domingo, 10 de janeiro de 2010

SILVIO TENDLER: Anistia x Impunidade





 Sexta-feira, 8 de Janeiro de 2010, 12:05

Amigos




O cineasta Sílvio Tendler, diretor dos filmes Jango, Os anos Jk, Marighella, 
Anos Rebeldes, Glaúber, o filme Labirinto do Basil,  o recente ainda a ser 
lançado "Utopia & Barbárie" e vários outros escreveu uma carta ao ministro 
Nelson Jobim. Vale a pena ler.Além de um belissimo texto, é um documento 
histórico. 
Boa leitura! 
POR FAVOR, EM NOME DA DEMOCRACIA, REPASSE AOS SEUS AMIGOS! 
Abraços 
Risomar 





Escrevi uma carta endereçada ao Ministro Nelson Jobim, da defesa, mas
assunto de transcendente importância, torno pública. O Globo de hoje,
por problemas de espaço publicou uma versão resumida. repasso na
íntegra
Abraços Silvio Tendler 






Ao Ministro da Defesa 
Exmo. Dr. Nelson Jobim 




Invado sua caixa de mensagem pedindo atenção para um tema que trata do
futuro, não do  passado. O Sr. me conhece pessoalmente e lembra-se de
que quando fui Secretário de Cultura de Brasília, no ano de 1996, o
Sr. era Ministro da Justiça e instituiu e deu no Festival de Cinema
Brasília um prêmio para o Filme que melhor abordasse a questão dos
Direitos Humanos. Era uma preocupação comum a nossa.




Por que me dirijo agora ao senhor? Um punhado de cidadãos, hoje
somos mais de dez mil, assinamos um manifesto afirmando que os
envolvidos em crimes de tortura em nome do Estado Brasileiro devem ser
julgados e punidos por seus atos, contrários aos mais elementares
sentimentos da nacionalidade. Agimos em nome da intransigente defesa
dos direitos humanos.




O Sr., Ministro da Defesa, homem comprometido com a ordem democrática,
eminente advogado constitucionalista, um dos redatores e subscritores
da Constituição de 1988, hoje  em ação concertada com os comandantes
das forças armadas, condena a iniciativa de punir torturadores pelos
crimes que cometeram.




Este gesto, na prática, resulta em dar proteção a bandidos que
desonraram a farda que vestiam ao torturar, estuprar, roubar,
enriquecer ilicitamente sempre agindo em nome das instituições que
juraram defender.




É incompreensível que o nosso futuro democrático seja posto em risco
para acobertar crimes praticados por bandidos o que reforça a sensação
de impunidade. Ao contrário do que afirmam os defensores da impunidade
dos torturadores.




O que está em juizo não é o julgamento das forças armadas, como
afirmam os que as querem arrastar para o lodo moral que mergulharam.
Agora pretendem proteger sua impunidade, camuflados corporativamente
em nome da honra da instituição.
Um pouco de história não faz mal a ninguém. Não está em questão que
para consumar o golpe de 64, os chefes militares de então tiveram  que
expurgar das forças armadas milhares de homens entre oficiais,
sub-oficiais e praças cujo único crime foi defender o regime
constitucional do país. Afastaram da vida política brasileira
expressivas lideranças, cassando direitos políticos e mandatos
parlamentares ou sindicais. Empurraram milhares de cidadãos, na imensa
maioria jovens,  para a ação clandestina que desembocou na luta
armada.




De qualquer maneira os golpistas de 64 protegidos pela lei de anistia
não serão anistiados pela história. Fecharam e cercaram o Congresso
Nacional. Inventaram a excrescência chamada de Senador Biônico para
não perder, pelo voto, o controle do Senado em plena ditadura militar.




Os chefes militares podem ficar tranqüilos que seus antecessores não
irão para a cadeia pelos crimes que cometeram contra um país, contra
uma geração inteira, a minha, que desaprendeu a falar e pensar em
liberdade.




Nada disso está em juízo. Vinte e cinco anos depois de iniciada a
transição democrática, o que está em juízo não é o processo de anistia
política. Tranqüilize seus colegas militares, ministro.




O regime militar não está sendo julgado pela quebra do sistema público
de saúde ou pela quebra do sistema educacional. Estamos pedindo a
punição contra criminosos comuns  por crimes de lesa humanidade.




Queremos o julgamento e condenação da prática de crimes hediondos. Só
isso. Assusta a quem? Em nome do quê o Brasil será eternamente refém
de bandidos? O que justifica acobertar crimes condenados por todos os
códigos, normas e tribunais internacionais em matéria de direitos
humanos?




O Sr. deve estar se perguntando o porquê do meu empenho nesta causa.
Vou lhe contar. Despontei pra a vida adulta baixo a ditadura  militar.
Em 1964, tinha 14 anos e cresci sob o signo do medo. Sou de uma
família de judeus liberais, meu pai advogado e minha mãe médica.
Invoco as raízes judaicas porque meus pais eram muito marcados pelo
holocausto, pelos crimes nazistas cometidos contra a humanidade.
Tínhamos muito medo das soluções autoritárias.




Eu queria viver num país livre e tinha sentimentos de profunda
repugnância a ditaduras. Meus amigos também eram assim. Participei de
passeatas, diretórios estudantis e cineclubes. Queria derrubar a
ditadura fazendo filmes. Acreditava que era possível. Em 1969, um
companheiro de Cineclubismo seqüestrou um avião para Cuba. Não tive
nada a ver com isso. Desconhecia as intenções e a organização do
seqüestro.




Meu crime foi ser amigo - sim, meu crime foi o de ser amigo de um
seqüestrador. Quase fui preso e morreria na tortura sem falar, não por
ato de bravura, mas por absoluto desconhecimento de causa. Não
pertencia a nenhuma organização revolucionária. Não sabia nada sobre o
seqüestro.




Escapei dessa situação pala coragem pessoal de minha mãe que driblou
os imbecis fardados que foram me prender e consegui fugir de casa nas
barbas da turma do Ministério da Aeronáutica que, naquele momento, ao
invés de dedicar-se a cumprir sua missão constitucional de proteger
nossas fronteiras, prendiam, torturavam e matavam estudantes. Tive
também a ajuda do Coronel Aviador Afrânio Aguiar que empenhou-se até a
medula para que não fosse preso e massacrado na Aeronáutica. A ele
dedico meu filme mais recente Utopia e Barbárie. Sem ele, dificilmente
estaria contando essa história hoje aqui.  Outras pessoas também me
ajudaram a sair vivo dessa história mas como não tenho autorização
para citá-los e estão vivos, guardo nomes e lembranças no coração.




Em 1970 fui viver no Chile por livre e espontânea vontade. Saí do
Brasil legalmente com passaporte, ainda que tenha ido ao DOPS explicar
por que saía do Brasil. Eles sabiam  as razões pelas quais saía (como
é cantado na música, "Não queria morrer de susto, bala ou vício"). Em
Janeiro de 1971,do Chile, mandei uma carta para minha mãe, trazida por
uma portadora, senhora de boa cepa, que fora visitar o filho no exílio
em um gesto humanitário se ofereceu, ingenuamente, para trazer
correspondência para os familiares dos exilados . O gesto lhe custou
prisão e "maus tratos" nas dependências da aeronáutica.




Na carta pedia a minha mãe que me enviasse livros e minha máquina de
escrever. A carta foi entregue em Copacabana por militares do Dói-Codi
que arrombaram minha casa, arrombaram móveis a procura de metralhadora
(Assim entenderam "máquina de escrever"). Minha mãe foi levada para o
quartel da PE na Barão de Mesquita, onde foi humilhada e um dos
"patriotas"que a conduziu assumiu de forma permanente a guarda do
relógio que  entrou com ela na PE e não voltou para casa.




Amigos ocultos  numa rede de gente decente ajudaram a tirar minha mãe
daquela filial verde oliva do inferno. Sim ministro, havia muita gente
decente nas forças armadas ou que gravitavam em torno dela e que
faziam o que podiam para ajudar pessoas. A maioria, prefere, até hoje,
não revelar seus gestos por medo dos que praticando atos dignos dos
piores momentos da máfia intimidam e atemorizam pessoas de bem. Pior
do que o relógio foi o destino do ex-deputado Rubens Paiva que foi
preso no mesmo dia e nunca mais encontrado.




Os senhores fazem muita questão mesmo de proteger os canalhas que
seqüestraram e assassinaram o ex-deputado pelo crime de ter recebido
correspondência pessoal de exilados no Chile? A quem interessa essa
"Omertá"? Ministro, para esses crimes não há justificativa e menos
justificativa para o acobertamento dos criminosos.




O que leva a chefes militares e o Ministro da Defesa a se pronunciarem
contra a apuração de crimes? Tortura, estupro, morte, muitas vezes
seguido de roubo, são atos políticos passíveis de anistia?




Desculpe a franqueza, mas não consigo entender. Em nome do futuro
democrático do Brasil , espero que a banda podre, montada no Dragão da
Maldade, não saia vitoriosa.
- Mostrar texto das mensagens anteriores -




Os chefes militares pronunciam-se a favor do pagamento de reparações
às vitimas do arbítrio como um ato indenizatório. Pagamento este feito
com recursos públicos desviado de finalidades mais nobres para
ressarcir prejuízos causados por canalhas que deveriam ter seus bens
confiscados  e pagarem com recursos próprios os crimes que cometeram.
Muitas empresas que se locupletaram durante a ditadura e inclusive
financiaram o aparato repressivo poderiam participar dessas
indenizações




No meu caso, ministro, posso lhe dizer que não há dinheiro que feche
essa conta. Não pedi anistia nem indenização porque acho que não sou
merecedor (nunca fui exilado, nunca me apresentei assim). E vivo bem
com meu trabalho de cineasta há quarenta anos e professor
universitário há 31. Se fosse  pago com recursos  dos bandidos,
aceitaria de bom grado. Recursos públicos não.




Cada centavo que aceitasse, me sentiria roubando de uma criança ou de
um homem ou uma mulher humildes que precisam mais desse dinheiro numa
escola pública, num posto médico, do que eu. Não recrimino quem, por
necessidade ou sentimento de justiça, o faça. A reparação que peço é a
punição exemplar dos torturadores da minha mãe. O senhor há de
concordar que não estou pedindo muito nem nada despropositado.  E
quando digo que penso no futuro e não no passado é porque a punição
exemplar de criminosos  desestimulará semelhantes práticas no futuro e
terá uma função pedagógica para os que caiam em tentação de uso
indevido dos poderes do Estado, que entendam que não vivemos no país
da impunidade.



Justiça, peço apenas justiça.
Bom 2010 para o sr.
Atenciosamente
Silvio Tendler



P.S. 
Falamos de tanta coisa mas esquecemos de comentar dois crimes
cometidos depois de 1979 que já não estariam cobertos pela lei de
anistia: O assassinato de D. Lyda Monteiro da Silva, secretaria do
Presidente da OAB e a mutilação do jornalista José Ribamar em 1980 e em
1981a bomba que explodiu no Riocentro que causou a morte de um sargento e
graves ferimento no Capitão.




Imagino que enquanto advogado, o quanto lhe repugna o assassinato da
secretária do Presidente da OAB e a mutilação de um jornalista. Tantos
anos decorridos talvez ainda seja possível descobrir "os comunistas"
responsáveis pela bomba do Riocentro, como concluiu o vexaminoso IPM
instaurado na ocasião.




Por falar em comunistas, movimento que condenava a luta armada, o que dizer
do assassinato do jornalista Wladimir Herzog, do operário Manoel Fiel Filho
e do desaparecimento do dirigente Davi Capistrano?
Seus assassinos terão imagem, nome e sobrenome ou continuarão
protegidos por este exército das sombras?

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