sábado, 31 de março de 2012

Que venha para apurar a verdade


Não morro de amores pela economista Miriam Leitão, não por desconsiderar os seus conhecimentos específicos, mas por divergir da ideologia que comanda sua visão econômica, que – mesmo que ela o negue - tem o viés neoliberal que vê no mercado o deus supremo.

Mas, hoje, quero falar da jornalista Miriam Leitão e, sem o menor receio de me tornar incoerente e, pelo contrário, por um dever de honestidade, registro aqui como altamente meritório e positivo o seu trabalho de reportagem – junto com o jornalista Cláudio Renato – que, no jornal “O Globo” e no canal “Globo News”, em matéria intitulada “Anos de chumbo”, traz à baila – no momento em que parece que, finalmente, se instaurará no país a “Comissão da Verdade” – o caso Rubens Paiva, jornalista preso pelos organismos da ditadura e cuja história e destino, a partir da prisão, continuam até hoje não esclarecidos “oficialmente”.

A reportagem em questão abordou honesta e criteriosamente vários aspectos do caso, ouviu o que se poderiam considerar os dois lados da questão, mas em nenhum momento deixou de revelar uma postura de indignação diante do episódio, um dos mais emblemáticos dos anos de chumbo da ditadura brasileira, suas perseguições, torturas e mortes.

Percebe-se com detalhes, através dos depoimentos dos familiares, o clima de terror que então se implantou na caça às bruxas “subversivas” que o regime militar perseguiu. Percebe-se, em depoimentos de participantes do movimento de resistência, uma motivação bem diferente da apregoada pelo regime para a luta armada em que alguns se envolveram. Percebe-se, mesmo nos atos adjetivados como terroristas, o objetivo de opor-se à repressão e libertar aqueles que, nos cárceres, penavam as torturas pelo delito de opinião e pela não aceitação do jugo militar. E, se ainda pairasse algum tipo de dúvida sobre o que então se viveu, percebe-se, no depoimento do General Rocha Paiva, a convicção de que os atos de desumanidade de então – as torturas entre eles - podiam ser justificados como uma espécie de defesa, diante de pessoas subversivas que (sic) queriam implantar no país regimes totalitários do tipo soviético, maoísta ou cubano.

Antes do golpe, havia um regime democrático no país, um regime cujos governantes tinham sido colocados no poder pelo voto. Quem viveu aquele momento histórico no Brasil , sabe que a luta que se travou no período pré-golpe não foi uma luta pelo socialismo – impensável para as condições de então -, nem por uma “república sindicalista” (jargão da época). mas pela implantação das chamadas “reformas de base” – a agrária como carro-chefe -, que os oligárquicos setores reacionários do país não aceitavam. Fundamentalmente isso. E se é verdade que havia, entre os que queriam mudanças, aqueles que as desejavam mais profundas, tratava-se de uma minoria que não oferecia qualquer perigo à “estabilidade das instituições democráticas nacionais”. Os setores conservadores, politicamente encastelados na UDN e auxiliados pela CIA (havia uma política americana para a América Latina nesse sentido) contaminaram as hostes militares com um suposto “perigo comunista”, e deram um golpe institucional, fazendo que se voltassem contra o povo os fuzis, tanques e baionetas pagos pelo povo. Afirmar que os atos de tortura do regime militar eram reação ao terror implantado pelos que reagiam é contar a história a partir da metade e, deliberadamente, omitir as motivações originais das “partes envolvidas”. E não dá para comparar essas motivações. 

A hora é, sim, de trazer de volta o convenientemente esquecido. O país não pode conviver com a ausência de esclarecimentos sobre as ações então perpetradas. E não pode, simplesmente, vulgarizar o que se passou através da palavra “anistia” que, se efetivamente se deve aplicar a muitos casos menos graves, não deveria servir para acobertar, por exemplo, a tortura. Legalmente, aliás, a anistia não se aplica aos crimes que continuam em curso. Afinal, quando se prende alguém que nunca mais aparece, que data deve prevalecer para considerar uma possível anistia? A honesta e oportuna reportagem de Miriam Leitão soma-se a um sem número de documentos, depoimentos e atos que representam posturas respeitáveis diante dos mais caros valores humanos. E se estou aqui elegendo como tema algo que já foi apresentado por muitos de meus colegas colunistas é porque penso que nunca é demais: nada deve ser esquecido e tudo deve ser apurado. Quanto mais se falar sobre isso, melhor, porque nada é mais indigno do que a tortura. Ela deixa à mostra um lado ruim que ainda mora no ser humano, a sua bestialidade ancestral. Não há como compactuar com ela, esquecer que existiu.

Recentemente, recebi de minha filha uma mensagem em que ela, antecipando um livro que vai me presentear , da poeta polonesa Wislawa Szymborska, que morreu recentemente e viveu os horrores da guerra, transcrevia o fragmento de um dos seus poemas: “Nada mudou./O corpo sente dor, necessita comer, respirar e dormir, /... tem a pele tenra e logo debaixo sangue, / tem uma boa reserva de unhas e dentes, /ossos frágeis, juntas alongáveis.
Nas torturas leva-se tudo isso em conta."

No presente, a despeito das reações que já se manifestam nos meios militares, não se pode e não se deve esquecer o passado, para que os erros brutais cometidos nunca mais se repitam no futuro. Esse é um imperativo de consciência.