a presidência, perdendo cada vez mais espaços nos estados, o PSDB chega a esta eleição aferrado à prefeitura de São Paulo, onde as brigas internas levaram à eleição dum aliado com péssimo desempenho.”
No caso, o nunca por demais rejeitadíssimo Kassab (meus sais!). Assim, os tucanos chegam a esta eleição jogando toda a sua sobrevivência em São Paulo, com o grave risco de, se perderem, ter decretada sua desaparição política. Até porque ninguém acredita em Aécio como candidato com possibilidades reais à presidência. E Alckmin, ainda menos.
Concluo, repetindo, mais uma vez, o meu “delenda Cartago”: PSDB, requiescat in pace.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A censura disfarçada



(*) Publicado originalmente no Observatório da Imprensa. Texto de referência para palestra proferida na abertura do seminário “A Censura em Debate” promovido pelo Núcleo de Pesquisas em Comunicação e Censura (NPCC) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2 a 5 de outubro de 2012.

1.

Desde a Grécia antiga, a igualdade perante a lei e a liberdade de expressão constituem a base da democracia.

Em fala recente a professora Marilena Chauí reafirmou que uma das características fundamentais da democracia é constituir uma

forma sociopolítica definida pelos princípios da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público). [Nesta forma sociopolítica], todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de outro, uma vez que todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa)” (Chauí, 2012).

2.

Admitida esta conceituação de democracia, pergunto: a ausência de voz e de participação – vale dizer, a ausência de isegoria – poderia ser identificada como uma forma difusa de censura decorrente da estrutura de poder em determinada formação social?

O Parágrafo 2º do artigo 220 do capítulo sobre a Comunicação Social de nossa Constituição reza: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Descarto, preliminarmente, o que tem sido chamado de “censura judicial” ou “censura togada” por compartilhar a posição expressa pelo ex-ministro Eros Grau em julgamento no Supremo Tribunal Federal quando afirmou: “O juiz está limitado pela lei. O censor não. É descabido falar em censura judicial. Não há censura. Há aplicação da lei. A imprensa precisa de uma lei” (RCL 9428).

Pergunto, então: de onde parte a censura? Quem são os censores?

Contrariamente ao “eixo discursivo” dominante na grande mídia, pretendo argumentar que o Estado não é o único censor. Muitas vezes, nem sequer o censor mais atuante. E, mais ainda, muitas vezes o Estado pode e deve ser o garantidor da liberdade de expressão, vale dizer, da ausência de censura.

Por óbvio, existem vários tipos de censura e diferentes censores.

Há um tipo de censura, por exemplo, que atinge a liberdade da imprensa e decorre da própria estrutura do mercado das empresas de mídia. Esse fato vem sendo reconhecido desde a década de 70 do século passado pelo chamado PICA-Index (Press Independence and Critical Ability) que registra a independência e a capacidade crítica da mídia. O PICA-Index incluiu entre seus indicadores as “restrições econômicas” entendidas como conseqüências da concentração da propriedade ou de problemas que decorram da instabilidade econômica das empresas jornalísticas. Por outro lado, o próprio Press Freedom Survey, publicado anualmente pela ONG liberal Freedom House, trabalha com uma definição de liberdade da imprensa que inclui variáveis econômicas. Vale dizer, considera que restrições à liberdade da imprensa podem decorrer de fatores econômicos alheios à interferência do Estado (Holtz-Bacha, 2004).

3.

Registre-se que a censura da palavra, da expressão é muito anterior à existência não só de Gutenberg – vale dizer, da possibilidade de imprimir – como é também anterior à existência da instituição que passou a ser conhecida como “imprensa” e hoje chamamos de “mídia”.

No caso brasileiro, a ausência de voz e de participação tem sido identificada desde a primeira metade do século 17.

Para descrever a situação em que se encontrava o “Estado do Brasil” nesse período, o pregador jesuíta Padre Antonio Vieira saúda o recém chegado vice-rei, Marques de Montalvão, com um de seus famosos sermões, o da “Visitação de Nossa Senhora”, proferido no dia 2 de julho de 1640. Vieira recorre ao Evangelho de Lucas e descreve um quadro sombrio da Terra de Santa Cruz. Afirma ele:

“Bem sabem os que sabem a língua latina, que [a] palavra, infans, infante, quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste esteve o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. [...] O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão.”

Para Vieira, portanto, o maior dos males do enfermo Brasil era ter sido mantido no mesmo estado do infans, infante, isto é, sem fala, sem voz.

Quatro séculos depois, o grande educador Paulo Freire parte exatamente desse sermão de Vieira para identificar uma característica dominante da formação histórica brasileira que chama de "cultura do silêncio". Elesustenta que os séculos de colonização portuguesa resultaram numa estrutura de dominação à qual corresponde uma totalidade ou um conjunto de representações e comportamentos. Esse conjunto de “formas de ser, pensar e expressar” é tanto um reflexo como uma consequência da estrutura de dominação.

A cultura do silêncio caracteriza a sociedade a que se nega a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhe oferecem “comunicados”, vale dizer, é o ambiente do tolhimento da voz e da ausência de comunicação, da incomunicabilidade. Mas não basta ter voz porque o “mutismo” da “cultura do silêncio” – insiste Freire republicanamente – “não significa ausência de resposta, mas sim uma resposta que carece de criticidade”. Na verdade, é necessário que essa voz expresse uma opinião cidadã formada livremente e que ela seja ouvida no espaço de deliberação pública e autogoverno (Lima 2011c e 2011b).

Não seria a “cultura do silêncio” uma forma histórica de censura na medida em que sonega de boa parte da população a isegoria, isto é, a liberdade fundamental de se expressar e participar do debate público democrático?

4.

Para responder a essa questão, há de se fazer uma distinção fundamental, embora de maneira muito simplificada, entre duas noções de liberdade, uma na tradição liberal e outra na tradição republicana. [Existe uma vasta bibliografia sobre o tema. Uma introdução geral pode ser encontrada em Honohan (2002). Em português, há o já clássico de Skinner, 1999.]

A liberdade é um elemento pervasivo no pensamento moderno. Ela é parte intrínseca da história do que chamamos modernidade e tem dominado o pensamento ocidental nos últimos dois, três séculos. No mundo bipolar da Guerra Fria, a liberdade serviu como argumento central na batalha ideológica do Ocidente contra o Oriente (Nordenstreng, passim). A liberdade talvez seja o valor mais invocado do mundo contemporâneo, apesar de entendido nas mais variadas maneiras (Honohan, passim).

Na perspectiva liberal, prevalece o caráter pré-político e privado da liberdade. Entende-se a liberdade como se ela pudesse ser desvinculada da política e como um direito formado exclusivamente na esfera privada. A versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade somente à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a chamada liberdade negativa.

Já na perspectiva republicana, prevalece a idéia de liberdade associada à vida activa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno, à participação na vida pública, na res publica. É daí que vem o significado original da palavra política, de polis, isto é, tudo que se refere à cidade, civil, público.

O poder arbitrário (dominação) é incompatível com a liberdade cidadã, construída politicamente e entendida não como uma possessão privada desfrutada pelo indivíduo isolado, mas como o pertencimento a um mundo onde todos podem revelar a si mesmos, livremente, diante dos outros, sem qualquer medo de punição (Saxonhouse, passim).

Essa liberdade republicana se associa historicamente à democracia clássica Grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da idade moderna.

A liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói a partir do século XVII na Inglaterra, depois como reação conservadora à Revolução Francesa e se consolida no século XIX em complemento à idéia de mercado livre, isto é, à liberdade privada de produzir, distribuir e vender mercadorias.

São tradições distintas: uma se origina em Atenas, passa por Roma e se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, Milton e Paine. A outra a Hobbes, Locke, Benjamin Constant e, mais recentemente, a Isaiah Berlin.

5.

Embora ambas as tradições reconheçam a liberdade de expressão (isegoria) como fundamental para a definição da democracia, elas divergem radicalmente sobre o papel que o Estado desempenha em relação a essa liberdade.

Na tradição liberal, o Estado deve abster-se totalmente de qualquer interferência em relação à liberdade de expressão dos cidadãos. Na verdade, a liberdade de expressão é considerada uma proteção do indivíduo em relação ao Estado cuja interferência é entendida como cerceamento da liberdade individual, como uma forma de censura.

Na tradição republicana, ao contrário, a liberdade de expressão é entendida como liberdade de deliberação em nome do interesse público. Nas democracias a intervenção do Estado é bem-vinda na medida em que são os cidadãos que definem, através de sua participação política, as regras (leis) que serão seguidas para que a liberdade seja desfrutada. A liberdade de expressão é o instrumento básico dessa participação e, embora se realize tanto no espaço público quanto no espaço privado, neste, ela só é possível através da política, isto é, de sua defesa pública. Cabe ao Estado garantir que todos os cidadãos possam exercer igualitária e plenamente a liberdade de expressão, a isegoria.

6.

Vale registrar que, mesmo em países onde a tradição liberal é dominante, há jurisprudência consolidada sobre o papel do Estado como fiador das liberdades e, especificamente, da liberdade de expressão. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos.

O jurista liberal e professor Owen Fiss da Universidade de Yale, em pequeno, mas precioso livro – A Ironia da Liberdade de Expressão-Estado, Regulação e Diversidade na Esfera Pública – publicado originalmente em 1996, introduz o conceito de “efeito silenciador do discurso” quando discute que, ao contrário do que apregoam os liberais clássicos, o Estado não é um inimigo natural da liberdade. O Estado pode ser uma fonte de liberdade, por exemplo, quando promove

“a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos – distribuir megafones – para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes não há outra forma” (p. 30).

Fiss usa como exemplo os discursos de incitação ao ódio, a pornografia e os gastos ilimitados nas campanhas eleitorais. As vítimas do ódio têm sua auto-estima destroçada; as mulheres se transformam em objetos sexuais e os “menos prósperos” ficam em desvantagem na arena política.

Em todos esses casos, “o efeito silenciador vem do próprio discurso”, isto é, “a agência que ameaça o discurso não é Estado”. Cabe, portanto, ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar “que o público ouça a todos que deveria”, ou ainda, garanta a democracia exigindo “que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o discurso dos menos poderosos”.

Especificamente no caso da liberdade de expressão, continua Fiss, existem situações em que o “remédio” liberal clássico de mais discurso, ao invés da regulação do Estado, simplesmente não funciona. Aqueles que supostamente poderiam responder ao discurso dominante não têm acesso às formas de fazê-lo (pp. 47-48), vale dizer, não têm acesso ao debate público controlado pelos grandes grupos de mídia.

Muitas vezes esse impasse provoca, desgraçadamente, o recurso ao terror da violência como forma de expressão de ideias (Freitas, 2012).

7.

A vertente liberal norte-americana representada pelo professor Fiss, todavia, não tem sido a prevalente no Brasil. Muito ao contrário. Na nossa história, tem prevalecido um liberalismo excludente tanto de liberdade quanto de cidadania.

O liberalismo brasileiro sempre conviveu e continua a conviver, sem qualquer problema, com a desigualdade – vale dizer, com ausência de isonomia – desde a escravidão até questões contemporâneas envolvendo as relações entre raças e gêneros [vários autores têm tratado das características do liberalismo brasileiro, dentre eles lembro Alfredo Bosi, Emília Viotti da Costa e Raymundo Faoro].

A prevalência desse liberalismo excludente foi exacerbada nas últimas décadas pela onda neoliberal que varreu o planeta. Junto às privatizações veio o discurso do “fim do Estado nação” e do “Estado mínimo”, portanto, a rejeição à interferência do Estado, em especial no que se refere às garantias para que todas e todos possam exercer o princípio da isegoria.

8.

A exacerbação neoliberal provoca um estranho paradoxo no que se refere ao debate – ou à sua ausência – em torno da liberdade de expressão.

Os professores mineiros Juarez Guimarães e Ana Paola Amorim (2012) identificam o que chamam de “impasse do encarceramento” ao tratarem da noção liberal de liberdade. Recorro a eles, em texto ainda inédito, quando afirmam: 

“O estreitamento argumentativo liberal reside principalmente na desvinculação entre a liberdade de expressão e as condições de autogoverno. Em sua história, o liberalismo formou (...) o seu conceito de liberdade, separando-o da noção de participação política e autogoverno. Nessa autonomização da liberdade de expressão das condições de autogoverno residiria, então, o caminho de sua própria autonomização conceitual da noção de liberdade. (...)

“O impasse do encarceramentoliberal refere-se à tradição argumentativa, amplamente disseminada e até mesmo referencial, que explica a gênese da liberdade de expressão e seu desenvolvimento única e exclusivamente à tradição liberal. Assim, o seu debate é circunscrito ao pluralismo apenas no interior da tradição liberal, à sua gramática, à sua variação conceitual e à sua linguagem. (...)

“O argumento liberal sobre a liberdade de expressão é paradoxal: [ela] não se discute... fora dos marcos liberais! A fórmula propagandística que resulta deste antipluralismo e sectarismo genéticos é que toda proposta, argumento ou legislação que contrarie os modos liberais de pensar a liberdade de expressão são imediatamente denunciados como contrários à própria liberdade de expressão.”

Não nos deveria surpreender, portanto, que continue a existir uma reação tão forte no Brasil às eventuais propostas de política pública regulatória para a mídia [para uma avaliação das políticas públicas de comunicações no Brasil nos últimos anos ver Lima (2012b)].

O “impasse do encarceramento” faz com que até mesmo o debate sobre essa política – vale dizer, sobre a intervenção do Estado como garantidor de liberdades – essencial na perspectiva republicana, passe a ser entendido como uma ameaça à própria liberdade de expressão.

9.

Esse paradoxo se manifesta no debate – ou na ausência dele, repito – em relação à liberdade da imprensa.

Evocando a máxima dos antropólogos de que “toda identidade é uma diferença” quero agora comparar a liberdade de expressão com a liberdade da imprensa. Ao compará-las, espero melhor desvendar a identidade de cada uma [para uma detalhada discussão sobre as diferenças entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa ver Lima (2012a)].

Qual é a diferença entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa? Qual o significado original das palavras que expressam essa diferença? Como os documentos legais tratam essas liberdades? Quais as pré-condições materiais para que elas existam?

9.1

Vamos começar com o significado original das palavras speech (expressão),print (imprimir), press (imprensa) e the press (a imprensa). Creio que herdamos este significado da língua inglesa.

Registre-se que o conceito de liberdade de expressão é muito anterior ao debate clássico ocorrido na Inglaterra do século XVII. Na Grécia antiga havia pelo menos quatro palavras que significavam liberdade de expressão – como já vimos, um dos princípios fundamentais da democracia e essencial para a realização do homem cívico na polis: isegoria, isologia, eleutherostomia eparrhesia (Stone, esp. cap. 17) [para um extenso e erudito debate sobre o papel da liberdade de expressão na democracia clássica ateniense ver Saxonhouse (2006)].

Na Inglaterra, por outro lado, a expressão “freedom of speech” só aparece pela primeira vez nos famosos Institutes of the Laws of England, publicados por Sir Edward Coke, entre 1628 e 1644.

Embora em inglês como em português a palavra imprensa (press) possa significar tanto (a) a máquina de imprimir [impressora, tipografia] como (b) qualquer meio de comunicação de massa ou, ainda, (c) o conjunto deles, a passagem do primeiro para os outros sentidos altera radicalmente o locusdo sujeito da liberdade de expressão vinculado a cada um dos três sentidos, vale dizer, do indivíduo-cidadão para a instituição-empresa. Ademais, existe em inglês uma distinção entre speech (expressão, palavra),print (imprimir), press (imprensa, impressora, tipografia) e the press (aimprensa) que, na maioria das vezes, as traduções para o Português insistem em ignorar.

Um exemplo: se formos ao panfleto seiscentista Areopagitica de John Milton (1644), clássico reiteradamente lembrado na defesa da liberdade da imprensa, veremos que ele se refere ao direito, então considerado natural, do indivíduo-cidadão expressar (speech) e imprimir (print) suas idéias no exercício de seu livre-arbítrio e sem restrições externas.

Escrito para combater uma Ordenação do Parlamento inglês regulando a impressão de documentos, panfletos e livros (“An Ordinance for the Regulating of Printing”, 1643), o argumento de Milton gira em torno da capacidade individual de livre-arbítrio e da conseqüente necessidade de cada um se expressar e se expor às diferentes versões sobre um assunto para alcançar a verdade.

“Dai-me a liberdade para saber, para falar e para discutir livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades”, afirmava Milton em passagem famosa do Areopagitica (p.169).

Areopagitica, portanto, cujo subtítulo é “um discurso de John Milton pela liberdade de imprimir sem licença, dirigido ao Parlamento da Inglaterra” (“A speech of Mr. John Milton for the liberty of unlicenc’d printing to the Parlament (sic) of England”), não poderia estar se referindo à imprensa (the press), no seu significado atual.

Ademais, no texto, não há referência a the press, mas sim a printing; e, na Inglaterra do século XVII, não existiam “jornais”, no sentido contemporâneo e, muito menos, empresas comerciais de mídia (de meios impressos e/ou eletrônicos).

Aliás, só há registro da palavra jornal – newspaper – na língua inglesa no final do século XVII, em 1670!

Apesar disso, tanto na tradução clássica de Hipólito da Costa publicada noCorreio Brazilienze, em 1810, quanto na edição contemporânea existente entre nós do Areopagitica (1999), printing (imprimir) é traduzido por “imprensa” e seu sentido dominante em Português tem sido “a imprensa” (the Press), instituição moderna que significa o conjunto dos meios de comunicação ou a mídia. O próprio subtítulo passa a ser “Discurso pela Liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra”, enquanto o texto original se refere à liberdade de imprimir sem licença.

9.2

Como os documentos de referência – legais ou não – tratam essas liberdades?

A distinção clara entre liberdade de expressão e liberdade da imprensa também aparece em documentos (legais ou não), que, mesmo assim, são sempre indistintamente evocados na defesa da liberdade da imprensa. Vejamos, cronologicamente:

Na Declaração de Virgínia, de 1776, oArtigo XII fala especificamente em liberdade da imprensa (freedom of the press).

Já a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, de 1789/1791,assegura a liberdade de expressão (freedom of speech), a liberdade da imprensa (freedom of the press), a liberdade religiosa, a separação entre Igreja e Estado, o direito de reunião e o direito de petição.

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão francesa, de 1789, fala do direito à “livre comunicação das idéias e das opiniões” e que “todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente” (grifo acrescido).

Por outro lado, tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, e a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão, de 2000, falam do direito da “pessoa” (indivíduo) à liberdade de opinião e expressão, especificando que este direito inclui “a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios (media, no original em inglês) e independentemente de fronteiras” [Artigos 19, 13 e Princípio 1º, respectivamente].

A nossa Constituição, de 1988, por sua vez, refere-se à liberdade individual de manifestação do pensamento (inciso IV do Artigo 5º), e à “plenaliberdade de informação jornalística” (§ 1º do Artigo 220). A única ocasião em que aparece a expressão “liberdade de imprensa” no texto Constitucional é em relação às medidas que podem ser tomadas pelo Presidente da República na vigência do Estado de Sítio (inciso III do Artigo 139). Não é, curiosamente, no Capítulo da Comunicação Social.

E finalmente, a Declaração de Chapultepec, de 1994, se refere claramente a duas liberdades, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.

Como se vê, todos esses documentos se referem distintamente (a) à liberdade daimprensa; (b) à liberdade de expressão (de idéias e/ou de opiniões); ou (c) às liberdades de expressão (de idéias e/ou de opiniões) e de imprensa. Isso significa que, historicamente, essas liberdades têm sido entendidas como distintas ou não haveria razão para diferenciá-las. Ademais, a liberdade de expressão está sempre referida à pessoa, ao indivíduo-cidadão. Já a liberdade da imprensa aparece como “condição” para a liberdade individual (Declaração de Virgínia) ou como uma liberdade da “sociedade” equacionada com a imprensa e/ou os meios de comunicação (Declaração de Chapultepec).

9.3.

Outra forma dediferenciar as liberdades de expressão e da imprensa é verificar quais são as pré-condições materiais necessárias para que cada uma delas exista.

Enquanto a primeira nasce com o indivíduo-cidadão, a segunda, para existir, implica não só a disponibilidade de material para impressão – papel, impressora e tinta – mas, também, a capacidade dos indivíduos de ler, vale dizer, implica a existência de um público leitor.

A passagem da cultura oral para a cultura letrada e a formação, o tamanho e a história dos “públicos leitores” nas diferentes sociedades, contam boa parte da história da própria imprensa e, consequentemente, da liberdade da imprensa.

É necessário, portanto, que se leve em conta a consolidação da “imprensa” no contexto das enormes transformações que sofreram, ao longo dos últimos cinco séculos, as formas de imprimir e aquilo que é impresso; as estradas de ferro como canais de distribuição; a descoberta da eletricidade e de alguns de seus derivados, como, por exemplo, o telégrafo.

Tudo isso num longo e lento processo que começa no século XV, passando pela Revolução Industrial do século XIX, pela Revolução Digital do final do século XX e chega até os nossos dias.

Há um enorme e complexo caminho percorrido desde os volantes avulsos anônimos sem periodicidade, aos livros de notícias (booknews), panfletos e pasquins artesanais, passando às gazetas, folhas (newspapers) e periódicos pessoais – onde o redator, o cronista e o editor eram a mesma pessoa – até os jornais populares de massa e os grandes jornais e revistas de nossos dias.

10.

Considerando as diferentes condições materiais necessárias à existência das liberdades de expressão e da imprensa, seria o contexto do nosso século XXI favorável ao exercício da liberdade de expressão? Ou melhor, seria possível considerar, como usualmente se faz, a liberdade da imprensa – a imprensa hoje existente – como extensão da liberdade de expressão individual?

10.1

Desde quando a imprensa se transforma em instituição, ou melhor, emempresa capitalista, sua relação direta com a liberdade de expressão individual deixa de existir. Ela não guarda mais relação direta com o que se pretende por liberdade da imprensa dos grandes conglomerados globais de comunicação e entretenimento, muitos deles, com orçamentos superiores àqueles da maioria dos Estados membros das Nações Unidas.

Na verdade, a transformação da imprensa em empresa que demanda cada vez mais capital, não é uma preocupação nova.

No início do século XX, no Primeiro Congresso da Associação Alemã de Sociologia, realizado em 1910, Max Weber – fundador da sociologia política – apresentou um programa de pesquisa no qual afirmava:

“Uma das características das empresas de imprensa é, hoje em dia, sobretudo, o aumento da demanda de capital. (...) Em que medida essa crescente demanda de capital significa um crescente monopólio das empresas jornalísticas existentes? (...) Esse crescente capital fixo significa também um aumento de poder que permite moldar a opinião pública arbitrariamente? Ou, pelo contrário, (...) significa uma crescente sensibilidade por parte das distintas empresas diante das flutuações da opinião pública?”.

10.2

Além de se transformar em empresa e operar dentro da lógica do capital, a imprensa passou também a deter o monopólio virtual da construção, manutenção e reprodução de capital simbólico e, portanto, a funcionar dentro de outra lógica, isto é, a lógica do poder.

O famoso relatório da Comissão MacBride, publicado no início da década de 80 do século passado e hoje abandonado pela UNESCO, referia-se à dimensão política da comunicação que aumenta constantemente em função de uma “contradição fundamental (inegável)”. Dizia o relatório:

“à medida que ia se estendendo, em cada país e no mundo inteiro, o número daqueles a quem a alfabetização, a ‘conscientização’ e o desenvolvimento da independência nacional transformavam em solicitantes de informação, ou em candidatos à emissão de mensagens, uma contradição inegável, relacionada com as exigências financeiras do progresso técnico, talvez não de forma absoluta, mas pelo menos relativamente,reduzia o numero de emissores, ao mesmo tempo em que intensificava [o poder deles]” (p. 31, grifo nosso).

Entre nós, o saudoso sociólogo e jornalista Perseu Abramo, no seu conhecido livro Padrões de Manipulação na Grande Imprensa, escrito em 1988, já afirmava:

“Os órgãos de comunicação se transformaram em entidades novas, diferentes do que eram em sua origem, distintas das demais instituições sociais, mas extremamente semelhantes a um determinado tipo dessas instituições sociais, que são os partidos políticos. (...) Na realidade, esses grandes órgãos efetivamente são autônomos e independentes, em grande parte, em relação a outras formas de poder (...) porque são eles mesmos, em si, fonte original de poder, entes político-partidários, e disputam o poder maior sobre a sociedade em benefício dos seus próprios interesses e valores políticos. (...) Os órgãos de comunicação são os meios de comunicação de si mesmos como partidos [políticos].”

Na mesma linha, o também saudoso professor Octávio Ianni, analisando o “complexo e difícil palco da política”, na época da globalização, referindo-se à televisão, afirmava em 1999:

“Em lugar de O Príncipe de Maquiavel e de O Moderno Príncipe de Gramsci, assim como de outros ‘príncipes’ pensados e praticados no curso dos tempos modernos, cria-se O Príncipe Eletrônico, que simultaneamente subordina, recria, absorve ou simplesmente ultrapassa os outros.”

11.

Apesar do exposto até aqui, não é raro encontrar-se distorções e deslocamentos importantes na utilização que se faz das expressões Liberdade de Expressão e Liberdade da Imprensa, inclusive nas mais altas instâncias do nosso Poder Judiciário.

Comentando o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o renomado professor da University of Tampere [Finlândia], Kaarle Nordenstreng, firma que “o sujeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais não é uma instituição chamada a imprensa ou a mídia, mas um ser humano individual”. E prossegue: “a frase ‘liberdade de imprensa’ é enganosa na medida em que ela inclui uma ideia ilusória de que o privilégio dos direitos humanos é estendido à mídia, seus proprietários e seus gerentes, ao invés de ao povo para expressar sua voz através da mídia”. E mais à frente afirma: “nada no Artigo 19 sugere que a instituição da imprensa tem qualquer direito de propriedade sobre esta liberdade”.

A extensão de uma liberdade fundamental “à mídia, seus proprietários e seus gerentes”, no entanto, tem sido freqüente.

11.1

O Acórdão do STF [novembro de 2009] em relação ao julgamento da ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, n. 130 que considerou inconstitucional a totalidade da antiga Lei de Imprensa (Lei 5.250 de 1967), consagra interpretação oposta à do professor Nordenstreng ao estabelecer uma hierarquia entre as diferentes liberdades e deslocar o locus da liberdade do indivíduo para “a imprensa”. Diz o item n. 6 do Acórdão que trata da “Relação de Mútua Causalidade entre Liberdade de imprensa e Democracia”:

“A plena liberdade da imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloqüente atestado de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retro alimentação. Assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados” [grifo nosso].

11.2

É também rotineiro encontrar-se não só o deslocamento do sujeito da liberdade de expressão do indivíduo-cidadão para a “sociedade” e, desta, implicitamente, para os “jornais”, mas também a utilização das duas expressões – liberdade de expressão e liberdade da imprensa – como se equivalentes fossem.

Um exemplo pode ser constatado nas poucas linhas de anúncio de meia página que a Associação Nacional de Jornais (ANJ) fez publicar em vários jornais por ocasião de seus 30 anos (agosto de 2009). O sujeito da liberdade de expressão deixa de ser o indivíduo-cidadão e passa a ser uma difusa “sociedade”; os jornais são genericamente identificados com “os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas” e a imprensa como formadora desinteressada da opinião pública, “o que mais interessa na democracia”. Por fim, liberdade da imprensa e liberdade de expressão são explicitamente consideradas como equivalentes. O texto completo do anúncio diz:

Título: Sem liberdade de imprensa esta seria a única testemunha.

(a imagem é de um rato que assiste a uma suposta cena de corrupção sendo praticada por dois homens iluminados por faróis de automóveis).

Texto: Nos últimos 30 anos, o país passou por mudanças decisivas. E os jornais foram os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas durante o processo. Graças ao trabalho da imprensa, o cidadão teve acesso a informações preciosas que se tornaram o que mais interessa numa democracia: opinião.

Assinatura: ANJ. Há 30 anos lutando pelo que a sociedade tem de mais valioso: a liberdade de expressão.

12.

Diante dessa realidade, são muitos e enormes os desafios que temos pela frente se pretendemos uma democracia onde prevaleçam os princípios da isonomia e da isegoria, vale dizer, onde não exista qualquer forma de censura.

O Brasil dispõe hoje de uma das mais avançadas legislações de acesso à informação do planeta, a Lei 12.527 de novembro de 2011. Temos também a imensa possibilidade potencial de construção de novas formas de sociabilidade oferecida pela internet, pendente a universalização do acesso aos computadores e a banda larga de qualidade, além da aprovação pelo Congresso Nacional do PL 2126/2011 – o marco civil da internet – cuja votação está agora prevista para depois das eleições municipais.

Apesar disso, temos que trabalhar pelo fortalecimento do campo da mídia pública – das rádios e TVs públicas e comunitárias – e pela inadiável adoção de um novo marco regulatório para a mídia.

E aqui devemos começar pelo simples cumprimento do que já determina a Constituição Federal de 1988, portanto, há mais de 23 anos.

Indico a seguir algumas conseqüências parciais e imediatas para a democracia brasileira que resultariam apenas da regulação de quatro artigos da Comunicação Social (Capítulo V do Título VIII) até hoje não regulamentados.

[Deixo de mencionar os vários incisos referentes à comunicação que estão no artigo 5º – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos.]

>> Artigo 220

O professor Fábio Konder Comparato (2011) lembrou recentemente que o Inciso II do parágrafo 3º do artigo 220 manda que lei complementar estabeleça os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Tal lei complementar não existe.

A Organização Mundial da Saúde, desde 2005, tem lançado advertências sobre os efeitos nocivos à saúde, provocados pela obesidade, sobretudo entre crianças e adolescentes. Neste sentido, a ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária baixou, em 15 de junho de 2010, a Resolução RDC n º 24 regulamentado...

“a oferta, propaganda, publicidade, informação e outras práticas correlatas, cujo objetivo seja a divulgação e a promoção comercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional”.

A Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (ABIA), vendo os interesses empresariais de seus membros contrariados, ingressou com ação na Justiça Federal de Brasília contra a ANVISA pedindo que não se aplicasse a eles os dispositivos da referida Resolução, de vez que só uma lei complementar poderia regular a Constituição.

Resultado: a 16ª Vara da Justiça Federal suspendeu os efeitos da Resolução em liminar posteriormente mantida pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região.

Pergunto: não interessaria, sobretudo a mães e pais de crianças, a regulação da propaganda de “alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional”?

Da mesma forma, não interessaria a regulação do parágrafo 4º do mesmo artigo 220, que se refere à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias?

O parágrafo 5º do artigo 220, por outro lado, reza que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Sua regulação teria, necessariamente, que restringir a propriedade cruzada – um mesmo grupo empresarial controlando diferentes meios (rádio, televisão, jornais, revistas, provedores e portais de internet), num mesmo mercado – como, aliás, acontece nas principais democracias contemporâneas. Ao mesmo tempo, deveria promover o ingresso de novos concessionários de rádio e televisão no mercado de comunicações.

Não interessaria ter um leque maior de alternativas para escolher a programação de entretenimento ou de jornalismo que se deseja ouvir e/ou assistir?

>> Artigo 221

Os quatro incisos do artigo 221 se referem aos princípios que devem ser atendidos pela produção e pela programação das emissoras de rádio e televisão. São eles: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Não interessaria, por exemplo, aos produtores independentes de cinema e vídeo a geração de empregos, a promoção da cultura nacional e regional e o incentivo à produção cultural, artística e jornalística regional? E a todos nós o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família?

>> Artigos 222 e 223

Dos artigos 222 e 223 – deixando de lado a questão crítica das outorgas e renovações das concessões de rádio e televisão [sobre as concessões de radiodifusão ver Lima (2011)] – talvez o benefício mais perceptível fosse a regulamentação do “princípio da complementaridade” entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão. Combinada com o parágrafo 5º do artigo 220 – “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio” – essa regulamentação possibilitaria o necessário equilíbrio no mercado de rádio e televisão, hoje inexistente.

>> Artigo 224

O último dos artigos do Capítulo V cria o Conselho de Comunicação Social como órgão auxiliar do Congresso Nacional foi regulamentado pela Lei n.º 8.339 de 1991. O CCS somente foi instalado 11 anos depois, em 2002, deixou de funcionar em 2006 e foi reinstalado agora – em agosto de 2012 – sob protesto da Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular (FRENTECOM) e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), pela forma antidemocrática como a Mesa Diretora do Congresso Nacional procedeu na escolha de seus membros e no encaminhamento da sua eleição (Lima, 2012).

Os descaminhos do Conselho de Comunicação Social previsto no artigo 224, todavia, não deveriam impedir a criação dos Conselhos Estaduais de Comunicação Social, já previstos em pelo menos 12 constituições estaduais e na Lei Orgânica do Distrito Federal e, até hoje, instalado e funcionando apenas no estado da Bahia (Lima, 2011a).

13.

Liberdade e liberdade de expressão são conceitos em disputa e, ao mesmo tempo, princípios a ser defendidos em nome de uma democracia republicana.

No Brasil, os adversários da isegoria têm conseguido construir – como significação dominante no espaço público – o entendimento de que estamos diante de uma batalha entre liberdade (liberdade de expressão) e censura do Estado (regulação).

O vazio provocado pela ausência de propostas concretas do governo e a impotência histórica dos (não) atores da sociedade civil fazem com que o campo de significações sobre o que constitui um Marco Regulatório para as Comunicações esteja hoje sob o controle exatamente de seus opositores mais ferrenhos.

Na verdade, trata-se de velha e conhecida tática. Escolhe-se um princípio sobre o qual existe amplo consenso e desloca-se para seu campo de significação a questão em disputa. Como em política, apoiar uma posição significa estar contra outra, é preciso identificar um adversário, no caso, os inimigos da liberdade de expressão, por extensão, aqueles que querem a censura.

Torna-se necessário, portanto, que a grande mídia convença a maioria da população de que “alguém” – que, por óbvio, não é ela – é contra a liberdade, mesmo que nossa história política, em várias ocasiões, revele exatamente o contrário. Como a grande mídia (ainda) tem o poder de construir e “enquadrar” a agenda pública, ela repete exaustivamente a “inversão” até criar um ambiente falso no qual ela – a grande mídia – apresenta a si mesma como a grande defensora da liberdade.

Nesse contexto, não basta comprovar que a mídia é regulada nas democracias mais avançadas do mundo; não basta propor que as normas e princípios constantes da Constituição de 88 sejam o “terreno comum” para se negociar a regulação; não basta mostrar que as mudanças tecnológicas exigem uma atualização da legislação; não basta reiterar compromissos com a Constituição Federal nem com a liberdade de expressão. Nada é suficiente.

Ao usar como estratégia o bordão da ameaça constante de retorno à censura e de que a liberdade de expressão está em risco, os grandes grupos de mídia transformam a liberdade de expressão num fim em si mesmo. Ademais, escamoteiam a realidade de que, no Brasil, o debate público não só [ainda] é majoritariamente pautado por ela – a grande mídia – como uma imensa maioria da população a ele não tem acesso e é dele historicamente excluída.

A interdição do debate verdadeiramente público de questões relativas à democratização das comunicações pelos grupos dominantes de mídia, na prática, funciona como uma censura disfarçada.

Essa é a situação em que nos encontramos.

De qualquer maneira, o critério fundamental para a formulação e a avaliação de qualquer política pública garantidora da liberdade de expressão e, portanto, da ausência de censura deve ser sempre se ela possibilita a superação da “cultura do silêncio”. Vale dizer, se possibilita que mais e diferentes vozes sejam ditas e ouvidas através da participação cidadã no debate público e se caminha no sentido da isegoria, princípio basilar da democracia republicana.

Referências
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(*) Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012/2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentando) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros