segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Apontamentos sobre a pobreza


“Para os de cima, falar de comida é perda de tempo. E se compreende, porque já comeram”.
Bertolt Brecht

Marcelo Colussi (especial para ARGENPRESS.info)          

Discorrer sobre o tema da pobreza, é muito difícil. E por vários motivos. Por um lado, porque é muito complexo determinar claramente suas causas, o processo que a instaura, sua dinâmica geral. Mas por outro, porque é infinitamente mais dificultoso encontrar-lhe soluções concretas.

Indicando rápidamente, talvez como primeira aproximação, identificamos pobreza com carencias materiais, com falta de recursos, poderia dizer-se que a história mesma da Humanidade é uma constante luta contra este fantasma. O posto do ser humano no mundo não está assegurado de antemão; sua realização é uma permanente busca da satisfação de necessidades básicas que o permitem sobreviver, busca que, de inícios do século XXI e com todo o potencial técnico que se houve acumular, não termina nunca de se preencher. Hoje em día se produz entre uns 40 ou uns 50 % mais de alimento necessários para nutrir toda população mundial, mas a fome segue sendo a principal causa de morte de nossa espécie, enquanto que a atividade mais dinâmica, que leva as mais altas cotas de inteligência incorporada e gera o maior lucro, é a produção de armas!

De todo modo, a ideia de pobreza não está especialmente ligada a esse estado originário de carência que deve ser satisfeito día a día. Um povo determinado, em qualquer momento de sua história, simplesmente deve cumprir com o preenchimento dessas satisfações para seguir mantendo-se como unidade, com a tecnología que dispõe segundo seu grau de desenvolvimento (paleolítico, agricultura de subsistência, sociedades pós industriais, etc.). Nessa tarefa cotidiana, independente de sua capacidade produtiva, não se sente “pobre”. A noção de pobreza aparece quando há pontos de comparação: uma sociedade é pobre com respeito a outra vista como rica, uma classe social é uma ou outra coisa relativamente a outra, assim como o pode ser um indivíduo, só em comparação com outros -um anacoreta, ainda que nu, pode ser infinitamente rico, comparada sua vida espiritual com a de outro, um cidadão urbano “estressado” por suas dívidas, digamos-. A pobreza fala, em todo caso, não da quantidade de meios de sobrevivência mas sim do modo de sua apropriação, de sua distribuição social.

O chefe de uma tribo de colonos é pobre posto na bolsa de valores de New York, mas não o é em seu contexto originário: ali, é o chefe. Seguramente hoje a vida de um trabalhador médio de qualquer país industrializado é mais rico em termos de acesso a bens materiais em relação ao que pode haver sido a de um faraó egípcio, ou a de um Inca do Tahuantinsuyo. Mas há uma diferença substancial entre a vida do cidadão atual e a de um monarca.

Com tudo isto, então, queremos situar a ideia de pobreza -e portanto seu contrário: a riqueza- tanto em  produtos históricos, sociais. Um monarca, um chefe, o sacerdote supremo da tribo, etc., dispõe de uma cota de poder definitivamente superior a de um assalariado moderno com acesso ao conforto material gerado pela indústria destes últimos 100 anos, o qual não deixa de ser, pese todos os bens materiais, mais pobre em termos de relação política. Seria tolo talvez perguntar qual é mais rico ou qual o mais pobre. Em todo caso isto nos ilustra, uma vez mais, sobre a complexidade do tema. A rainha Isabel a Católica, no poderoso reino espanhol de fins do século XV e inícios do XVI, esteve oito anos com a mesma blusa como promessa até que se venceram aos mouros. Alguém ousaria dizer que era uma pobre diaba imunda?

II

Fazer uma leitura histórica do conceito de pobreza leva a uma exegese que, além de não ser o objetivo deste breve artigo, implicaria uma viagem monumental pela história humana. Viagem que deveria tomar em conta os diferentes momentos havidos em relação ao desenvolvimento da capacidade produtiva, e à forma em que o produto dessa capacidade foi repartido socialmente.

Pobres sempre existiram, diz uma visão simplista das coisas. Mas desde quando é possível começar a encontrar-los como tais na história? Na época das cavernas nada poderia autorizar vê-los como realidade social concreta. Em todo caso, adiante desse passo trascendental que significa a humanização de alguns macacos, deveríamos ver uma riqueza qualitativa fenomenal: um animal começa a modificar seu entorno natural, produz mudanças deliberadamente, trabalha. Faz aqui uma primeira riqueza humana espetacular, ainda que as condições materiais de sobrevivência daqueles ancestrais hoje, as pudéssemos ver como da mais radical pobreza.

Se pode falar com propriedade de pobres, já como categoría sociológica, na medida em que aparecem seus contrários: os ricos. As sociedades claramente divididas em classes sociais apresentam pobres: há uma divisão clara entre os que tem e os que não o tem. Em nome de que sucedeu isto, se estabelece, se aceita, se sacraliza? Que mecanismo natural o decide? Não entraremos a ver o por que desta dinâmica histórica, dado que o tema exige, em si mesmo, um desenvolvimento infinitamente mais amplo do que aquí nos propomos. O que se pode antecipar é que o intentar dar respostas convincentes a estas interrogações tem suscitado reflexões, tomadas de posições, revoluções e um sem número de ações várias na historia universal, sem que até o momento se tenha superado o problema (porque seguem existindo pobres e ricos todavía, e como vão as coisas, nada faz pensar que isso vá desaparecer a curto prazo).

Enquanto houver uma injusta, uma inadequada repartição do produto social, haverá pobres. Isto é: os pobres se definem em relação a seus contrários. Ainda que possa parecer um jogo de palavras (mas não o é, por certo), é especialmente reveladora essa oposição: Existem pobres enquanto houver ricos, existe quem tem menos (estão carentes) enquanto existirem outros que tem em demasia (lhes sobra).

Por que a alguns lhes sobra e a outros lhes falta? Este é o núcleo do eixo para entender o fenômeno da pobreza: Existe quem tem pouco porque outros possuem demais.

Entendido assim, então, a pobreza é um fenômeno inteiramente humano, social. Não tem comparação no campo natural, não depende de nenhum determinante físico-químico. Insistimos com o conceito: a pobreza não se define pela quantidade de riqueza que se lhe opõe senão pela qualidade de sua distribuição. Um rei, mesmo em uma tanga, é rei, é rico, comparado com seus súditos. E a partir de uma visão de mundo diferente, um asceta anacoreta em sua reclusão voluntária, ainda que quase não coma nem tenha acesso aos prazeres da vida mundana, em sua riqueza espiritual se sente infinitamente mais rico que o mundano comum. Desde onde e como “medir” a pobreza então?

III

Hoje em dia, totalmente envoltos por uma lógica mercantilista, por uma cultura do consumo a qualquer custo (capitalista, para dizer-lo sem tanto rodeio), entendemos o conceito de pobreza em relação indissolúvel com a carência de recursos materiais.

Desde já, essa noção é correta em um sentido: com o auge espetacular da produção, mercê à revolução científico-técnológica posta em marcha há um par de séculos e nunca mais detida, sempre mais rápida e em perene expansão, a dinâmica generalizada se resume no ter, no consumir. O sentido implícito do processo de humanização, do progresso, é ter coisas materiais. A vida termina valorizando-se em termos de objetos; se é, o que se tem.

Nesse cenário imposto desde que a economia capitalista européia começou a expandir-se pelo mundo, atualmente globalizado e entronizado com uma força desconhecida anteriormente na história, ser pobre significa não dispor de todas as coisas que a produtividade humana moderna pode oferecer. Civilizações agrárias milenares, que lograram desenvolvimentos fenomenais em termos culturais (a hindu, as americanas pré-colombinas, a chinesa) passam a ser pobres frente à avalanche modernizadora de oferta de bens. Surge aí o mito do “desenvolvimento”, e seu contrário: o “subdesenvolvimento”'.

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Não cabe nenhuma dúvida que a forma em que se vai construindo a sociedade global entre desenvolvidos e subdesenvolvidos é, além de injusta em termos éticos, absolutamente insustentável como projeto humano. Não é aceitável, mas muito menos é viável no tempo e em relação aos recursos que proveem a natureza, um modelo de organização social onde 20% da população humana consome 80% de toda produção.

Ligando a pobreza a esta visão fundamentalmente material, é descaradamente real que a brecha entre “ricos desenvolvidos” e pobres "em vias de desenvolvimento” cresce. Se o sonho de progreso científico-técnológico que iludiu cabeças e corações em pleno auge positivista, no início da expansão do modelo capitalista, fez albergar expectativas de uma paulatina, e finalmente total, extinção da pobreza no mundo, hoje, ainda mais com as tendências neoliberais, triunfantes neste momento, se vê que essa prosperidade universal está muito longe de alcançar-se. Pelo contrário: a brecha entre ricos e pobres (entre Norte desenvolvido e Sul subdesenvolvido, assim como entre estratos beneficiados e postergados no interno de cada estado nacional -fenômeno mais especialmente acentuado no Sul), cresce. Dito de outra maneira: a pobreza cresce. O mais descaradamente ainda: os pobres de carne e osso crescem. De três nascimentos que se produzem por segundo no mundo, dois deles tem lugar em um bairro marginal de alguma atestada macro cidade do Terceiro Mundo.

No ano de 1820 os 20% mais ricos do planeta tinham 3 vezes mais que os 20% mais pobres; para 1913 esses 20% mais ricos ganhavam 11 vezes mais que os 20% mais pobres. Em 1997, com um crescimento descomunal da produtividade em termos históricos, os 20% mais ricos tinham acesso 74 vezes maior às riquezas produzidas que os 20% mais pobres. Em países como o Brasil e Guatemala essa diferença era ainda maior, chegando-se ao extremo patético de 120 a 1. Os 6% da população mundial possuem 59% da riqueza total do planeta, e 98% desses 6% da população vivem nos países mais ricos. A população estadounidense, pese o declive que hoje em dia experimenta seu país como unidade nacional (mas não assim suas grandes empresas transnacionalizadas!), consomem o dobro do que consumia na década de 50 do século passado, seu momento de maior auge econômico.

Um filhote de cachorro de uma família média de um país do Norte consome na média anual mais carne vermelha que um habitante do Terceiro Mundo. Um bilhão de pessoas carecem de acesso à água potável,enquanto 1.300 milhões vivem com menos de um dólar por dia. Um bilhão são analfabetos. Era das comunicações, mas a metade da população mundial esta a não menos de uma hora a pé do telefone mais próximo. Segundo estatísticas de organismos internacionais, o custo anual adicional para se ter acesso universal aos serviços sociais básicos em todos os países em desenvolvimento seria de 15 bilhões de dólares americanos (educação básica, água e saneamento para todos) enquanto nos Estados Unidos se gastam 8 bilhões anuais em cosméticos, e 11 bilhões são gastos anualmente na Europa em sorvete.

Segundo dados das Nações Unidas, o patrimônio das 358 pessoas cujos ativos excedem 1 bilhão de dólares -que podem caber em um Boeing 747- supera o ingresso anual combinado de países em que vivem 45% da população mundial.

Não cabem dúvidas: lamentavelmente, pese à "cooperação ao desenvolvimento" (?) existente, a pobreza cresce. Vale acrescentar como fato não menos arrepiante, que em 50 anos de “cooperação” que o Norte vem implantando com o Sul, desde a já lendária Aliança para o Progresso do presidente John Kennedy nos anos 60, nem um só pobre no mundo deixou de ser tal graças a estes mecanismos de solidariedade(?), o que mostra que essas políticas não são senão outros tantos instrumentos de controle social.

Além de constatar-lo pelos dados anteriores (por si arrepiantes), podemos ver esse crescimento da pobreza com outros indicadores (não menos alarmantes): no planeta, e fundamentalmente na área desenvolvida, se destinam mais de 500 bilhões anuais para drogas (segunda atividade econômica da espécie humana na atualidade) e mais de um bilhão anual (mais de 30.000 dólares por segundo) a gastos militares (o item mais rentável). Que se gastem essas cifras astronômicas em sorvetes, cosméticos, drogas e armas também nos diz: a pobreza cresce (e não necessitamos ser o ermitão asceta para entender o que isso significa!).

IV

Estamos frente a um prejuízo, hoje já globalizado, onde a ideia de desenvolvimento está ligada indissoluvelmente ao progresso material. Grandes culturas da história, com enormes avanços tecnológicos, com profundos ensinamentos morais, meio ambientais, com reflexões acerca do fenômeno humano de grande valor, como o dizíamos mais acima, postas em comparação com o padrão tecnocrático-econômico que rege atualmente o mundo, aparecem como atrasadas, pobres. O são, segundo esse critério, porque não tem seguido o ritmo de crescimento tecnológico e de acumulação de riquezas que se deu na Europa. São “pobres” a tragédia grega, a cosmovisão maia, a arte chinesa, a filosofía budista?

Poderíamos, com uma atitude serena e objetiva, atrever-nos a seguir chamando pobre a uma cosmovisão que põe o acento no equilibrio ser humano/meio ambiente (como por exemplo a dos povos americanos tradicionais) quando vemos o disparate ecológico que tem causado o desenvolvimento industrial, com níveis de degradação do planeta por falta de previsão e o desejo doentio de lucro beirando à insanidade? Onde está aí a riqueza?

Poderíamos, com uma atitude serena e objetiva, atrever-nos a seguir chamando pobre à civilizações que não necessitam de um consumo cada vez mais massivo de narcóticos para fugir de suas realidades como sucede nos países industrializados? Onde está é aí a riqueza?

E qual é a riqueza que nos propõe o modelo de consumo desenvolvido? Fundamentalmente isso: consumo! Consumo como motor da vida, consumo pelo consumo mesmo. Seu arquétipo é um cidadão tranquilo, que não protesta (que tampouco desfruta a tragédia grega nem a arte chinesa), sentado diante da tela da televisão (Hollywood, Walt Disney?), tomando Coca-cola e usando seus cartões de crédito. Essa é a riqueza? Vale dizer que tudo isso logo se tem que pagar, e hoje vemos, com a crise galopante do império maior do capitalismo, por onde vão as coisas: a dívida é materialmente impagável, tanto a pública como a privada (cada cidadão estadounidense tem em média 5 cartões de crédito e 7.000 dólares de dívida). Onde está a riqueza?

Por certo que não se pretende transmitir uma ideia ingenuamente bucólica de civilizações não-ocidentais pré- industriais; desde já que a qualidade de vida que a tecnología nos pode proporcionar (água potável, saneamento ambiental, mais e melhores alimentos, educação para todos, comunicações, mais tempo livre, etc.) é fabulosa, e por certo há que bendizer-la. As comunidades hippies de não-consumo, enquanto ilhas alternativas em meio da voragem moderna, são insustentáveis (a história o demostrou). O que deve ser posto em debate -debate que, por certo, já está aberto, e deve seguir alimentando-se, é a ideia de riqueza que os modelos modernos e pós-modernos nos oferecem.

A riqueza não pode ser somente consumir. Gastar quantidades impressionantes em sorvetes, animais de estimação, cosméticos ou drogas junto a gente que come uma vez por dia, ou não come, não constitui nenhuma riqueza em termos humanos. Fala, em todo caso, de modelos de desenvolvimento, de visões de vida e de projetos de ser humano que evidenciam, fundamentalmente, uma pobreza existencial profunda (alarmante, sombría). Se essa é a riqueza que nos oferece o pós-modernismo (cada um com seu próprio veículo, consumindo refrigerantes e hamburger -ou drogas!-, e com o lap top até para ir ao banho), se a profundidade da tragédia grega foi substituída por King Kong e a profundidade dos sistemas de pensamento orientais deram lugar aos livros de autoajuda realmente, como disse Saramago, nós merecemos desaparecer como espécie.

Desde já o problema da pobreza não é uma questão de atitude moral, de caridade para com o despossuído. Exércitos de Madres Teresas e de voluntariados (tão em moda hoje em dia) não alcançam; nem sequer servem para fazer cócegas ao problema. O tema da pobreza é claramente uma das perguntas medulares que atravessam a história humana. Que sua resposta deve ser difícil o evidencia o estado atual do mundo: cada vez mais armas, mais sorvetes e mais cosméticos, e cada vez mais pobres (e não só os que não comem; também os que não sabem o que fazer com o tempo livre.... consumir Hollywood, ou videogames? Drogas talvez?). A pergunta em torno à pobreza é uma interrogação sobre a condição humana mesma. Por que nos resulta tão tentador deixarmo-nos seduzir pela Coca-cola e os hamburgueres? Tão pobres somos?

Lutar contra a pobreza implica, como mínimo, repartir mais equitativamente os produtos do trabalho humano (luta política fundamentalmente -que indiretamente inclui o militar, continuação da política por outros meios-). Mas também implica não deixarmos de fazer essas perguntas que calam ao mais fundo de nossa existência. Digamos  com um exemplo: a população da Europa do leste, ainda na era do “socialismo real”, ajudou a fazer cair o muro de Berlín fascinada pelo videocassete ou a calça de vaqueiro que suas economías não lhes provinham. Hoje se lamentam do perdido, e em cada ocasião que tem, manifestam sua ansiedade pela segurança material mínima que já não podem ter. Então, complementando a pergunta anterior, deve-se adicionar -para se perguntar com a mesma força-: por que nos seduzem tanto os chocalhos da cobra? 

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