quarta-feira, 5 de junho de 2013

“Bolsa Família inicia reparação histórica”, diz Walquíria Leão Rego



Livro “Vozes do Bolsa Família” será lançado em junho | Foto: Ana Nascimento / Bolsa Família

Dos rincões miseráveis do Brasil emergiram as vozes de mais de uma centena de mulheres que foram ouvidas por uma pesquisadora paulista preocupada em compreender os impactos do programa Bolsa Família na vida dos 5,4 milhões de beneficiários. Ainda alvo de críticas por vários setores, o programa de transferência de renda é considerado pela socióloga Walquíria Leão Rego como um começo de reparação social do estado brasileiro para com os mais pobres. “Estas pessoas saíram da miséria absoluta, os índices de mortalidade infantil ficaram mais baixos e isto tem impacto fundamental para um país que se diz minimamente democrático. Conviver com a miséria como o Brasil conviveu por tantos séculos, mesmo depois do fim do regime militar, deveria ser um processo que mexe com todos os brasileiros”, falou em entrevista ao Sul21.

Professora do programa de pós-graduação em Sociologia da Unicamp, Walquíria Leão Rego fez a pesquisa por conta própria, sem apoio financeiro da Unicamp ou do governo federal. Financiou as viagens do próprio bolso, agendando as excursões em seus períodos de férias. A seu lado, em parte da pesquisa, esteve o filósofo italiano Alessandro Pinzani, que leciona na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “A qualidade de vida destas pessoas melhorou e elas não estão mais adoecendo. Esta afirmação é algo constatada não só na minha pesquisa, que não é quantitativa, mas pelo IPEA (Instituto de Pequisa Econômica e Aplicada), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ONU (Organização das Nações Unidas), PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), todos constatam a mesma coisa”, afirma.

Concebida com a finalidade de averiguar se, como e em que medida a nova renda e sua regularidade afetam a vida cotidiana das famílias e, em particular, das mulheres, a pesquisa completa estará disponível no livro Vozes do Bolsa Família, a ser lançado pela Editora Unesp no dia 11 de junho. “A remuneração proporciona uma liberdade pessoal. Esta é uma das importantes funções do beneficio ser em dinheiro. É diferente se fosse uma cesta básica, onde já é determinado o que a pessoa irá fazer com o recurso e o que ela irá comer”, explica a socióloga.

Na visão da professora, os ataques ao programa federal criado pelo governo Lula são feitas por setores específicos da sociedade e com base em conceitos preconceituosos. Ela não acredita em uso político do seu livro. “Este recente episódio do boato que o programa iria acabar e que levou centenas de pessoas aos bancos em poucas horas, mostra bem para os críticos o tamanho da necessidade do Bolsa Família. Por isso, acho pouco provável que alguém queira brincar com isso”, fala.
A socióloga Walquíria Leão Rego, autora de Vozes do Bolsa Família | Foto: Unicamp


Sul21 – O Bolsa Família completa 10 anos em 2013, alcançando perto de 5,4 milhões de pessoas e é reconhecido internacionalmente como o maior programa de combate à pobreza. Qual é o impacto real deste programa no desenvolvimento do país, porque ao mesmo tempo, ele segue sendo alvo de críticas?

Walquíria Leão Rego – Criticado por quem? Temos que nos perguntar a quem interessa falar mal deste programa. O principal impacto é perceptível. Uma parte significativa da população da chamada ‘extrema pobreza’ deixou de estar nesta condição. Isto não é pouco. É algo muito importante. Estas pessoas saíram da miséria absoluta, os índices de mortalidade infantil ficaram mais baixos e isto tem impacto fundamental para um país que se diz minimamente democrático. Conviver com a miséria como o Brasil conviveu por tantos séculos, mesmo depois do fim do regime militar isto fez parte do país por muitos anos, deveria ser um processo que mexe com todos os brasileiros. A imprensa, a academia e a sociedade em geral deveriam ser tocadas com isso. O impacto é muito grande para as pessoas que passaram a ter um rendimento regular, apesar de pequeno. É um dinheiro que eles podem contar todos os meses. Eles aprendem a conviver com esse recurso e buscam querer viver melhor. Este programa é o começo de uma reparação por parte do estado brasileiro.

“Este argumento de que eles não saberiam administrar [o dinheiro] é preconceito com os pobres” | Foto: Roberto Setton











Sul21– Os usuários conseguem administrar a liberdade de ter uma fonte fixa de renda, o que para muitos deve ser algo inédito?

Walquíria Leão Rego - Administram muito bem. Este argumento de que eles não saberiam administrar é preconceito com os pobres. Quem está endividada é a classe média e os ricos, não os pobres. Quando falo em pobres, me refiro aos cadastrados no Bolsa Família, porque existem pobres que estão na categoria de pobres e não estão vivendo na extrema pobreza. Eles administram muito bem os recursos e em dez anos aprenderam a gerir as finanças como qualquer outra pessoa aprende. A qualidade de vida destas pessoas melhorou e elas não estão mais adoecendo. Esta afirmação é algo constatado não só na minha pesquisa, que não é quantitativa, mas pelo IPEA (Instituto de Pequisa Econômica e Aplicada), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ONU (Organização das Nações Unidas), PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), todos constatam a mesma coisa. Isto deveria estar nas manchetes dos jornais do país. Demonstrar que este programa, mesmo oferecendo um auxílio pequeno, está tornando as pessoas cidadãos de fato. Este programa garante o direito mais elementar: a vida.

Estudam no ensino público, fazem intercâmbio no exterior com auxílio público e voltam para abrir um consultório na Avenida Paulista e cobrar até R$ 1,5 mil por uma consulta. Isto é o horizonte típico da classe média brasileira que faz medicina.

Sul21 – Dados oficiais revelam que 70% dos beneficiários adultos são trabalhadores e os estudantes que participam do programa possuem média de aprovação quase 5% maior que a média nacional. Além de ter um índice menor de abandono dos estudos.

Walquiria Leão Rego – Isto acontece pela exigência do vínculo das crianças na escola para receber o benefício, o que é muito interessante, porque mostra o quanto estas crianças estavam abandonadas pelo estado. Porém, também é necessário discutir a qualidade da escola brasileira. A escola pública no Brasil precisa de muito investimento ainda. As crianças que eu estudei vivem em cidades do interior, algumas em zona rural e em periferias de grandes cidades. (Recife, Vale do Jequitinhonha, etc ). O benefício também implica o controle da saúde das crianças, mas ainda faltam médicos no Brasil nos postos de saúde destas regiões. O governo federal estuda trazer para o Brasil os médicos cubanos, espanhóis e portugueses, porque os nossos não costumam ir para estes lugares. Isto acontece pela falta de compromisso de certas pessoas com o seu país. Os paulistas, por exemplo, querem fazer medicina na melhor universidade, que é USP (Universidade de São Paulo) ou a Unicamp, para se formar em uma universidade pública. Estudam no ensino público, fazem intercâmbio no exterior com auxílio público e voltam para abrir um consultório na Avenida Paulista e cobrar até R$ 1,5 mil por uma consulta. Isto é o horizonte típico da classe média brasileira que faz medicina. O compromisso com o povo eles não querem saber. Não adianta oferecer o salário e o benefício que for para estas pessoas porque elas não vão para as regiões de periferia e interior. As crianças que são beneficiadas com o Bolsa Família são abandonadas como cidadãos. O estado tenta resolver e a classe média vai para as ruas fazer protesto contra os médicos estrangeiros.
“Existe uma ignorância de algumas pessoas sobre a realidade do seu próprio país. Não sabem a geografia do seu país, que dirá a geografia econômica ou informações sociológicas” | Foto: Divulgação


Sul21 – Recentemente foi divulgado que 1,6 milhão de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família deixaram espontaneamente o programa. Isto contraria a tese de que elas se tornam dependentes do programa?

Walquíria Leão Rego – Isto sempre foi uma tese preconceituosa. Toda tese preconceituosa é desmentida em pouco tempo. O preconceito é algo estreito. Isto foi desmentido porque este dado revela que as pessoas querem melhorar de vida e, em algumas regiões não há emprego. Aliás, não há nem o que vestir ou que comer. Quem irá oferecer emprego para alguém que vive no sertão? Existe uma ignorância de algumas pessoas sobre a realidade do seu próprio país. Não sabem a geografia do seu país, que dirá a geografia econômica ou informações sociológicas. Então, há muito preconceito e estereótipo por trás destas teses.

Sul21 – A senhora desenvolveu a pesquisa por conta própria, sem apoio financeiro da Unicamp ou do governo federal. Financiou as viagens do próprio bolso, agendando as excursões em seus períodos de férias. Como alcançou a publicação do livro?

Walquíria Leão Rego – Consegui a publicação por meio da editora Unesp (Universidade Estadual Paulista), que é uma editora universitária. As outras editoras não se interessaram pelo meu material. Percebi que teria que ser pela editora universitária e creio que este é o papel mesmo. As editoras comerciais só estão interessadas em lucro. As publicações são aquelas que irão vender. Mas, mesmo contando com editora universitária não é fácil publicar estudos como este no Brasil.

A remuneração proporciona uma liberdade pessoal para as pessoas. Esta é uma das importantes funções do beneficio ser em dinheiro.

Sul21 – Na sua pesquisa, que resultou no livro Vozes do Bolsa Família, foram ouvidas 150 mulheres cadastradas no programa. O que é possível dizer desta experiência de dar autonomia para as mulheres na gestão dos recursos do Bolsa Família?

Walquiria Leão Rego – Nós ouvimos muito mais pessoas, mas selecionamos uma amostragem de 150 mulheres para poder fazer um recorte. O livro é um experimento interpretativo, sociológico e com contribuição para o meio intelectual. Não terá grande reflexo na sociedade que, sinceramente, sei que não irá se interessar em ler meu livro. O que é uma pena, porque pode ser uma oportunidade de a sociedade experimentar conhecimento sobre seu próprio país. O estudo desfaz uma série de estereótipos de que os pobres só querem depender do estado e não querem trabalhar. Quem ler este livro conseguirá aprender alguma coisa. É a minha esperança. Agora, o conceito de autonomia é muito complexo. Tem implicações morais e políticas. O que podemos dizer é que, o fato destas mulheres tão destituídas em suas vidas e em estado de extrema pobreza, passarem a ser titulares de cartões de recursos transferidos pelo estado traz certa autonomia. A remuneração proporciona uma liberdade pessoal para as pessoas. Esta é uma das importantes funções do beneficio ser em dinheiro. É diferente se fosse uma cesta básica, onde já é determinado o que a pessoa irá fazer com o recurso e o que ela irá comer. Fica imposto a quantidade de comida e o tipo de alimento que ela irá comer. O dinheiro dá liberdade de escolha, com isso elas aprendem a administrar os recursos. É um exercício de cidadania muito maior do que as classes mais abastadas pensam sobre a capacidade dos pobres.

“O estado decretou há muitos anos a morte civil destas pessoas. Agora, com o Bolsa Família, é que se começou a fazer algo” | Foto: Divulgação

Sul21 – Os homens ficaram ou tendem a ficar para trás neste processo de desenvolvimento que foca nas mulheres, a curto, médio ou longo prazo?

Walquíria Leão Rego – Homens também são pobres, analfabetos ou com mínima escolaridade. O desemprego é geral, não está relacionado com o gênero em determinadas regiões do país. Por séculos o estado abandonou parte do país. É preciso ter esta consciência. Agora, com o Bolsa Família, é que se começou a fazer alguma coisa pelo abandono desta parte da população. O estado decretou há muitos anos a morte civil destas pessoas. Elas não têm voz, a sociedade não as escuta. As pessoas não querem pensar sobre isso ou mesmo esquecem de pensar porque isso as incomoda muito e passa a crescer o preconceito. Os brasileiros conviveram por várias gerações sabendo da existência da pobreza e defendem que a culpa é dos próprios pobres que “não querem trabalhar” ou “são vagabundos”. Se não tivesse existido um programa como o Bolsa Família, pessoas seguiriam morrendo no Brasil, África e em tantas outras nações onde ele foi criado.

No que se refere ao programa Bolsa Família, por exemplo, creio que seja necessário aumentar o valor do benefício. É preciso ter mais oportunidade de acesso ao ensino. A imprensa precisa ser melhor. É uma imprensa muito controlada pelos seus patrões.

Sul21 – Como garantir o desenvolvimento do país após o desligamento do Bolsa Família?

Walquíria Leão Rego – Tem que se avançar muito mais no país em termos de desenvolvimento. No que se refere ao programa Bolsa Família, por exemplo, creio que seja necessário aumentar o valor do benefício. É preciso ter mais oportunidade de acesso ao ensino. A imprensa precisa ser melhor. É necessário que aconteça um conjunto de políticas públicas, inclusive específicas para a realidade destas regiões mais pobres. A educação é feita na escola, com a alfabetização, mas outras formas de formação para estes cidadãos são necessárias. Uma pessoa do sertão aprende a ler, mas segue vendo apenas televisão. Isto não resolve muito. Nós temos que discutir o que é educar. Não é só escola. É ter uma mídia democrática que produza conteúdos que elevem as pessoas. A televisão hoje indignifica as pessoas. Estamos ainda iniciando um novo processo de formação e transformação no Brasil. Eu citei apenas alguns exemplos aqui, mas temos muito que avançar.

O que foi feito no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso não tinha a mesma dimensão distributiva e a amplitude do Bolsa Família criado no governo Lula.

Sul21 – Por ser um dos poucos estudos acadêmicos sobre um dos programas mais importantes para a gestão do PT, e do próprio PSDB, que alega a paternidade do embrião do programa, a senhora imagina que seu livro terá uso político?

Walquíria Leão Rego – Não temo. Este recente episódio do boato que o programa iria acabar e que levou centenas de pessoas aos bancos em poucas horas, mostra bem para os críticos o tamanho da necessidade do Bolsa Família. Eu creio que essa reação das pessoas mostrou a importância que o programa tem na vida delas. Isso mostra o significado dessa bolsa para a população. Por isso, acho pouco provável que alguém queira brincar com isso. Além do que, o programa de fato tomou a dimensão que tomou e se tornou o maior programa do mundo não foi com o PSDB. O programa deles (PSDB) era outra coisa. O que foi feito no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso não tinha a mesma dimensão distributiva e a amplitude do Bolsa Família criado no governo Lula. A transformação social do país por meio deste programa começou, sem dúvida, no governo Lula e agora tem continuidade com o governo Dilma, isso não tem como negar. Se um jornalista quiser fazer investigação sobre isso, é só perguntar para as pessoas nas ruas do Brasil. Isso é um dado de realidade, não tem como mentir ou falsificar a história.
Tuíte da Ministra Maria do Rosário, negando o fim do Bolsa Família | Foto: Reprodução / Twitter


Sul21 – A senhora acredita que a imprensa tem interesse em dar voz aos críticos deste programa de forma sistemática?

Walquíria Leão Rego – De fato, isto é algo recorrente. A desqualificação do governo, das pessoas, do programa, e ao mesmo tempo a não-informação sobre o êxito desta iniciativa. Isso é o que mais me assusta, como eles (a mídia) se sentem no direito de não informar o país sobre o que está acontecendo no país? Você não vê isso em outros lugares do mundo. É uma imprensa muito controlada pelos seus patrões, talvez uma das mais controladas do mundo.

Sul21 – A senhora vê com esperança o avanço da democratização da mídia no país?

Walquíria Leão Rego - A própria imprensa hegemônica não quer discutir a democratização, e colocou na cabeça de seus jornalistas — e de alguns intelectuais que ela já produziu — que eles devem escrever que discutir e regulamentar a imprensa é abdicar da liberdade de expressão. Então eles usam essa questão para não discutir que quem não pratica essa liberdade de expressão são eles. Eles recusam o debate e usurpam o direito democrático à informação. As pessoas, de modo geral, não sabem o que está acontecendo. Alguma vez a grande imprensa fez alguma matéria séria sobre o Bolsa Família? Nunca. Pelo contrário, ela difama, mente e distorce. Isso não é jornalismo.

domingo, 2 de junho de 2013

Torturadores: animais em circulação

Texto de Rodolpho Motta Lima, extraído do Direto da Redação




Os que me conhecem bem sabem que não sou muito condescendente com a espécie a que pertenço. Para mim, o ser humano ainda está bem distante de atingir a um estágio que efetivamente o distinga, no que realmente interessa, dos chamados seres irracionais. Penso que, a despeito de todas as conquistas tecnológicas e materiais, ainda nos situamos em uma espécie de Idade das Cavernas. A inveja, a perfídia, a calúnia, a traição, a violência, o egoísmo, o preconceito nos mínimos atos de cada dia, os genocídios que se perpetram de forma permanente, as guerras sem sentido, enfim, todos os repetidos atos de barbárie cometidos diuturnamente no planeta não me permitem uma visão otimista, mas a constatação de que, mudando-se os tempos, os cenários e os atores, o enredo continua o mesmo. 

O otimismo, admito, pode ser, em muitos casos, um componente propulsor, um móvel que traz consigo o entusiasmo para novas conquistas e a esperança de que tudo venha a melhorar. Ele é importante em alguns momentos, mas será sempre uma atitude romântica, dissociada do real. As verdadeiras mudanças, se vierem – e cada vez acho mais complicado isso – terão que vir do juízo crítico, da denúncia, do comprometimento com a luta pelas causas comuns a todos os homens, que envolvem a superação das injustiças e desigualdades.

Esse quase desabafo vem a propósito de tema muito debatido, mas que nunca é demais repisar, somando mais uma voz à de quantos ainda têm a capacidade de verdadeiramente revoltar-se. Quando leio um depoimento como o da cineasta Lúcia Murat que, jovem ainda, no aceso dos seus vinte e poucos anos, por buscar um mundo mais justo, teve a sua vida marcada pela vilania de outros seres ditos “humanos”, é difícil ficar eufórico com o apregoado desenvolvimento ou progresso da Humanidade. 

Procure ler na íntegra o que ela narra, episódios que passam pela ação efetiva de sádicos animalizados, entre eles militares de alta patente e médicos, que ela claramente nomeia. Procure ler sobre os espancamentos que sofreu, sobre os choques no pau de arara que envolviam uma “viagem” pelos seios, pela vagina, pela boca. Procure conhecer a moderníssima técnica de interrogatório que passava pelo “passeio” de baratas pelo corpo, introduzidas na vagina. Procure saber a verdade.

Leia o depoimento da cineasta, não esquecendo que tudo isso se fazia na mais absoluta clandestinidade, em porões da ditadura, com pessoas que, oficialmente, não estavam presas, porque essa era uma lei da repressão, para permitir a prática das torturas sem contestação, além dos convenientes “desaparecimentos”.

Quando leio os argumentos dos que defendem a validade desses métodos irracionais, confesso a dificuldade de aceitar que a minha espécie tenha chegado à tão falada civilização... Nada justifica a tortura. Nada. O torturador está abaixo do mais irracional dos animais, até porque não se conhece qualquer animal que torture membros da sua espécie, ou mesmo de outra. Os animais irracionais disputam território, disputam comida e matam por isso, mas não torturam. A tortura se situa em um grau inferior ao da irracionalidade.

No caso em questão, que é emblemático, submeteu-se uma jovem com seus ideais – e por causa de seus ideais – à saga de pessoas sórdidas, sádicas, que cobrem de indignidade e de vergonha aqueles a que serviam. Todos no mesmo saco. E não tem desculpa o martírio, com choques elétricos e sevícias de todo tipo, imposto a uma pessoa que, pelo idealismo, acreditava poder mudar um mundo de injustiças. É inaceitável.

A Comissão da Verdade foi criada justamente porque o inaceitável não pode ter prescrição. Muitos desses monstros estão aí , à solta, ainda se justificando. São animais em circulação. Não podem ser nivelados aos que se opuseram à ditadura, mesmo aos que, por força da luta, praticaram a violência armada, mas não a tortura. Guerrilheiros e componentes de movimentos clandestinos contra o poder arbitrário sempre existiram, mas têm sido, historicamente, diferenciados dos algozes que combatem. Não é por outra razão que Che Guevara é um ícone planetário, estampado como exemplo em todos os cantos do mundo, enquanto do seu assassino ninguém conhece o nome. 

Os torturadores, com ou sem uniforme, pertencem à categoria dos seres abjetos que fazem, pela extrema maldade, um mundo pior. E se indivíduos desse quilate ainda estão soltos por aí, em circulação, têm que ser punidos. Não há, não pode haver, anistia para a barbárie, muito menos a partir de uma lei que, todos sabemos, ainda foi votada em tempos de ditadura. 

Era Tristão de Athaide, se não me engano, que costumava usar a metáfora de que os jovens são incendiários e que, quando ingressam na idade madura, viram bombeiros. Pode ser. Minha vivência me permite admitir que isso é verdade para muitos, mas não para todos. De qualquer forma, a Humanidade tem tido necessidade desses incêndios juvenis que a fazem, de tempos em tempos, refletir sobre os seus caminhos. Que o diga a Primavera Árabe, um exemplo bem próximo. A então jovem Lucia Murat – como tantos outros jovens que lutaram contra a ditadura – representava os metafóricos incendiários que atuavam nos anos 60/70, com o fogo das ideias por um mundo melhor.

Felizmente, apesar de tudo, Lúcia Murat ainda hoje mostra a incendiária coragem dos que não se deixaram vencer , ainda que coexistindo com a covardia dos que fizeram, a ainda fazem, a apologia da indignidade, sob a confortável complacência dos nem sempre inocentes bombeiros de plantão.