sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Raízes do mensalão: nem 1998, 2004 ou 2005; conheça o pontapé inicial


Artigo extraído do blog Pragmatismo Político (postado em 07/08/2012), com links, ao final do mesmo, direcionando para os blog's Maria Frô, R7 (Hildegard Angel) e Viomundo, que não constam do original, com o intuito de demonstrar e qualificar as afirmações ali contidas.

A origem do mensalão não vem de 2004, com a Globo, nem em 2005, com a Folha. E os que imaginam que o início surgiu em 1998, com a reeleição de FHC, também estão enganados

Outros pensam que foi quando o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) deu a bombástica e fantasiosa entrevista à Folha de S. Paulo, em 6 de junho de 2005, que logo repercutiu pela imprensa, tornando-se capa nos maiores jornais do país. Foi nela que o então deputado criou o neologismo “mensalão”.Muita gente pensa que a história do mensalão começou em 14 de maio de 2004, quando a TV Globo mostrou uma reportagem com um diretor da Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos (ECT), Maurício Marinho, recebendo propina de uma pessoa apresentada como um empresário.
Entretanto, estes acontecimentos expõem apenas a superfície da luta política que há por trás do chamado “mensalão”. Sua história mais profunda só pode ser entendida no quadro mais largo da luta política no Brasil. Ela começou muito antes, mesmo deixando de lado considerações sobre o ”mensalão tucano”, que irrigou a campanha eleitoral de 1998, beneficiando o candidato do PSDB em Minas Gerais Eduardo Azeredo e, também, a candidatura de Fernando Henrique Cardoso à reeleição para a presidência da República (“O valerioduto abasteceu Gilmar”. Carta Capital, nº 708, 27 de julho de 2012).
Um dos marcos dessa história foi a eleição de Fernando Henrique Cardoso em 1994, quando a coalizão tucano-pefelista imaginou iniciar um projeto de poder que, como acreditava o mentor de FHC, o ex-ministro das Comunicações Sérgio Mota, deveria durar 30 anos!

De “principe dos sociólogos” a “monarca dos políticos”

Não durou tanto. A eleição de Fernando Henrique Cardoso e seu vice do PFL (atual DEM) Marco Maciel foi impulsionada pelo lançamento do Plano Real que, em 2 de julho de 1994, introduziu o real como padrão monetário.
A promessa de fim da inflação e de uma moeda forte (de “primeiro mundo”) sensibilizou o eleitorado e transformou o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, no ansiado (pela classe dominante) anti-Lula: o candidato com apelo popular suficientemente forte para derrotar o líder operário que, em 1989, quase chegou à presidência e deixou a classe dominante em pânico.
Fernando Henrique Cardoso era, aliás, um anti-Lula conveniente para a classe dominante. Ancorado em seu passado de oposicionista à ditadura militar, sua candidatura navegou no clamor pela ética na política que os brasileiros passaram a ver como uma verdadeira bandeira programática depois do impeachment de Fernando Collor de Mello em 1992, acusado justamente de corrupção.
Coube ao governo tucano implantar o programa de Collor: o programa de privatizações, reformas neoliberais, desregulamentação das relações trabalhistas, redução dos direitos sociais e submissão às imposições do imperialismo, que Collor iniciou sem poder levar até o final.
Mas a ilusão popular com Fernando Henrique Cardoso durou pouco e diminuiu drasticamente durante seu primeiro mandato. Para assegurar a aplicação daquele programa antinacional e antipopular, o então presidente usou de todos os meios, sob uma chuva de acusações de ter comprado votos de parlamentares para mudar a Constituição e permitir, para si próprio, a reeleição para mais um mandato como presidente da República. O cientista político Bolivar Lamounier comentou com ironia, na semana daquela votação, que Fernando Henrique Cardoso – antes considerado o “príncipe dos sociólogos” brasileiros – com a reeleição podia se tornar “o monarca dos políticos” (Veja, 5 de fevereiro de 1997).
Ele tinha razão: a soberba fez o presidente governar de forma imperial, de olhos fechados para o povo e para as ruas, e de joelhos perante a classe dominante, o capital financeiro e o imperialismo, principalmente dos EUA.

Veja: “A euforia inicial pode azedar”

Estava pavimentado o caminho para o desastre. Fernando Henrique Cardoso esperou a campanha eleitoral passar e o evento de sua própria posse, em janeiro de 1999, para revelar a gravidade da crise econômica na qual sua política econômica encalacrou o país.
As medidas por ele anunciadas agravaram a crise, dificultando a vida das empresas e dos trabalhadores, com o aumento do desemprego, que já era alto.

A popularidade do presidente foi ladeira abaixo. Em dezembro de 1998 ele ainda ostentava 58% de aprovação nas pesquisas de opinião; em março de 1999, caiu para 35% e em julho ainda mais: 26%. A desaprovação crescia no mesmo sentido, passando de 37% em dezembro de 1998 para 56% em março de 1999 e para 66% em julho.Seu governo mudou o câmbio, desatrelando o real do dólar, desmanchando assim a chamada “âncora cambial”. Em consequência, a cotação da moeda norte-americana disparou de R$ 1,20 em novembro de 1998 para R$ 2,07 no final de janeiro de 1999, representando um golpe rude e inesperado nas finanças das empresas que, estimuladas pelo própio governo, haviam contraído empréstimos externos: em poucas semanas elas viram o valor em reais de suas dívidas quase dobrar. As matérias da revista Veja refletiram a gravidade da crise e o sentimento de traição de grande parte dos empresários. Uma delas tinha um título significativo: “A âncora virou anzol”; outra dizia: “A euforia inicial pode azedar” (Veja, 20 de janeiro de 1999). Contra a crise, o governo pensou na receita conservadora de sempre e, num artigo elogioso sobre o ministro da Fazenda Pedro Malan, a revista assegurou que o governo estudava a venda imediata da Petrobras (Veja, 3 de fevereiro de 1999).
Se a queda do prestígio de Fernando Henrique Cardoso era nítida, crescia a percepção de que a eleição de 2002 para sua sucessão seria vencida pelo temido Luís Inácio Lula da Silva.

Um mandato é suficiente para Lula

Os setores conservadores da política e da mídia, articulados na coalizão PSDB-PFL, alimentaram o sonho de que bastaria um mandato para Lula como presidente. E que logo o controle do Palácio do Planalto voltaria às mesmas forças políticas que sempre estiveram à frente dele: os derrotados de 2002. Apostaram que o novo governo se esboroaria em um imaginado desastre político- administrativo, que o prestígio popular do líder operário logo se diluiria, e que isso favoreceria o retorno do projeto neoliberal e seus paladinos ao governo.
Mas a realidade não saiu como seus planos e, ante a realidade adversa, tentaram construir este cenário apelando para a velha e esfarrapada banderia da corrução, já aplicada contra Getúlio Vargas (1954, levando ao suicídio do presidente), Juscelino Kubtischek (1955 a 1961) e João Goulart (1961 a 1964, resultando na deposição do presidente).
As acusações contra Lula se multiplicaram desde 2004 quando os sonhos de esboroamento do governo se desfizeram, principalmente depois do bom desempenho de candidatos apoiados por Lula na eleição municipal daquele ano.
Ao contrário das esperanças conservadoras, a popularidade do governo Lula não cedia. Se o grau de aprovação do governo caiu, em 2004, chegando a 29% (fruto dos problemas que o governo enfrentava devido à “herança maldita” de FHC e também das acusações feitas através da mídia conservadora), o grau de confiança popular no presidente permanecia: 54% (Jornal do Brasil, 29 de junho de 2004).
Os brasileiros começavam a notar a diferença entre a nova era que se iniciava sob Lula e o período de retrocesso e empobrecimento vivido sob Fernando Henrique Cardoso. De um lado, essa diferença se manifestava na retomada da economia e do emprego. Em 2004, informa o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho e do Emprego) foram criados 1,8 milhão de empregos formais, muito acima do milhão de novos empregos do último ano do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Outro sinal importante de mudança – e inquietante para os conservadores e neoliberais – foi o anúncio feito pelo governo, em março de 2005, de que não renovaria o acordo com o Fundo Monetário Inrternacional (FMI) assinado por Fernando Henrique Cardoso em 2002 e que reforçou a submissão do Brasil às autoridades financeiras daquele organismo e do imperialismo. Aquele anúncio apontava para o fortalecimento da soberania nacional e para a recuperação da autonomia do país em matéria de política econômica, o que é inaceitável para a direita neoliberal.

Fernando Henrique Cardoso defende a “ruptura institucional”

Neste quadro, a tática que sobrava para a direita e para os conservadores era investir numa cruzada moralista para abalar o governo do presidente Lula. Paralelamente ao espetáculo midiático protagonizado por Roberto Jefferson e personagens de seu quilate, Fernando Henrique Cardoso repercutia em artigos e discursos aquelas acusações usando-as como base para orientar seus prosélitos do campo conservador e direitista.
No auge daquela campanha midiática, o ex-presidente tucano repetiu em sua coluna nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo afirmações de que “o partido do presidente e seu governo estão envoltos num tsunami de suspeitas de corrupção” (publicada em 8 de agosto de 2005). Mas fazia uma ressalva dizendo-se cheio “de cuidados para não atribuir ao presidente culpas específicas em função de suas responsabilidades gerais”, embora afirmasse que o presidente não assumia essas responsabilidades deixando de fazer “o que o País espera: governar”. Mas pedia pressa: “Nesse processo, entretanto, ruma-se contra o tempo. O país perderá se deixarmos passar a hora”, insinuando (claramente) a tomada de medidas contra o presidente – o impeachment.
Em artigo publicado em abril de 2005, naquela coluna, Fernando Henrique Cardoso teve a desfaçatez de propor que, ante as acusações contra o governo, a oposição (isto é, o conluio direitista e conservador) devia estar preparada para tudo, inclusive para uma ruptura institucional! Isto é, para o golpe. Esta ambição recuou logo para o objetivo de impor ao presidente Lula o compromisso de não se candidatar à reeleição em 2006.
Em 5 de julho de 2005 Fernando Henrique Cardoso voltou à carga apelidando as acusações como “inéditas em nossa história”, mantendo a ressalva de que “até agora nada indica que o presidente Lula tenha diretamente algo a ver com tudo isso”.
Mas insistia na tese de que “Lula deveria anunciar que não é mais candidato à reeleição” (entrevista à revista Exame,1º de setembro de 2005). E tentava explicar a chantagem: isso “poderia aliviar a crise e permitir que [Lula] volte a ser candidato se as coisas andarem bem”.
Deixava claro o objetivo político da cruzada moralizante da mídia conservadora e da oposição neoliberal e de direita: abrir caminho para sua volta à presidência da República com o afastamento de Lula e da esquerda da disputa eleitoral de 2006.
Lula rejeitou prontamente a chantagem. Como mostraram os repórteres Cristiano Romero e Raymundo Costa (“Como Lula deu a volta por cima”, Valor Econômico, 21 de maio de 2010), sua reação foi forte e embutia uma ameaça da qual a direita e os conservadores fugiam como o diabo da cruz: “Se eles estão pensando que vão me tirar daqui no tapetão, nem pensar! Vou pra rua”, disse ele numa reunião.

Impeachment

Se o presidente não aceitava as pressões para desistir da disputa, era preciso tirá-lo – esta foi a tese que começou a crescer no campo da oposição conservadora e de direita. Fernando Henrique Cardoso, o principal dirigente da oposição conservadora e neoliberal, defendeu a tese em seu costumeiro estilo sinuoso e aparentemente indireto. Em julho de 2005, numa coluna em O Estado de S. Paulo, referiu-se ao impeachment de Collor num claro paralelo à crise criada em torno do presidente Lula. “Os fatos foram mais fortes do que tudo e nos curvamos a eles e à necessidade da depuração”, escreveu, concluindo com uma espécie de “garantia” ao dizer que “a democracia resistiu galhardamente” (O Estado de S. Paulo, 5 de julho de 2005).
O subtexto era claro: em sua opinião o afastamento de Lula poderia não significar riscos à democracia na forma como um conservador como Fernando Henrique Cardoso a compreende.
Em agosto ele voltou à carga. Insistindo na acusação de que nunca teria ocorrido, “na História do Brasil, uma sequência de desvios de conduta tão deprimente como a que foi montada no País sob os auspícios de um partido, o PT” (ele deixava de considerar, é óbvio, a pilhagem do patrimônio público ocorrida em seu governo, entre 1995 e 2002), e pedia que as responsabilidades recaíssem “sobre cada indivíduo na proporção dos erros cometidos. Seja qual for o resultado das investigações, o importante é que, em seguida, haja as punições de acordo com as leis”. Sem reservas: “se crime de responsabilidade houver ou quebra de decoro parlamentar, sigam-se as regras estabelecidas na Constituição com todas as consequências”. O alvo da expressão “crime de responsabilidade “não podia ser outro senão o presidente Lula, não deixando dúvida de que a pena constitucional defendida naquele texto só podia ser seu impeachment (O Estado de S. Paulo, 8 de agosto de 2005).
O auge da crise ocorreu na ocasião do depoimento do publicitário Duda Mendonça à CPI dos Correios, em 11 de agosto de 2005. Orientado pelo senador Antônio Carlos Magalhães, um dos principais líderes da direita brasileira desde a década de 1950, seu depoimento associou a campanha presidencial de 2002 a irregularidades eleitorais referentes ao financiamento da campanha; elas dariam o pretexto para o pedido de anulação judicial da vitória de Lula em 2002 – podendo passar a presidência da República ao segundo colocado, José Serra!

Lula: “esses caras não conhecem minha ligação com o povo”

“O governo Lula balançou” naquele dia, dizem os repórteres Cristiano Romero e Raymundo Costa e, no dia seguinte, a cúpula do Palácio do Planalto fez um exame detalhado da situação, encarando “o impeachment como uma ameaça concreta”, afirmam aqueles repórteres. Lula revelou que um auxiliar havia proposto, dias antes, que renunciasse à reeleição em 2006, aceitando os acenos de trégua feitos por Fernando Henrique Cardoso. “Esses caras são gozados”, respondeu Lula, reafirmando a disposição de continuar no páreo. “Eles não conhecem a minha ligação com o povo. Isso não vai acontecer! Vou ganhar a eleição desses filhos da mãe!”. Desenhava-se, cada vez com mais força, a reação que faria os conservadores e a direita recuar: o apelo à rua (Valor Econômico, 21 de maio de 2010).
Mas foi exatamente o temor dessa ligação do presidente com o povo que intimidou a direita e os conservadores. A pretensão de levar o presidente ao impeachment começou a perder força quando os dirigentes da oposição avaliaram, numa reunião realizadas na segunda feira seguinte ao depoimento de Duda Mendonça, não terem votos no Congresso Nacional nem apoio popular para tirar o presidente. “Não há clima político para o impedimento e o pedido, se houver, tem de vir da sociedade”, disse o senador tucano Arthur Virgílio, depois da reunião (Valor Econômico, 21 de maio de 2010).
À sua maneira, o então senador tucano Arthur Virgílio manifestou os temores da direita e dos conservadores: o medo da reação popular. Isto é, da “rua”.
No passado, a “rua” já se manifestara contra a mesma linha política representada pela coalizão tucano-pefelista: em 1954 quando, após o suicídio de Getúlio Vargas, a população apedrejou instalações de empresas norte-americanas e redações de jornais que participaram da campanha contra o presidente em capitais como Rio de Janeiro, São Paulo ou Porto Alegre. A manifestação teve força suficiente para barrar o golpe em andamento, que ficou “adiado” por uma década. Em 1964, a direita conquistou a “rua”, mas sem mobilizar os trabalhadores a seu favor: as passeatas contra Goulart foram frequentadas pela classe média carola e anticomunista que deu um ar de apoio popular ao golpe de Estado.

A direita perdeu a “rua”

As mais recentes manifestações da “rua” não foram exatamente a favor do programa da direita e dos conservadores. Em 1984, multidões exigiram as Diretas Já, apressando o fim da ditadura militar. Em 1992, ergueram-se novamente contra o programa neoliberal de privatizações e cortes de direitos sociais do presidente Fernando Collor de Mello.
Em 2005 havia, de fato, um risco para a direita e seus dirigentes estiveram à beira do pânico quando, em julho, estudantes que participavam do 49º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Goiânia, juntamente com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) colocaram 20 mil pessoas nas ruas da capital goiana contra o golpe em andamento, em apoio ao presidente Lula e à ordem constitucional e em defesa das reivindicações contidas na Carta ao Povo Brasileiro, que fora entregue ao presidente em junho, assinada por 42 entidades do movimento social. Ela convocava manifestações populares contra a campanha da direita e por mudanças no rumo do governo.
Lula reconheceu o significado daquela iniciativa ao receber a Carta dizendo: “essa é a diferença dos amigos e dos companheiros como vocês em relação aos que apareceram no meu caminho nos últimos anos. É bom contar com vocês nessa hora” (Folha de S. Paulo, 22 de junho de 2005).
A direita perdera a “rua” e se consolava com um discurso conveniente, para eles, de que o povo teria sido “comprado” pelos programas sociais (como o Bolsa Família) e pelas melhorias econômicas trazidas pelo governo Lula.

Ilusões desfeitas no moinho da política

Na entrevista para a revista Exame (1º de julho de 2005) Fernando Henrique Cardoso ainda mantinha a ilusão de obter apoio popular para a campanha que liderava contra o presidente Lula. Fora assim no passado – em 1954 ou 1964, por exemplo; porque seria diferente agora? Para explicar a popularidade de Lula, apesar dos ataques que sofria, ele usou um sofisma. “A opinião pública reage lentamente”, disse, acrescentando um preconceito elitista, de classe, ao argumento: “A opinião mais esclarecida já perdeu a confiança, o povo não. É um movimento que aos poucos vai se espalhando”. “Opinião mais esclarecida”, aqui, é uma expressão que se refere aos setores conservadores que aderiram à campanha anti-Lula; ele esperava que estes setores, tradicionalmente formadores de opinião, repercutissem as teses da campanha conservadora, obtendo a adesão dos trabalhadores e do povo. Mas o país já tinha mudado, e muito – e o que se viu, nos meses seguintes, foi a falência destes formadores de opinião, que perderam cada vez mais a capacidade de influir sobre as decisões dos demais. Basta lembrar o fracasso do pífio Cansei! que a direita tentou convocar em 2007, e que deu em nada.
Sem perceber, ou admitir, que a questão não é de moralidade ou ética, esta ilusão conservadora se juntava a outras desfeitas no moinho da política e da luta de classes.
O velho e persistente conflito entre desenvolvimentistas e neoliberais – que, desde os primórdios da República, manifestou-se no confronto entre industrialistas e os dogmáticos da “vocação agrícola” do Brasil – foi reposto com força no final da ditadura de 1964. Os interesses do capital financeiro e do imperialismo confluíram no programa neoliberal imposto pelo Consenso de Washington reforçando a posição subordinada do Brasil na divisão internacional do trabalho.
Num país como o Brasil, onde a divisão de classes atingiu alto grau de complexidade, a luta de classes em torno do projeto neoliberal envolveu inclusive setores das classes dominantes que discordavam de alguns aspectos parciais, como destacou o professor Décio Saes num artigo publicado na revista Princípios, em 1996.
Embora praticamente toda a classe dominante fosse favorável à desregulação das relações de trabalho e ao programa de privatizações, cada uma de suas facções tinha lá seu próprio neoliberalismo. Os grandes bancos brasileiros, por exemplo, não queriam a abertura do sistema financeiro aos estrangeiros. A grande burguesia industrial, representada pela Fiesp e pela CNI, queria a liquidação dos direitos sociais e trabalhistas, mas resistia à abertura do mercado ao capital estrangeiro e, sobretudo, à enxurrada de importações representada pela abertura econômica que ameaçava, inclusive, o “desaparecimento do empresariado industrial e a conversão dos antigos industriais em importadores de similares estrangeiros” (Décio Saes, “O governo de FHC e o campo político conservador”. Princípios Nº 40, fevereiro/março/abril de 1996).

Aldo Rebelo: “A rua não tem regimento interno”

Lula manifestou uma notável percepção deste dissenso. Se há uma contradição de classe mais geral, que opõe o proletariado à burguesia, ou os trabalhadores às classes dominantes, os conflitos dentro da própria classe dominante têm também uma expressão política que se manifesta na oposição entre programas para o país – e o neoliberalismo de Collor e Fernando Henrique Cardoso atendia sobretudo aos interesses da oligarquia financeira aliada do imperialismo.
Naquela conjuntura, cresceram os acenos do presidente em direção aos sindicalistas, trabalhadores e ao movimento social. Em 12 de julho de 2005 – em plena crise – ele colocou no Ministério do Trabalho e do Emprego o ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e ex-presidente da CUT, Luiz Marinho. Era uma sinalização importante, reforçada pela aceleração do processo de recuperação do valor do salário mínimo.
A disposição de “ir pra rua” acompanhava estas mudanças. Na reunião ocorrida no Palácio do Planalto no dia seguinte ao depoimento de Duda Mendonça, Lula reafirmou esta disposição: “Nós vamos pra rua defender o mandato que o povo nos deu”, disse Lula (Valor Econômico, 21 de maio de 2010).
A “rua” – este era o fantasma dos pesadelos conservadores e da direita. Temor ressaltado pelo deputado comunista Aldo Rebelo ao final de uma reunião com Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, que teve a participação dos então ministros Márcio Thomaz Bastos e Antônio Palocci. O tema da conversa, ocorrida depois do depoimento de Duda Mendonça, foi a questão do impeachment, e os ministros manifestavam preocupação com a agressividade da oposição.
A oposição temia, dizem os repórteres Cristiano Romero e Raymundo Costa (Valor Econômico, 21 de maio de 2010), que a reação de Lula a um processo de impeachment pudesse ser um apelo ao instinto de classe dos trabalhadores: “o primeiro trabalhador a chegar à Presidência da República ia ser degolado pela elite”, seguido de um inevitável aprofundamento das contradições políticas no país. Temor acentuado quando Aldo Rebelo advertiu o ex-presidente: “Rua não tem regimento interno”. Isto é, seu desenvolvimento pode ser imprevisível, ao contrário dos embates no âmbito do parlamento, onde existe um regimento interno que estabelece as regras para o confronto.
Tudo indica que a frase de Aldo Rebelo repercutiu no ânimo da liderança tucana. “O problema é o seguinte: temos força?” [para o impeachment], perguntou o ex-presidente aos senadores tucanos Arthur Virgílio e Tasso Jereissati, que era presidente do PSDB. Virgílio já havia concluído, antes, que não tinham. E o próprio Fernando Henrique chegou a essa conclusão na conversa finalizada com a advertência de Aldo Rebelo. “O impeachment é um ato político, o jurídico é outra coisa. Você vai para o tribunal. O ato político você tem que ter força para ganhar, não é ter a razão”, disse aos ministros e ao deputado que foram conversar com ele. E a oposição de direita e conservadora reconhecia não ter força para ganhar.

A “tática do jagunço”: sangrar o adversário até que morra

A consequência foi uma mudança na tática da oposição. Se Lula não aceitou desistir da reeleição, se o impeachment era inviável pela falta de força da direita, o caminho escolhido por ela e pelos conservadores foi aquilo que pode se chamar de “tática do jagunço”: sangrar o adversário até a morte. Investir contra ele, de todas as formas imagináveis, com o objetivo de desmoralizá-lo e erodir a alta aprovação popular, levando-o à derrota na eleição de 2006.
Isto intensificou a campanha moralista da oposição, que passava a apostar no desdobramento das CPIs e em sua repercussão na imprensa conservadora. A “tática do jagunço” mobilizou os cardeais tucanos e pefelistas, de Tasso Jereissati a Jorge Bornhausen, José Serra e Aécio Neves (Valor Econômico, 21 de maio de 2010). Os meses seguintes e a campanha eleitoral de 2006 foram marcados por ela e pelas acusações mais inverossímeis, caluniosas e irresponsáveis que o país assistiu até a véspera da eleição de 2006. Foi, contudo, um vale-tudo inútil cujo resultado é conhecido: a direita e os conservadores perderam.
Os propagandistas do chamado “mensalão” alardeiam tratar-se do “maior escândalo de corrupção da história da República”. Esquecem do mar de lama constituído pela privataria tucana e pela entrega de patrimônio público a empresas privadas (muitas delas multinacionais), a preços aviltados. Esquecem do esquema de financiamento das campanhas de 1998, envolvendo o candidato tucano em Minas Gerais (Eduardo Azeredo) e também Fernando Henrique Cardoso. Ele e a cúpula de seu governo não esqueceram, e uma das últimas medidas do então presidente da República foi aprovar uma lei, no final de seu governo (em 24 de dezembro de 2002) garantindo foro privilegiado a ex-presidentes, ex-ministros, ex-governadores, ex-secretários de Estado e ex-prefeitos e por aí vai, subtraindo o julgamento de suas ações à justiça comum. Medida que indica o temor de precisar comparecer perante os tribunais para responder por aquilo que fez na presidência da República.

Ganhar no tapetão

O processo continuou na justiça. Com base nas apurações feitas pelas CPIs em agosto de 2007 o Supremo Tribunal Federal (STF) aceitou a denúncia apresentada em abril de 2006 pelo Procurador Geral da República, iniciando o processo contra os acusados pelo chamado “mensalão”. É o processo cujo julgamento entrou em sua fase final no dia 2 de agosto.
As alegações deste processo, baseadas em argumentação frágil, reiteram o caráter político de seu desdobramento e acentuam o objetivo de condenar o governo de Luís Inácio Lula da Silva e a esquerda em geral, acusados de imersos no apelidado “maior escândalo de corrupção” da República.
Mas não há provas e este é o problema para a oposição. Inexistência de provas reforçada inclusive pelas alegações do autor da farsa do “mensalão” – Roberto Jefferson – ao STF, em setembro de 2011, como revelou a colunista Hildegard Angel (Portal R7, 15 de setembro de 2011). Em sua defesa, o denunciante afirma que o “Mensalão nunca existiu. Não foi fato. Foi retórica”.
O caráter político do julgamento do chamado “mensalão” revela-se nessa fragilidade. A mídia conservadora e a direita neoliberal condenaram antecipadamente aqueles a quem acusaram pelo crime do “mensalão”. E agora colocam uma faca no pescoço do STF, exigindo que ratifique esta condenação “extrajudicial”. Este é o grande problema da direita e dos conservadores. Que mesmo assim não deixam de usar aquelas acusações e o julgamento como ferramenta política contra o ex-presidente Lula e a esquerda (“Com a faca no pescoço. Ou sem a faca?”. Retrato do Brasil, edição nº 55, fevereiro de 2012).
Uso, agora, defensivo: em meio às graves dificuldades eleitorais que vai ceifando, eleição a eleição, os quadros mais notáveis do conluio tucano-pefelista, esperam agitar as sessões do STF no mesmo espírito da “tática do jagunço”: sangrar o adversário para pelo menos reduzir sua força na eleição deste ano e criar algumas dificuldades para a disputa de 2014.
Por José Carlos Ruy, Vermelho

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Direitos do cidadão tipo "deu mole, mané" ou "azar o seu"



A coluna desta quinta-feira foge um pouco do padrão. Tentarei fazer uma antropofagia acerca do que ouvi outro dia em seminário na Goethe-Universitätde Frankfurt. Tratava-se de Justiça(s) de transição no mundo. Na ocasião, o jurista alemão Klaus Günther apontou um interessante esquema para aplicar em Justiça de transição. Claro que ele falava da transição política de regimes ditatoriais/autoritários para a democracia. Disso, fiz uma pequena adaptação para uma constante “justiça em transição” em países periféricos como o Brasil.

Aqui, ultrapassada a transição da ditadura para a democracia, penso que lutamos, hoje, outra guerra. E ela é constante. É o resultado da não superação de nossa histórica desigualdade social. Da não superação da estrutura estamental denunciada por Faoro que teima em se manter e se reproduzir (vejam, por exemplo, o número de filhos de políticos buscando uma “boquinha” nestas eleições, para manter a “tradição política da família”). Trata-se também de falar da não superação da enredada sonegação de direitos da patuleia e a manutenção de privilégios dos estamentos. A propósito: por onde anda a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição?

Por outro lado, o que dizer do famigerado “foro por prerrogativa de função”, eufemismo para privilégios revelados na histórica impunidade da elite política? É o cidadão sendo assaltado — real e simbolicamente —, o subcidadão sendo ignorado e o sobrecidadão privilegiado. É o cidadão desrespeitado, enganado pelas companhias telefônicas, pela TV a cabo, pelas companhias aéreas, fábricas de automóveis, etc. Sintomas que apenas desnudam desmandos históricos. Vítima da corrupção secular (não sou ingênuo a ponto de crer que o mensalão foi o maior desvio ocorrido no país ou que será um ponto de mutação sem uma reforma política séria e o fim do foro privilegiado — o mensalão é a ponta do iceberg “estamental”). Sem direitos sociais para quem precisa. Um “estado de natureza consumerista”. Há, nisso tudo, uma inversão de “culpas”. Tentarei explicar isso na sequência.


Vejamos o papel do Direito, mormente o penal, principalmente neste momento em que há uma guerra em torno do projeto do novo Código Penal. O projeto, de fato, não é grande coisa. Mas, convenhamos: durante todos esses anos, por que o velho Código Penal não gerou essa revolta? Quantos livros foram escritos comentando o (velho) CP sem que, ali, fossem apontados absurdos semelhantes ao que o projeto retrata? Sigo. Primeiramente, essa Justiça em constante transição simbólica precisa realizar uma filtragem hermenêutico-constitucional dos tipos penais que aí estão, para que abandonemos o modelo de proteção máxima do “ter” e o desrespeito com o “ser” (humano). Só para registrar: o Código Penal protege muito mais a propriedade do que a vida. Depois, ele — e aqui me abebero da conferência de Günther — tem que levar em conta uma importante função: a comunicação de uma mensagem. Essa mensagem comunicativa da pena é o que importa para as pessoas que sofreram a injustiça. O desejo primário dos que sofrem injustiças: querer que os perpetradores sofram um castigo (interessante notar as cifras ocultas da criminalidade... sem confiança no “sistema”, mais de 60% dos crimes sequer são levados ao conhecimento das autoridades... por que será?). O Estado tem que passar a mensagem de que o fato ocorrido foi ilícito. Caso contrário, podem acontecer três fatores, dos quais deixo um de fora, porque aplicável na especificidade da Justiça de transição no plano da política:
1) Eigene Fehler Dummheit — a pessoa pode pensar que o que aconteceu foi por culpa dela; porque deu mole; foi burra. Acrescento: as autoridades podem fazer crer à vítima que a culpa foi dela.
2) Unglück (Pech gehabt) — a vítima pode pensar que o fato ocorreu porque deu azar (ela é mesmo uma “pessoa sem sorte”).



Em ambos os casos, há uma perda de autoconfiança da vítima (pensem nisso como o cidadão em geral, vítima constante para além do Direito Penal). O papel do Estado é o de provar a culpa, mesmo que não haja pena a ser aplicada. O Direito deve comunicar isso à sociedade e às vítimas (só para registrar: sim, eu acredito no Direito Penal; nenhum país do mundo abriu mão do Direito Penal; portanto, não quero lidar com a problemática da violência de forma idealista ou idealizante). Fatos que envolvem a dignidade da pessoa e a segurança dela não podem ser interpretados como decorrentes do acaso, do azar ou de sua própria culpa. Aqui, as famosas “cestas básicas” podem ser um “tiro no pé” do sistema. Ou seja, se abuso de autoridade, bondosa figura típica criada em plena ditadura, é considerado crime de menor potencial ofensivo em razão de sua penalidade irrisória, igualado a uma contravenção de latido de animais, é porque perdemos o sentido da diferença e não respeitamos a dignidade humana. Todos os gatos “viram pardos”.

Para evitar essas alternativas ruins acima referidas, o Estado deve investigar e dizer/apontar os culpados. Aqui, de pronto, aparece um grande problema da polícia brasileira: se não há flagrante, não se investiga — ocorre a banalização... e a perda da confiança por parte das vítimas. Existem dados que demonstram que, atualmente, nas grandes capitais, mais de 90% das ações penais decorrem de auto de prisão em flagrante. Não se investiga. Obviamente, a criminalidade do colarinho branco, que exige tecnologia e inteligência, agradece. E muito. Enquanto isso, meio milhão de presos desdentados no sistema carcerário.

Vamos lá. Nossa fábrica de injustiças sociais e privilégios odiosos não fecha... Ou alguém já parou para refletir por que não temos as estatísticas de criminalidade do nível da Suíça (ou da Espanha)? Como acentua Pablos de Molina, “cada sociedade possui a criminalidade que produz e merece”. Mas vejamos como isso é tratado na cotidianidade do (não) exercício da cidadania: a vítima é assaltada e, quando reage, é criticada. E lá vem a mensagem da autoridade: “Não reaja.” Mais: “Carregue nos bolsos o dinheirinho do assalto”, “Não irrite o assaltante”. Não estou dizendo que a vítima deva reagir. O que quero denunciar é que se coloca uma espécie de alternativa ruim para a vítima: “Não dê mole para o assaltante...; não aparente posses etc.” Com isso, inverte-se a relação que está lá na Constituição: há um direito fundamental à segurança pública. O sujeito é assaltado e se diz: “Também... o trouxa ficou dentro do carro... veio o assaltante e, bingo (!), consumou o ato.” É?! Quem sabe podemos ler isso de modo diferente? É um direito do cidadão andar por aí, pelas ruas etc. É o Estado que deve dar segurança para o cidadão. O cidadão está certo. O assaltante, não. O quero dizer é que isso deve ser comunicado à vítima. O cidadão deve saber que o Estado se importa com ele.

Não há vagas nos presídios. Solução do establishment: indultos natalinos e afrouxamento no cumprimento das penas (o Brasil é o único país do mundo em que um assaltante cumpre apenas uma quinta parte da pena). Alguém acha que as autoridades assim agem porque acreditam na “recuperação” dos presos? Claro que não. As autoridades agem assim porque fazem uma análise econômica. Os presídios — autênticas masmorras medievais — são como “hotéis”. As diárias vencem. Alguns saem, outros entram. O próprio governo concorda que os presídios são masmorras. Mas não investe. Prefere fazer “projetos”. Mesmo assim, são mais de quinhentos mil presos. E, então?

Para além do Direito Penal. O trânsito brasileiro mata mais do que a guerra. O que se diz por ai? Osexperts, os governantes e os políticos dizem que “a culpa é dos motoristas”. É? Será mesmo? Quem sabe podemos ler esse fenômeno de outro modo... Por exemplo: seríamos nós, terrae brasiliensis, os piores motoristas e, por isso, a matança no trânsito é a maior do mundo? Não seria também porque temos os piores carros do mundo, que são vendidos sem airbags — com a conivência do Estado —, com chassis fracos, que são rejeitados na Europa e nos Estados Unidos (para falar apenas nesses dois mercados)?[1] Já leram os números? Mais de 80% dos que morrem em eventos de trânsito estavam em carros sem airbags, os chamados “populares” (ou carros velhos), que são vendidos aos incautos brasileiros, trouxas, porque aqui não se dá “bola” para “isso”. Vejam a diferença entre bater um carro com airbag e um sem airbag... Mas, por que permitimos que os carros sejam vendidos semairbags e com chassis de lata velha? Hein? Mais: motoristas morrem em ultrapassagens perigosas. Claro, com rodovias não duplicadas, a probabilidade é “n” vezes maior do que em rodovias duplicadas. Mas cobramos pedágios, é claro! PS: antes que alguém diga que estou sendo “pequeno-burguês” (sic) e que estou preocupado demais com essas “coisas”, adianto-me para dizer que “estou preocupado, sim”, exatamente como estou preocupado com as contradições e idiossincrasias do Direito Penal, como, por exemplo, o fato de que tratamos com mais rigor os crimes de furto do que os delitos de sonegação de tributos (por exemplo, pagando o valor sonegado, extingue-se a punibilidade...).

Há muitas mortes de pessoas tentando atravessar as rodovias. Dizem os jornais: “pedestres descuidados, imprudentes...”. Será mesmo? Qual a razão para que o Estado não construa passarelas? Por que o patuleu tem de andar 1 km (ou mais) para atravessar a rodovia? Ciclistas são mortos em acostamentos... Culpa deles? É? E por que permitimos que rodovias sejam construídas com acostamentos fora dos padrões internacionais (e com superfaturamento)?

Esse é, pois, o “problema do cidadão”... Ele “dá mole para o ladrão, dirige mal, entra mal nas curvas, ultrapassa mal...”. Vá à Delegacia de Polícia e registre uma ocorrência... Verá que a “culpa, no fundo, é sua”. “Deu mole, Mané.” “Reagiu.” “Falou no celular.” Alguma coisa você fez. Não é possível que o Estado possa ter responsabilidade... No fundo, a manchete que o establishment (que ocupa e se serve do Estado, politicamente) desejaria é: “Neste final de semana, no RS, mais 27 pessoas ‘deram azar’ e foram esfaqueadas; 22 foram mortos ‘dando bobeira’ e 13 se ‘descuidaram’ e foram assaltadas.” Ah, bom.

Você quer ser atendido em hospital. Mesmo que tenha plano de saúde, é uma guerra. A culpa é... das pessoas, que não se cuidam. Dão mole para o mosquito da dengue, não se vacinaram contra a gripe, beberam no final de semana... Enfim, enchem os hospitais. Vão tomar soro em pé. A maca estará no corredor. É. É muita gente para pouca infraestrutura. Manchete: “Evite locais de aglomeração; evite os hospitais.”

Você é multado no trânsito. Faz um recurso. 99,99999% dos recursos são indeferidos em duas linhas. Imagino a seguinte explicação: “Piora o nível da advocacia”... O processo administrativo pátrio é uma piada (mas tem centenas de dissertações e teses tratando disso...). O guarda de trânsito tem “fé pública” — uma incrível fundamentação a priori, impossível sob o ponto de vista filosófico, além de inconstitucional (aliás, deve ser por isso que é inconstitucional!). Você é culpado até prova em contrário! As empresas que “alugam” os pardais para os governos ganham comissão por multas. E contribuem com “muito” para as campanhas eleitorais.

A “cidadania” é atuarial. Aliás, para além de boas dissertações e teses de doutorado, para que serve o direito do consumidor? As companhias de telefonia celular enganam milhões de pessoas (imagino um quadro no Jornal Hoje: “Como evitar a queda nas chamadas — especialista ensina truque para evitar o prejuízo”). “Dê um jeitinho.” As companhias sabem que somente alguns milhares reclamarão. Vale a pena enganar o consumidor nessa “farra consumerista”. Seus direitos estão no “0800”: disque 1, para ser otário; 2, para idiota; 3, para voltar ao menu; 4, para ser atendido por um dos “colaboradores” (tucanagem da palavra “terceirizado”). O sujeito que atende você nem sabe como funciona a empresa. Apenas lê um protocolo. E você discute com ele, pensando que o “colaborador” tem algo a ver com isso. Tsk, tsk, tsk...

Mas você sempre pode entrar com uma ação nos juizados especiais. Lá, à tardinha, o meirinho gritará: “Quem quer fazer acordo, lado direito; quem não quiser, lado esquerdo...” Suprema humilhação. Depois, uma estagiária tentará induzir você a fazer um acordo. A empresa — que engana milhões de pessoas — aposta: não vai fazer acordo... Deixa rolar. Poucos terão paciência para levar as ações até o final. Enganar a choldra vale muito a pena.

E as empresas aéreas? Você viaja como uma sardinha. Mas, seja “experto” (com xis mesmo, para imitar bem o sotaque), dirá um “especialista” no Jornal da Globo: “Chegue antes e consiga uma saída de emergência...”. Ou dispute à tapa uma saída de emergência... claro, pagando R$ 30 por trecho e viaje “confortavelmente”. Uau. Não conseguiu? Que pena. É porque você é um “vacilão”. “Deu azar, Mané.” Mas, pergunto: a agência estatal encarregada de fiscalizar as companhias não deveria exigir que os espaços entre as poltronas sejam civilizados? Nas viagens longas, eis o conselho: “Movimente as pernas... Use meias para varizes...”. Não dê bobeira, otário! Com certeza, as companhias aéreas não são responsáveis por seu desconforto. A escolha da companhia é uma decisão do cliente... Uau de novo! Sugiro uma pauta para o Programa Ana Maria Braga: “Como viajar bem em bancos desconfortáveis — pequenos truques para você sofrer menos.” Convidado especial: Ex-Ministro da Defesa Nelson Jobim! Lembram-se quando ele “descobriu” que as poltronas eram desconfortáveis? Céus. Todos pensaram: agora vai...!

Sabem quantas multas — dessas que são aplicadas pelas “agências reguladoras contra as empresas prestadoras de serviços públicos, sejam elas submetidas a qualquer um dos regimes jurídicos possíveis” — são, de fato, pagas? Menos de 10%. O resto vai para as calendas. Sua ligação do celular cai toda a hora? A companhia fez um cálculo: mesmo sendo multada, não pagará. Vale a pena enganar a patuleia (rafanalha, ratatulha). Manchete: “Governo endurece com as companhias.” E os patuleus dizem: “Agora vai.”

Voltando ao Direito. O cidadão está com baixa autoestima. Mas parece que tudo conspira contra ele. Porque, de certo modo, terceirizamos nossos direitos e nossa cidadania. Ao invés de reivindicar, ou deixamos como está ou corremos ao Judiciário. Aliás, o Judiciário resolve tudo... até nos livra dos candidatos “fichas sujas” (como somos idiotas, não sabemos escolher). Sua vida está facilitada. Você não corre o risco de votar em um ladrão! Ufa!

Problemas na saúde? A patuleia está tomando soro em pé? Não há vagas? Mas, ouvindo a propaganda eleitoral, parece que está tudo bem. São Paulo vai fazer mais; Porto Alegre terá um plus; Belo Horizonte agora vai; Rio de Janeiro continuará ainda mais lindo... Na prática, o governo, ao invés de dar o direito à saúde, fornece um bom advogado. Sai mais barato. Há estados da Federação em que o governo gasta mais no pagamento de ações judiciais do que nas políticas públicas de saúdestricto sensu.

E as “greves de zelo” que são feitas contra a população? A pretexto de operações padrões, rasga-se... a própria legislação, especialmente a Constituição e suas garantias, historicamente obtidas a duras penas. Também não vamos falar da enorme máquina pública, que parece ser um universo em expansão: não para de crescer. Gente com salário inicial de R$ 15 mil fazendo greve para obter um “novo plano de carreira”. E o resto da população, como fica diante disso? Um patuleu pergunta(ria): Com uma estrutura desse tamanho, como o mensalão não foi detectado? Tem que esperar uma CPI para descobrir que as 235 empresas que se relacionaram com Charles Watterfall fizeram “movimentações financeiras atípicas”? Hein?

Por que a sonegação é tão grande? Eis o paradoxo: quanto mais mecanismos de controle, impostos, fiscalização, etc., menos controle, menos democracia... e menos eficiência. E menos cidadania. O serviço público no Brasil parece ser um fim em si mesmo. Já notaram que ninguém quer trabalhar para os governos: todos querem ser “guardiões do Estado”. Um amigo meu, procurador do Estado, diz: “Não sou advogado do governo; sou do Estado.” Ah, bom. Estado? O que é essa entidade metafísica? Alguém já encontrou o Estado por aí? Como seria o Estado haitiano? Além disso, há outro fenômeno: a defesa dos hipossuficientes. Todos querem fazê-lo. Já não há hipossuficientes suficientes. Algumas instituições já avançam para os não-hipossuficientes. É a “luta pelos pobres” (se me entendem... talvez não seja bem “pelos” no sentido de “a favor”, mas “pelos” no sentido de “tê-los”). E tudo por conta dela, “da viúva”... Como os juristas gostam de “ontologias”, fico imaginando a “Viúva coisificada” como uma “senhora bem roliça”... Enfim, quando é da viúva, tudo fica fácil. De aposentadorias — mormente as rurais — distribuídas no atacado, com provas fragilíssimas, à licenças maternidade sem previsão legal...

Vejo na TV publicidade maciça de celulares e automóveis.Sim, automóveis “quase de plástico”. Semairbag. E, quando tem, é só para o motorista. O passageiro que se rale. Gastam tanto em publicidade que tem de vender milhares de “carrinhos standards” para pagar o custo, incluindo o cachê do Neymar. Aliás, com tanto incentivo, redução de impostos etc., como é possível que as fábricas demitam gente? Hein?

Vivemos tempos em que a imagem é tudo. Já não refletimos. Colamos “palavras e coisas”. A linguagem televisiva nos imbeciliza. Vendem-nos ilusões. E, o pior: compramos. Viva os publicitários de terrae brasilis. E, quando queremos reclamar, caímos na armadilha do “0800”. Até para termos acesso à justiça tudo ficou pós-modern(izad)o. Aos poucos, o papel está sumindo. Tudo é virtual.Clean. Nada de papel sobre as mesas dos colaboradores (adoro essa nomenclatura) da Justiça. E tudo fica ficcional. Ou alguém acha mesmo que um juiz vai ligar o computador e ficar horas na frente da tela para assistir aos depoimentos ou ler as suas alegações de pen-drive? Aliás, nem faz bem para os olhos do magistrado ficar horas na frente da pantalla...

A pós-modernidade (sem que se saiba bem o que é isso) consegue tudo. Inclusive que acreditemos nesse mundo de ficções. Até o trabalho braçal, de sol a sol, feito com os pés descalços, pode ser “vendido” como algo “charmoso”... Tudo é possível. Imagem é tudo. Lembro-me, a propósito, de uma peça publicitária que ganhou o prêmio de propaganda do ano há um tempo atrás. Descrevo, de memória. O cenário era uma antiga fazenda de café, janelas baixas, azuladas. Algo do tipo Casa-Grande & Senzala, compreendem? Os personagens são dois recém-casados, que, ao acordarem, encaminham-se ao café da manhã (servido por um patuleu de sexo feminino). Entrementes, a câmera mostra os “colaboradores” da “casa grande” se encaminhando para a plantação, com ferramentas rudimentares (típicas “daqueles tempos”). O lindo sol está nascendo. Enquanto os campesinos se afastam, o belo casal senta-se à mesa, ornada com toalha rendada e com xícaras de fino porcelanato (trazida lá do Aveiro). A cena culminante é o café sendo servido, fumegante, denso, saboroso... e uma voz em off anunciando: Café “marca tal”: “A volta dos bons tempos”![2]

O que faltou no case do café? O que não foi dito? O que não foi perguntado é: “Bons tempos para quem, cara pálida”? Do mesmo modo como já de há muito nos esquecemos de perguntar as coisas... E esquecemo-nos de reivindicar. “Tipo senzala”, não é?

É. Pois é. Bons tempos para quem? “Deu azar, vacilão?”


[1] Antes que alguém “se atravesse” e me jogue pedras, adianto-me para dizer que sei que há milhões de brasileiros que nem sabem o que é um airbag, que andam em ônibus precários e que sequer são consumidores no sentido da palavra. Mas também sei que aqueles que se enquadram no conceito de cidadania e “consumidor” estão tão alienados que também não se questionam acerca do funcionamento das agências reguladoras, do sistema de controle de impostos ou de como são indicados os ministros do STJ, do STF, etc.


[2] Até quando inventaremos tradições e diremos que elas são “boas”? Isso não é fenômeno recente, conforme nos fala Eric Hobsbawm (em A Invenção das tradições: “Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica, visam a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”), mas resta potencializado de forma inimaginável na atual quadra da história, especialmente em terrae brasilis.

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

Revista Consultor Jurídico, 13 de setembro de 2012

domingo, 9 de setembro de 2012

Fascismo: raízes históricas e ameaça atual




Fascismo: raízes históricas e ameaça actual

Por Jorge Cadima 


Nove décadas após a entrega do poder a Mussolini pelas classes dominantes italianas, o ascenso de forças de extrema direita e abertamente fascistas é uma realidade do continente europeu. Desde a glorificação oficial de veteranos das SS nas repúblicas bálticas, à entrada dos neo-nazis no Parlamento grego, o monstro ergue de novo a cabeça. Urge, pois, recordar alguns aspectos da natureza e do papel histórico do fascismo, bem como das cumplicidades que rodearam a sua ascensão. Para que não se voltem a repetir.

A «Declaração de Praga» de 2008 equacionando «nazismo e comunismo» (deixando significativamente de fora a designação «fascismo») e a subsequente resolução do Parlamento Europeu criando um «dia Europeu de Lembrança das vítimas do Estalinismo e do Nazismo», tornaram doutrina oficial de regime a grotesca falsificação histórica de que fascismo e comunismo seriam expressões gémeas de oposição às democracias liberais. A verdade é que o fascismo, em todas as suas variantes, nasceu, foi alimentado e colocado no poder pelas classes dominantes dum capitalismo em profunda crise, para esmagar pela violência os comunistas e o movimento operário, sindical e popular (mesmo nas suas variantes reformistas e social-democratas de então) e assegurar pela força a dominação de classe que sentiam ameaçada. A verdade histórica é que os comunistas foram sempre o principal alvo e as primeiras vítimas do nazi-fascismo. Foram também (nomeadamente através da União Soviética e do seu heróico Exército Vermelho) os principais obreiros da resistência e posterior derrota dessa mais brutal e agressiva expressão do capitalismo.

 
1922: A burguesia liberal italiana opta pelo fascismo

O fascismo tem a sua origem em Itália, país onde pela primeira vez chegou ao poder. Foi em 29 de Outubro de 1922 que o Rei de Itália convidou Mussolini a formar governo, por sugestão do patriarca da burguesia liberal italiana, Giolitti. O fascismo não chegava ao poder pela via eleitoral: havia apenas 32 deputados fascistas em mais de 400 membros da Câmara de Representantes do Parlamento italiano e «quase nenhum» no Senado. Isto não impediu que, nas palavras do historiador inglês Denis Mack Smith (in Mussolini, Paladin, 1983), na Câmara «uma enorme maioria, como não havia memória, desse a Mussolini um voto de confiança. Apenas os socialistas e comunistas votaram contra». No Senado houve «uma maioria ainda mais convincente do que na Câmara» e cinco ex-Primeiros Ministros liberais deram a sua confiança a Mussolini. Enquanto que «jornais e livrarias socialistas foram vandalizados e pilhas de livros foram queimados nas ruas; lojas foram saqueadas e foram arrombadas casas pertencentes a opositores políticos», «a bolsa de valores italiana registava a sua satisfação». Aliás, os deputados fascistas no Parlamento italiano haviam sido eleitos em 1921 em coligação com os liberais, coligação proposta pelos chefes da burguesia liberal e «encorajada por grandes industriais de Milão, incluindo a Pirelli e Olivetti». Essas últimas eleições antes da entrega do poder a Mussolini «decorreram num contexto de violência inusitada: talvez cem pessoas tenham sido mortas, e a atmosfera de intimidação oficialmente tolerada influenciou os resultados de forma significativa – algumas zonas de Itália estavam praticamente sob controlo fascista e os socialistas nem sequer podiam realizar aí os seus comícios eleitorais. A polícia emprestava por vezes camiões aos bandos fascistas e algumas unidades do exército forneciam-lhes armas; os juízes tendiam a pronunciar sentenças em seu favor, assegurando-lhes assim a impunidade». Apesar das condições em que se realizaram as eleições, os socialistas elegeram o maior grupo parlamentar, com 122 deputados, e o recém-criado Partido Comunista de Itália elegeu 16
(1). A conivência entre fascismo e «liberais» consolidou-se no próprio Parlamento. Ainda segundo Mack Smith, «mal fora eleito o novo Parlamento, os deputados fascistas, sob a direcção pessoal [de Mussolini] atacaram fisicamente odeputado comunista Misiano e expulsaram-no do edifício […]; empunharam pistolas na Câmara e ameaçaram outros socialistas com um tratamento idêntico. Embora possa parecer espantoso, o governo não tomou quaisquer medidas contra este tipo de comportamento».

Longe de «não terem percebido» o que iria acontecer, o grande capital, os liberais e os então poderosos agrários italianos, com o apoio activo do Vaticano(2), fizeram uma opção consciente pelo fascismo. A Marcha sobre Roma de 30 mil fascistas (27-28 Outubro 1922) foi uma farsa. Como escreve ainda Mack Smith, Mussolini «chega ao poder não como resultado duma revolução, mas após uma série de compromissos com o Rei e os representantes do antigo regime liberal». A natureza desses compromissos era de classe: «O fascismo estava a ter êxito não devido à sua ideologia, mas sobretudo devido às suas expedições punitivas que intimidavam a oposição socialista e atraiam apoiantes ricos. […] Era a estes que Mussolini fazia apelo quando anunciava que o capitalismo poderia melhor florescer se a Itália abandonasse a democracia e aceitasse uma ditadura como necessária para esmagar o socialismo e tornar o governo eficaz». Chegado ao poder (com um governo de coligação com liberais, democratas-cristãos e nacionalistas) Mussolini instalou um «reino de terror. Três deputados da oposição foram assassinados pelos fascistas e cinquenta outros sofreram assaltos físicos, na maioria dos casos em público e à luz do dia; algumas pessoas foram assassinadas na prisão; era administrado óleo de rícino, por vezes misturado com gasolina, em doses que podiam ser fatais; e membros dos bandos [fascistas] podiam assaltar à mocada ou matar sem medo de intervenção policial». Mas os representantes do poder burguês «alegremente concederem poderes de emergência por um ano», numa decisão que recorda a vontade de «suspender a democracia» expressa pela ex-Ministro das Finanças Manuela Ferreira Leite. A lei eleitoral foi alterada para que «doravante, qualquer partido que recolhesse um quarto dos votos ficasse automaticamente com dois terços dos assentos parlamentares». Nas eleições de 1924 os principais chefes liberais voltaram a apoiar Mussolini, apoio que se revela decisivo no momento de maior crise da consolidação do regime fascista: o assassinato do deputado socialista Matteotti, dias após ter denunciado no Parlamento as fraudes dessa eleição.
 
 
O fascismo: violência e demagogia ao serviço do grande capital

No início do século XX, e após décadas de grande crescimento do movimento operário e sindical, a luta organizada de largas massas de trabalhadores pelos seus direitos e condições de vida tornara-se um facto incontornável. Divididas entre a necessidade de reconhecer esse facto e o temor das suas consequências, as grandes burguesias europeias oscilam entre aceitar um alargamento de direitos, e a repressão muitas vezes brutal. Em 1913 é introduzido em Itália o sufrágio universal para os homens. O Partido Socialista Italiano – então ainda expressão política do movimento operário – torna-se uma grande força política, chegando a alcançar 156 deputados no Parlamento. Ao contrário dos seus congéneres de outras potências europeias, o PSI opõe-se à participação da Itália na I Grande Guerra. É precisamente por discordar desta posição que Mussolini – um oportunista e aventureiro político que chegou a ser director do jornal do PSI – entra em rota de colisão com o Partido, do qual viria a ser expulso no final de 1914. Apenas duas semanas após deixar o jornal do PSI, Mussolini lança o seu próprio jornal «financiado parcialmente por industriais italianos ricos que beneficiariam com uma entrada da Itália na guerra: a FIAT e outros produtores de armamentos, e também os interesses agrários» (Mack Smith). Se o movimento comunista surgiu da oposição intransigente à guerra desencadeada pelas classes dirigentes das potências imperialistas, já o fascismo esteve, desde a primeira hora, ligado à defesa da guerra imperialista, na qual a Itália viria a entrar em 1915.

Os apoios do grande capital intensificaram-se nos anos seguintes, à medida que se tornava clara a utilidade do movimento fascista, que entretanto formalizara a sua criação em Março de 1919 numa sala cedida por homens de negócios milaneses. O fascismo permitia às classes dominantes recorrer à violência sem assumir directamente o ónus da repressão, e elevar essa mesma violência a novos patamares. De igual forma, o passado de Mussolini no PSI e uma permanente demagogia onde os ataques mais ferozes ao movimento operário se misturavam com ataques verbais às velhas burguesias ajudavam a semear a confusão sobre a real natureza deste novo movimento, permitindo um apoio crescente entre camadas da pequena e média burguesia arruinadas pelas guerra e pela crise económica e entre as centenas de milhar de soldados desmobilizados que encontravam dificuldades de reinserção e de trabalho.

Da guerra surgira também a grande Revolução de Outubro, que transformou para sempre a história da Humanidade. Se a revolução bolchevique instalou o medo nas classes dirigentes, foi enorme o alento que trouxe aos trabalhadores e povos massacrados por uma feroz exploração secular e por quatro anos duma brutal guerra em defesa dos interesses das classes dominantes. No XV Congresso do PSI, realizado no final da guerra, as posições «intransigentes revolucionárias» saem vencedoras 
(3). O PSI adere à Internacional Comunista, aquando da sua fundação em 1919 (4). Embora as condições reais e a maturidade política nem sempre correspondam às palavras, é real a radicalização dos trabalhadores em Itália, como em boa parte da Europa. A ocupação generalizada das grandes fábricas do norte em Setembro de 1920 mostrou o grau de disponibilidade para a luta da classe operária italiana, mas também as limitações dos «maximalistas» do PSI (5). A derrota dessa luta marca um ponto de viragem: «quando a luta se apaga, a balança começa a pender decisivamente a favor da frente patronal» (6). A contra-ofensiva passa pela violência anti-grevista e de rua dos bandos fascistas a quem, um ano mais tarde, a grande burguesia e os agrários italianos entregam o poder.
 

O apoio das classes dominantes europeias à ascensão do fascismo

O fascismo italiano serviu de inspiração e modelo para as classes dirigentes de numerosos outros países europeus, entre os quais Portugal. A vaga fascizante tornou-se avassaladora após a eclosão em 1929 da grande crise mundial do capitalismo que, em importantes países, lançou grandes massas para a ruína e minou os alicerces da dominação de classe. O fascismo era visto como «salvador» duma ordem burguesa em profunda crise e como travão ao fortalecimento de muitos partidos comunistas que acompanhava o prestígio crescente de uma União Soviética em pleno desenvolvimento económico. Em 1933 Hitler chega ao poder na Alemanha, e em 1936 o General Franco lança o seu golpe de Estado fascista contra a República democrática espanhola. Apesar de evidentes choques de interesses entre potências imperialistas rivais, a verdade histórica é que boa parte das classe dominantes, incluindo as «liberal-democráticas», foram coniventes com o ascenso do fascismo (7). A Espanha democrática é abandonada à sua sorte pela «não intervenção» das «democracias» francesa e inglesa, uma «farsa diplomática escandalosa» (8) cujo efeito é deixar a República sozinha e desarmada perante a intervenção militar nazi-fascista em apoio às forças golpistas de Franco que, já de si, eram compostas por grande parte das forças armadas espanholas. Em 1938 Hitler anexa a Áustria e meses mais tarde a França e Inglaterra conluiam-se com Hitler e Mussolini para desmembrar a Checoslováquia, nos vergonhosos acordos de Munique. O então Primeiro Ministro inglês, Chamberlain, sugere a Hitler que a paz é possível através dum acordo que inclua «uma cooperação ulterior para pôr fim à Guerra Civil de Espanha» e «até uma solução do problema russo» (9). Como explica nas suas memórias o Embaixador da URSS em Inglaterra entre 1932 e 1939: «Em Janeiro de 1933 os fascistas tomaram o poder na Alemanha. Verificou-se uma clivagem no mundo capitalista. Formaram-se dois agrupamentos de potências: o primeiro grupo, composto pela Alemanha, Itália e Japão, colocou abertamente o problema da divisão do mundo (incluindo o capitalista); o segundo grupo, composto pela Inglaterra, França e Estados Unidos, que detinha a maior parte das riquezas mundiais, tomou partido pela defesa do status quo. No esforço para ultrapassar a clivagem e assegurar a unidade da frente capitalista contra o mundo socialista, os dirigentes do capitalismo (sobretudo da Inglaterra, França e Estados Unidos) [...] pensaram conciliar as suas rivalidades à custa da URSS. Os homens de Estado de Londres, Paris e Washington deram a entender a Hitler, por todas as formas, que poderia procurar o seu “espaço vital” no Leste» (10).

O mito duma oposição das democracias liberais ao ascenso do fascismo não tem qualquer correspondência com a realidade histórica. Pelo contrário, o filo-fascismo era moeda corrente entre as classes dominantes e o grande capital, mesmo nas principais democracias burguesas. E viria a assumir autênticos contornos de traição nacional num país como a França, onde o ódio às classes trabalhadoras levou boa parte das classes dominantes à «opção pela derrota» (para usar o título dum livro da historiadora francesa Annie Lacroix-Riz), ou seja, à opção pela aceitação da ocupação nazi e pelo colaboracionismo aberto. A colaboração de colossos do grande capital dos EUA com o nazismo (nomes como Rockefeller, Ford e outros), mesmo após a entrada dos EUA na II Guerra Mundial encontra-se bem documentada (
11). E a simpatia de boa parte da classe dominante inglesa pelo fascismo, incluindo na família real (12), não terminou com a derrota da política de «appeasement», que era na realidade de conivência com a ascensão do nazismo. Quando em Março de 1939, as tropas de Hitler ocupam o resto da Checoslováquia, as reservas de ouro desse país – que os incautos responsáveis pelo Banco nacional checo tinham colocado sob protecção inglesa – foram entregues à Alemanha nazi pelo Governador do Banco de Inglaterra, Montagu Norman, «um feroz apoiante de Hitler» (13). O dono do Daily Mail, um dos jornais de maior circulação em Inglaterra, congratulou-se com Hitler pela anexação da Checoslováquia, encorajando-o a seguir para a Roménia (14).

Mesmo Winston Churchill, que se viria a tornar símbolo da democracia burguesa inglesa durante a II Guerra Mundial, estava longe de ser um anti-fascista. O seu biógrafo inglês Clive Ponting escreve: «Churchill era um grande admirador de Mussolini, que chegara ao poder em Itália em 1922. Saudava quer o anti-comunismo de Mussolini, quer a sua forma autoritária de organizar e disciplinar os italianos. Visitou a Itália em 1927 […] e em Roma encontrou-se com Mussolini, de quem proferiu rasgados elogios numa conferência de imprensa […]. “Se eu fosse italiano, estou seguro que teria estado de todo o coração ao vosso lado, desde o início até ao fim, na vossa luta triunfante contra os apetites e paixões animalescas do Leninismo”. Durante os dez anos seguintes, Churchill continuou a elogiar Mussolini» 
(15). Churchill nutria iguais simpatias por Franco e o seu golpe fascista contra a democracia espanhola e a Frente Popular que ganhara as eleições de 1936. Diz de novo Ponting: «todas as suas simpatias estavam com Franco e o lado nacionalista. […] Todos os seus artigos deste período tornam claro qual o lado que apoiava. […] Descreveu o governo legítimo e a parte republicana como “um proletariado pobre e atrasado que exige o derrube da Igreja, do Estado e da propriedade e a instalação dum regime Comunista”. Contra eles erguiam-se “forças patrióticas, religiosas e burguesas, sob o comando do exército [...] em marcha para re-estabelecer a ordem através da instauração duma ditadura militar”» (sic!). «No Outono de 1936 Churchill recusou-se a apertar a mão ao Embaixador da República em Londres, embora se encontrasse regularmente com o representante de Franco […]. Em Julho de 1937, discursando perante a Câmara dos Comuns, apelou ao reconhecimento de Franco enquanto governo legítimo». Se Churchill veio a chefiar a resistência inglesa à Alemanha nazi, não foi por reservas ao papel que Hitler desempenhava no seu país (16), mas pelo receio de que uma Alemanha triunfante fosse uma ameaça para o domínio do Império Britânico.


O perigo do fascismo nos nossos dias

O mundo mudou muito nos 90 anos desde que Mussolini recebeu o poder das mãos da classe dominante italiana. Mas o perigo do fascismo espreita de novo, sob velhas e novas formas. Nalguns países da União Europeia (repúblicas bálticas) glorificam-se abertamente veteranos das SS. Noutros, proíbem-se organizações e símbolos comunistas. No passado dia 12 de Julho, o Parlamento da Moldávia proibiu a foice e martelo, símbolo do maior partido político do país: o Partido dos Comunistas da República da Moldávia obteve 40% dos votos nas últimas eleições.

Muitos dos ingredientes que conduziram no passado as classes dirigentes à opção pelo fascismo estão de novo presentes: um capitalismo em profunda crise, para a qual não encontram soluções no quadro do sistema vigente; um descontentamento popular explosivo face a políticas de brutal ataque às condições de vida e aos direitos laborais; o apodrecimento da vida económica e política, com o alastramento da corrupção e das fraudes em grande escala; uma profunda alteração da correlação de forças económica entre potências emergentes e potências em declínio. Há perigos crescentes de que, tal como no século XX, sectores mais agressivos e aventureiros das classes dominantes lancem mão de formas extremamente ferozes e brutais de exercício do poder, na tentativa de salvar os seus privilégios. Para as potências imperialistas, a guerra transformou-se na forma privilegiada de relações internacionais e à militarização no plano externo corresponde um crescente autoritarismo no plano interno.

Em aspectos importantes, as condições de hoje são mais graves do que as de há oito ou nove décadas: o desaparecimento da União Soviética, o subsequente enfraquecimento generalizado do movimento operário e popular e a passagem de campo duma social-democracia que é hoje pilar assumido do capitalismo mais selvagem, são factores de peso que condicionam a resposta dos trabalhadores e dos povos. A União Europeia, com a sua política ferozmente anti-popular e a sua profunda crise, está a transformar-se num factor de profundo agravamento de contradições e mesmo de rivalidades entre potências. Mas ao mesmo tempo, a realidade da natureza exploradora e agressiva do capitalismo dos nossos dias, que pretende recuperar todas as concessões a que foi obrigado pelo curso da luta de classes no século XX, está a empurrar para a luta sectores cada vez mais amplos da Humanidade.

A ferocidade do nazi-fascismo, a tragédia para a qual o conduziu o planeta, e a sua derrota às mãos da União Soviética e das resistências populares armadas, fazem parte do património histórico da experiência de luta dos povos. A defesa desta memória histórica é hoje um elemento de grande importância, até para a consciencialização dos novos contingentes que se juntam à luta dos trabalhadores e dos povos. O combate à falsificação aberta ou insidiosa da História, como as vergonhosas campanhas anti-comunistas das instituições europeias, onde pontificam herdeiros directos do fascismo, ou as campanhas rastejantes de reabilitação do salazarismo no nosso país, é uma tarefa da maior importância para todos quantos estão determinados a evitar que a Humanidade seja de novo confrontada com os horrores da primeira metade do século XX.
 
Notas
(1) Quaderni di Storia del PCI: «Dalla crisi del primo dopoguerra alla fondazione del Partito Comunista. L'avvento del fascismo», p. 66, Sezione Centrale Scuole di Partito del PCI, 1971.
(2) O mais importante opositor católico do fascismo, o padre Don Sturzo, foi obrigado pelo Papa a exilar-se em 1924 (Mack Smith, op. cit., p. 76).
(3) Quaderni di Storia del PCI, op. cit., p. 16.
(4) Filiação que não confirmou nos meses seguintes.
(5) É da crítica dessas limitações que nasce o Partido Comunista em 1921.
(6) Quaderni di Storia del PCI, op. cit., p. 50.
(7) Para mais pormenores, veja-se o artigo Sobre o fascismo e a verdade histórica, em O Militante n.º 301, Julho-Agosto 2009, pp. 47-53.
(8) A frase é do conhecido jornalista e historiador norte-americano William L. Shirer em «The collapse of the Third Republic», Pan Books 1970, p. 329.
(9) The rise and fall of the Third Reich, William L. Shirer, Arrow Books, ed. 1998, p. 419.
(10) Perché scoppió la seconda guerra mondiale, Ivan Majski, Editori Riuniti, 1965, p. 325.
(11) Veja-se o livro Trading with the enemy: an exposé of the Nazi-american money plot 1933-1949, de Charles Higham, Robert Hale Ed., 1983.
(12) Veja-se o documentário Edward VIII, The Traitor King (1995), da cadeia de televisão inglesa Channel Four, disponível na Internet e onde também se fala de Ricardo Espírito Santo.
(13) Trading with the enemy, op. cit,pp. 5-7.
(14) When Rothermere urged Hitler to invade Romania, de Neil Tweedie e Peter Day, em The Telegraph, 1.3.05.
(15) Churchill, Clive Ponting, Sinclair-Stevenson, 1994, p. 350.
(16) Ver o já referido livro de Clive Ponting (p. 393) para afirmações elogiosas de Hitler por parte de Churchill.
 
 
Fonte: Revista O Militante Nº 320 - Set/Out 2012 • Internacional

sábado, 8 de setembro de 2012

A desmistificação do governo FHC (mais uma...)


Carta Aberta a Fernando Henrique Cardoso


Meu caro Fernando,
Vejo-me na obrigação de responder a carta aberta que você dirigiu ao Lula, em nome de uma velha polêmica que você e o José Serra iniciaram em 1978 contra o Rui Mauro Marini, eu, André Gunder Frank e Vânia Bambirra, rompendo com um esforço teórico comum que iniciamos no Chile na segunda metade dos nos 1960.
A discussão agora não é entre os cientistas sociais e sim a partir de uma experiência política que reflete contudo este debate teórico. Esta carta assinada por você como ex-presidente é uma defesa muito frágil teórica e politicamente de sua gestão. Quem a lê não pode compreender porque você saiu do governo com 23% de aprovação enquanto Lula deixa o seu governo com 96% de aprovação.
Já discutimos em várias oportunidades os mitos que se criaram em torno dos chamados êxitos do seu governo. Já no seu governo vários estudiosos discutimos, o inevitável caminho de seu fracasso junto à maioria da população. Pois as premissas teóricas em que baseava sua ação política eram profundamente equivocadas e contraditórias com os interesses da maioria da população. (Se os leitores têm interesse de conhecer o debate sobre estas bases teóricas lhe recomendo meu livro já esgotado: Teoria da Dependencia: Balanço e Perspectivas, Editora Civilização Brasileira, Rio, 2000). Contudo nesta oportunidade me cabe concentrar-me nos mitos criados em torno do seu governo, os quais você repete exaustivamente nesta carta aberta.
O primeiro mito é de que seu governo foi um êxito econômico a partir do fortalecimento do real e que o governo Lula estaria apoiado neste êxito alcançando assim resultados positivos que não quer compartilhar com você… Em primeiro lugar vamos desmitificar a afirmação de que foi o plano real que acabou com a inflação. Os dados mostram que até 1993 a economia mundial vivia uma hiperinflação na qual todas as economias apresentavam inflações superiores a 10%. A partir de 1994, TODAS AS ECONOMIAS DO MUNDO APRESENTARAM UMA QUEDA DA INFLAÇÃO PARA MENOS DE 10%. Claro que em cada pais apareceram os “gênios” locais que se apresentaram como os autores desta queda. Mas isto é falso: tratava-se de um movimento planetário. No caso brasileiro, a nossa inflação girou, durante todo seu governo, próxima dos 10% mais altos. TIVEMOS NO SEU GOVERNO UMA DAS MAIS ALTAS INFLAÇÕES DO MUNDO. E aqui chegamos no outro mito incrível. Segundo você e seus seguidores (e até setores de oposição ao seu governo que acreditam neste mito) sua política econômica assegurou a transformação do real numa moeda forte. Ora Fernando, sejamos cordatos: chamar uma moeda que começou em 1994 valendo 0,85 centavos por dólar e mantendo um valor falso até 1998, quando o próprio FMI exigia uma desvalorização de pelo menos uns 40% e o seu ministro da economia recusou-se a realizá-la “pelo menos até as eleições”, indicando assim a época em que esta desvalorização viria e quando os capitais estrangeiros deveriam sair do país antes de sua desvalorização, O fato é que quando você flexibilizou o cambio o real se desvalorizou chegando até a 4,00 reais por dólar. E não venha por a culpa da “ameaça petista” pois esta desvalorização ocorreu muito antes da “ameaça Lula”. ORA, UMA MOEDA QUE SE DESVALORIZA 4 VEZES EM 8 ANOS PODE SER CONSIDERADA UMA MOEDA FORTE? Em que manual de economia? Que economista respeitável sustenta esta tese? Conclusões: O plano Real não derrubou a inflação e sim uma deflação mundial que fez cair as inflações no mundo inteiro. A inflação brasileira continuou sendo uma das maiores do mundo durante o seu governo. O real foi uma moeda drasticamente debilitada. Isto é evidente: quando nossa inflação esteve acima da inflação mundial por vários anos, nossa moeda tinha que ser altamente desvalorizada. De maneira suicida ela foi mantida artificialmente com um alto valor que levou à crise brutal de 1999.
Segundo mito - Segundo você, o seu governo foi um exemplo de rigor fiscal. Meu Deus: um governo que elevou a dívida pública do Brasil de uns 60 bilhões de reais em 1994 para mais de 850 bilhões de dólares quando entregou o governo ao Lula, oito anos depois, é um exemplo de rigor fiscal? Gostaria de saber que economista poderia sustentar esta tese. Isto é um dos casos mais sérios de irresponsabilidade fiscal em toda a história da humanidade. E não adianta atribuir este endividamento colossal aos chamados “esqueletos” das dívidas dos estados, como o fez seu ministro de economia burlando a boa fé daqueles que preferiam não enfrentar a triste realidade de seu governo. Um governo que chegou a pagar 50% ao ano de juros por seus títulos para, em seguida, depositar os investimentos vindos do exterior em moeda forte a juros nominais de 3 a 4%, não pode fugir do fato de que criou uma dívida colossal só para atrair capitais do exterior para cobrir os déficits comerciais colossais gerados por uma moeda sobrevalorizada que impedia a exportação, agravada ainda mais pelos juros absurdos que pagava para cobrir o déficit que gerava. Este nível de irresponsabilidade cambial se transforma em irresponsabilidade fiscal que o povo brasileiro pagou sob a forma de uma queda da renda de cada brasileiro pobre. Nem falar da brutal concentração de renda que esta política agravou drasticamente neste pais da maior concentração de renda no mundo. Vergonha, Fernando. Muita vergonha. Baixa a cabeça e entenda porque nem seus companheiros de partido querem se identificar com o seu governo…te obrigando a sair sozinho nesta tarefa insana.
Terceiro mito – Segundo você, o Brasil tinha dificuldade de pagar sua dívida externa por causa da ameaça de um caos econômico que se esperava do governo Lula. Fernando, não brinca com a compreensão das pessoas. Em 1999 o Brasil tinha chegado à drástica situação de ter perdido TODAS AS SUAS DIVISAS. Você teve que pedir ajuda ao seu amigo Clinton que colocou à sua disposição os 20 bilhões de dólares do tesouro dos Estados Unidos e mais uns 25 BILHÕES DE DÓLARES DO FMI, Banco Mundial e BID. Tudo isto sem nenhuma garantia. Esperava-se aumentar as exportações do pais para gerar divisas para pagar esta dívida. O fracasso do setor exportador brasileiro mesmo com a espetacular desvalorização do real não permitiu juntar nenhum recurso em dólar para pagar a dívida. Não tem nada a ver com a ameaça de Lula. A ameaça de Lula existiu exatamente em consequência deste fracasso colossal de sua política macro-econômica. Sua política externa submissa aos interesses norte-americanos, apesar de algumas declarações críticas, ligava nossas exportações a uma economia decadente e um mercado já copado. A recusa dos seus neoliberais de promover uma política industrial na qual o Estado apoiava e orientava nossas exportações. A loucura do endividamento interno colossal. A impossibilidade de realizar inversões públicas apesar dos enormes recursos obtidos com a venda de uns 100 bilhões de dólares de empresas brasileiras. Os juros mais altos do mundo que inviabilizava e ainda inviabiliza a competitividade de qualquer empresa. Enfim, UM FRACASSO ECONOMICO ROTUNDO que se traduzia nos mais altos índices de risco do mundo, mesmo tratando-se de avaliadoras amigas. Uma dívida sem dinheiro para pagar… Fernando, o Lula não era ameaça de caos. Você era o caos. E o povo brasileiro correu tranquilamente o risco de eleger um torneiro mecânico e um partido de agitadores, segundo a avaliação de vocês, do que continuar a aventura econômica que você e seu partido criou para este país.
Gostaria de destacar a qualidade do seu governo em algum campo mas não posso fazê-lo nem no campo cultural para o qual foi chamado o nosso querido Francisco Weffort (neste então secretário geral do PT) e não criou um só museu, uma só campanha significativa. Que vergonha foi a comemoração dos 500 anos da “descoberta do Brasil”. E no plano educacional onde você não criou uma só universidade e entrou em choque com a maioria dos professores universitários sucateados em seus salários e em seu prestígio profissional. Não Fernando, não posso reconhecer nada que não pudesse ser feito por um medíocre presidente.Lamento muito o destino do Serra. Se ele não ganhar esta eleição vai ficar sem mandato, mas esta é a política. Vocês vão ter que revisar profundamente esta tentativa de encerrar a Era Vargas com a qual se identifica tão fortemente nosso povo. E terão que pensar que o capitalismo dependente que São Paulo construiu não é o que o povo brasileiro quer. E por mais que vocês tenham alcançado o domínio da imprensa brasileira, devido suas alianças internacionais e nacionais, está claro que isto não poderia assegurar ao PSDB um governo querido pelo nosso povo. Vocês vão ficar na nossa história com um episódio de reação contra o verdadeiro progresso que Dilma nos promete aprofundar. Ela nos disse que a luta contra a desigualdade é o verdadeiro fundamento de uma política progressista. E dessa política vocês estão fora.Apesar de tudo isto, me dá pena colocar em choque tão radical uma velha amizade. Apesar deste caminho tão equivocado, eu ainda gosto de vocês ( e tenho a melhor recordação de Ruth) mas quero vocês longe do poder no Brasil. Como a grande maioria do povo brasileiro. Poderemos bater um papo inocente em algum congresso internacional se é que vocês algum dia voltarão a frequentar este mundo dos intelectuais afastados das lides do poder.Com a melhor disposição possível mas com amor à verdade, me despeço.
Theotonio dos Santos Júnior
Theotonio Dos Santos, Professor Emérito da Universidade Federal Fluminense, Presidente da Cátedra da UNESCO e da Universidade das Nações Unidas sobre economia global e desenvolvimentos sustentável. Professor visitante nacional sênior da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
thdossantos@terra.com.br
No theotoniodossantos.blogspot.com
Observação: Esta carta aberta foi escrita em outubro de 2010 em resposta a um artigo de FHC, que reproduzo a seguir:

PT Sem Medo do Passado

Fernando Henrique Cardoso
O presidente Lula passa por momentos de euforia que o levam a inventar inimigos e enunciar inverdades. Para ganhar sua guerra imaginária, distorce o ocorrido no governo do antecessor, autoglorifica-se na comparação e sugere que se a oposição ganhar será o caos.
Por trás dessas bravatas está o personalismo e o fantasma da intolerância: só eu e os meus somos capazes de tanta glória. Houve quem dissesse “o Estado sou eu”. Lula dirá, o Brasil sou eu! Ecos de um autoritarismo mais chegado à direita.
Lamento que Lula se deixe contaminar por impulsos tão toscos e perigosos. Ele possui méritos de sobra para defender a candidatura que queira. Deu passos adiante no que fora plantado por seus antecessores. Para que, então, baixar o nível da política à dissimulação e à mentira?
A estratégia do petismo-lulista é simples: desconstruir o inimigo principal, o PSDB e FHC (muita honra para um pobre marquês…). Por que seríamos o inimigo principal? Porque podemos ganhar as eleições. Como desconstruir o inimigo? Negando o que de bom foi feito e apossando-se de tudo que dele herdaram como se deles sempre tivesse sido. Onde está a política mais consciente e benéfica para todos? No ralo. 
Na campanha haverá um mote – o governo do PSDB foi “neoliberal” – e dois alvos principais: a privatização das estatais e a suposta inação na área social. Os dados dizem outra coisa. Mas os dados, ora os dados… O que conta é repetir a versão conveniente. 
Há três semanas Lula disse que recebeu um governo estagnado, sem plano de desenvolvimento. Esqueceu-se da estabilidade da moeda, da lei de responsabilidade fiscal, da recuperação do BNDES, da modernização da Petrobras, que triplicou a produção depois do fim do monopólio e, premida pela competição e beneficiada pela flexibilidade, chegou à descoberta do pré-sal. Esqueceu-se do fortalecimento do Banco do Brasil, capitalizado com mais de R$ 6 bilhões e, junto com a Caixa Econômica, libertados da politicagem e recuperados para a execução de políticas de Estado. Esqueceu-se dos investimentos do programa Avança Brasil, que, com menos alarde e mais eficiência que o PAC, permitiu concluir um número maior de obras essenciais ao país. Esqueceu-se dos ganhos que a privatização do sistema Telebrás trouxe para o povo brasileiro, com a democratização do acesso à internet e aos celulares, do fato de que a Vale privatizada paga mais impostos ao governo do que este jamais recebeu em dividendos quando a empresa era estatal, de que a Embraer, hoje orgulho nacional, só pôde dar o salto que deu depois de privatizada, de que essas empresas continuam em mãos brasileiras, gerando empregos e desenvolvimento no país. Esqueceu-se de que o país pagou um custo alto por anos de “bravata” do PT e dele próprio. Esqueceu-se de sua responsabilidade e de seu partido pelo temor que tomou conta dos mercados em 2002, quando fomos obrigados a pedir socorro ao FMI – com aval de Lula, diga-se – para que houvesse um colchão de reservas no início do governo seguinte. Esqueceu-se de que foi esse temor que atiçou a inflação e levou seu governo a elevar o superávit primário e os juros às nuvens em 2003, para comprar a confiança dos mercados, mesmo que à custa de tudo que haviam pregado, ele e seu partido, nos anos anteriores.
Os exemplos são inúmeros para desmontar o espantalho petista sobre o suposto “neoliberalismo” peessedebista. Alguns vêm do próprio campo petista. Vejam o que disse o atual presidente do partido, José Eduardo Dutra, ex-presidente da Petrobras, citado por Adriano Pires, no Brasil Econômico de 13/1/2010. “Se eu voltar ao parlamento e tiver uma emenda propondo a situação anterior (monopólio), voto contra. Quando foi quebrado o monopólio, a Petrobras produzia 600 mil barris por dia e tinha 6 milhões de barris de reservas. Dez anos depois, produz 1,8 milhão por dia, tem reservas de 13 bilhões. Venceu a realidade, que muitas vezes é bem diferente da idealização que a gente faz dela”. (José Eduardo Dutra).
O outro alvo da distorção petista refere-se à insensibilidade social de quem só se preocuparia com a economia. Os fatos são diferentes: com o Real, a população pobre diminuiu de 35% para 28% do total. A pobreza continuou caindo, com alguma oscilação, até atingir 18% em 2007, fruto do efeito acumulado de políticas sociais e econômicas, entre elas o aumento do salário mínimo. De 1995 a 2002, houve um aumento real de 47,4%; de 2003 a 2009, de 49,5%. O rendimento médio mensal dos trabalhadores, descontada a inflação, não cresceu espetacularmente no período, salvo entre 1993 e 1997, quando saltou de R$ 800 para aproximadamente R$ 1.200. Hoje se encontra abaixo do nível alcançado nos anos iniciais do Plano Real.
Por fim, os programas de transferência direta de renda (hoje Bolsa-Família), vendidos como uma exclusividade deste governo. Na verdade, eles começaram em um município (Campinas) e no Distrito Federal, estenderam-se para Estados (Goiás) e ganharam abrangência nacional em meu governo. O Bolsa-Escola atingiu cerca de 5 milhões de famílias, às quais o governo atual juntou outras 6 milhões, já com o nome de Bolsa-Família, englobando em uma só bolsa os programas anteriores. É mentira, portanto, dizer que o PSDB “não olhou para o social”. Não apenas olhou como fez e fez muito nessa área: o SUS saiu do papel à realidade; o programa da aids tornou-se referência mundial; viabilizamos os medicamentos genéricos, sem temor às multinacionais; as equipes de Saúde da Família, pouco mais de 300 em 1994, tornaram-se mais de 16 mil em 2002; o programa “Toda Criança na Escola” trouxe para o Ensino Fundamental quase 100% das crianças de sete a 14 anos. Foi também no governo do PSDB que se pôs em prática a política que assiste hoje a mais de 3 milhões de idosos e deficientes (em 1996, eram apenas 300 mil). 
Eleições não se ganham com o retrovisor. O eleitor vota em quem confia e lhe abre um horizonte de esperanças. Mas se o lulismo quiser comparar, sem mentir e sem descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer.