Por Lenio Luiz Streck (Procurador de Justiça RS)
Da série “alguém me disse”, hoje é a vez do dito de um professor. Com efeito, depois de uma fatigante conferência de mais de uma hora (discutia o meu livro“O Que é Isto — Decido Conforme Minha Consciência?) em um importante programa de pós-graduação em Direito de terrae brasilis, presentes alunos de mestrado, doutorado e parte expressiva do corpo docente, tratando do tema da necessidade de uma teoria da decisão e de uma crítica ácida ao “imaginário solipsista” que ainda domina as práticas jurídicas, um importante professor interpelou-me dizendo: “Veja, professor Lenio, concordo com o que o senhor falou acerca do decisionismo, ativismo etc. Entretanto, estou convencido de uma coisa: não tem outro jeito... Os juízes decidem assim mesmo. Primeiro decidem, depois buscam o fundamento... Portanto, professor, é impossível escapar da filosofia da consciência...”. Fecha-se a cortina.
Esse “fatalismo” é uma das coisas que mais me intriga. Antes de tudo, trata-se de uma falácia. Essa falácia se denomina “falácia realista”. É o “mito do dado”. É, portanto, pré-moderna. O homem pré-moderno também pensava assim. Portanto, a observação do professor se insere em um paradigma anterior ao surgimento do sujeito. Pré-Descartes. Também podemos falar em uma “falácia do fim da história”: não tem mais o que o que fazer...
No fundo, é como se a filosofia não penetrasse nas “capas de sentido” produzidas historicamente por um Direito “blindado” às transformações. Episódio semelhante ocorreu em Portugal, quando, em um debate, ao defender a necessidade de controlar as decisões e criticar a discricionariedade judicial, outro importante (na verdade, importantíssimo) professor (brasileiro) acusou-me de estar defendendo uma espécie de volta à exegese, isto é, uma proibição (sic) de os juízes de interpretar. Disse ele: “o professor Lenio quer proibir os juízes de interpretar.” Aliás, essa crítica pedestre é a mais comum que me fazem. Vira e mexe, e lá vem um interlocutor incauto e tasca: “você é um positivista...” (lembrem-se da coluna da semana passada!) ou “você é um exegeta”... “você é um conservador...”. Há também uma crítica que me fazem e que acho muito engraçada: a de que sou um originalista (“tipo” aqueles do Direito norte-americano, principalmente quando estou defendendo vigorosamente a Constituição). Ainda mais recentemente, na Argentina, uma juíza contestou-me, após conferência que fiz sobre “o poder discricionário e o ativismo”, dizendo, aos berros, que eu “estava sendo antidemocrático ao retirar o poder discricionário dos juízes”. Para a magistrada porteña, era “natural” esse poder e “não podia ser de outro jeito”. Ponto para a falácia realista. No Brasil, proliferam blogs jurídicos com artigos e posts, onde os signatários se dizem perplexos com a minha tese antidiscricionária (e, portanto, antirrelativista). Eles perguntam: “Onde ficam as apreciações subjetivas dos juízes? Ele quer que os juízes sejam neutros?” Céus. Que coisa, não? Por vezes, penso que estamos no século XIX. Ou, pior, na virada para o século XX, ouvindo integrantes da Jurisprudência dos Interesses discutindo com os adeptos da Jurisprudência dos Conceitos. Como se o tempo não tivesse passado. E as indagações ficam ainda mais incisivas quando os subscritores são juízes. Quantas vezes terei de repetir que:
— primeiro, o juiz não é escravo da lei (pensem no personagem Ângelo, da Peça Medida por Medida, de Shakespeare, quando diz “não fui eu quem condenou seu irmão, foi a lei);
— segundo, ele não é o dono da lei (pensem no mesmo personagem, mas, agora, na parte em que ele diz a bela Isabela “mas se você fizer amor comigo, eu liberto seu irmão” e, portanto, faço a lei nada valer).
A hermenêutica será essa — e parafraseio o professor Ernildo Stein — essa cadeira entre o primeiro e o segundo modelos de juiz. A propósito, para demonstrar o modo como a hermenêutica pode apontar caminhos para a saída desses impasses, sugiro a leitura da obra do juiz de Direito Fernando Vieira Luiz, denominada Teoria da Decisão Judicial: dos paradigmas de Ricardo Lorenzetti à resposta adequada à Constituição de Lenio Streck (Livraria do Advogado, 2012).
Dou, aqui, algumas dicas. A primeira questão é nos darmos conta de que a discricionariedade (e suas perigosas derivações, que todos conhecemos!) está ligada umbilicalmente ao paradigma da subjetividade, isto é, ao esquema sujeito-objeto. Nesse paradigma, o sujeito (intérprete, juiz, tribunal) é “senhor dos sentidos”. Ele “assujeita” as “coisas” (se, se quiser, ele é o dono “das provas”, do “andar do processo” etc.). Isso é facilmente perceptível através da produção da prova ex-officio e da prevalência de princípios (sic) como o do “livre convencimento do juiz”. Atenção: aqui, cabe uma ressalva que já fiz alhures: o que se tem visto no plano das práticas jurídicas nem de longe chega a poder ser caracterizada como “filosofia da consciência”; trata-se de uma vulgata disso. É verdade que, em meus textos, tenho falado que o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram no “paradigma epistemológico da filosofia da consciência”. Advirto, porém, que é evidente que esse modus decidendi não guarda estrita relação com o “sujeito da modernidade” ou até mesmo com o “solipsismo kantiano”. Esses são muito mais complexos. Venho apontando essas “aproximações” para, exatamente, poder fazer uma anamnese dos discursos, até porque não há discurso que esteja “em paradigma nenhum”, por mais sincrético que seja. Aliás, estou sendo generoso ao falar de “discricionariedades”... O que temos visto vai muito além daquilo que, na tradição, tem sido epitetado de “discricionariedade”. Basta ver o que fazem com a “ponderação”.
De todo modo, a pergunta é inevitável, embora, aqui, não possa, nem de longe, esgotar a discussão: por que, depois de uma intensa luta pela democracia e pelos direitos fundamentais, enfim, pela inclusão nos textos legais-constitucionais, das conquistas civilizatórias, devemos continuar a delegar ao juiz a apreciaçãodiscricionária (isto é, a partir de seu “livre convencimento”, o que dá no mesmo)das provas? Nos casos de regras (textos legais) que contenham vaguezas e ambiguidades e nas hipóteses dos assim denominados hard cases (embora, como já disse, essa diferença entre easy e hard cases seja uma ficção) por que continuamos a insistir em deixar a sua definição ao livre convencimento, à discricionariedade ou ao alvedrio dos juízes?
Senhoras e senhores, volta-se, sempre, ao lugar do começo: o problema da democracia e da (necessária) limitação do poder. Queremos ou não queremos uma democracia? Discricionariedades, arbitrariedades, inquisitorialidades, positivismo jurídico: tudo está indissociavelmente entrelaçado. Chega a se dizer por aí que a interpretação feita pelo juiz é um “ato de vontade”... Juristas (alguns são ministros) importantes da República dizem isso, pois não? Eles também acham, como o professor que me interpelou, que “isso é assim mesmo”. Quanto tempo ainda levará para que a comunidade jurídica compreenda esse problema?
E não se venha a argumentar que o poder discricionário (ou o livre convencimento, que, em um mix, acaba na ponderação — argh[1] — ou coisa que o valha) tem como “solução racional” a obrigação de fundamentação prevista no artigo 93, IX, da Constituição (desse “enigma” trato amiúde em vários textos e livros, em especial Verdade e Consenso). Não há nenhum indicador nesse sentido. Ao contrário: se todas as decisões devem ser fundamentadas, isso não quer dizer que “basta ter uma fundamentação” (não esqueçamos que a Corte Europeia dos Direitos Humanos considera a fundamentação como um direito fundamental). Ora, tenho insistido, com vigor, de que decisão não é o mesmo que escolha (não vou aprofundar isso aqui — afinal, a coluna é não “sala de aula e nem instituição acadêmica”, remetendo os caríssimos leitores ao que escrevo em O que é isto – decido conforme minha consciência? 3. ed., esse mesmo que motivou a frase do professor de que “isso é assim mesmo”).
Não é possível concordar com essa espécie de fatalismo relativista, do estilo “é assim que acontece no mundo prático”, “é assim que os juízes pensam e decidem” ou “nada há para fazer”. Permitam-me dizer, “na forma da Constituição e da lei”: se, de fato, os juízes “pensam assim”, é porque se expressam a partir de um paradigma ultrapassado, em que um sujeito “assujeita” o objeto. A essa situação — de “assujeitamento do objeto” pelo “sujeito do conhecimento” — em uma apreciação, digamos assim, generosa, poderíamos chamar de filosofia da consciência, com as ressalvas que já fiz anteriormente, isto é, os filósofos desse paradigma são (ou eram) bem mais complexos do que o adágio “decido conforme minha consciência”... Não esqueçamos que a filosofia da consciência foi a condição de possibilidade para a construção da modernidade e, fundamentalmente, para a institucionalização do Estado Moderno (pensemos em Hobbes, por exemplo). Só que, no plano filosófico, já de há muito esse paradigma está superado.
Insisto: entregar-se à tese do tipo “azar, é assim que os juízes pensam” é adotar uma posição fatalista, que não pode ser aceita no âmbito de uma Teoria do Direito preocupada com a democracia. Numa palavra: se os juristas — em especial, os juízes — efetivamente pensam assim, temos a obrigação de dizer que estão equivocados, pelo menos se analisamos o problema à luz dos paradigmas filosóficos que conformam o Ocidente.
De há muito venho sustentando — junto com Ernildo Stein — que nós não interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar. Esse é o ponto, por exemplo — para ficarmos na temática da moda, em tempos de “mensalão” — em que reside o equívoco, no âmbito do processo penal, da tese do livre convencimento “racional”. Admito até — e estou sendo irônico e/ou sarcástico — que a adjetivação “racional” esteja correta; afinal, o paradigma da racionalidade (solipsística) parece que ainda está presente em todo o projeto do novo CPP (e também do NCPC). Mas o que me parece mais grave é que, talvez, o livre convencimento nem sequer seja “racional”; na verdade, tudo está a indicar que ele esteja ancorado na “vontade” (não esqueçamos que as teorias exegéticas do direito, sustentadas na razão, foram superadas pela vontade, no bojo da qual surgiram tanto a jurisprudência dos valores, o realismo jurídico e os diversos axiologismos, como também a concepção kelseniana acerca da interpretação judicial (não posso me cansar de avisar: para Kelsen, a interpretação feita pelos juízes é um ato de vontade; é, portanto, política jurídica... portanto, ali estava o ovo da serpente, cujas consequências todos conhecemos, além da algaravia conceitual).
Ainda mais uma coisa: o rigoroso controle hermenêutico das decisões judiciais que venho propondo não quer dizer — sob nenhuma hipótese — diminuição do papel da jurisdição (constitucional). Pelo contrário, bastando, para tanto, ler os meus livros e textos. Aliás, esse mesmo controle deve ser feito em relação às atividades do Poder Legislativo. O Estado democrático de Direito é uma conquista. É, portanto, um paradigma, a partir do qual compreendemos o Direito. Mais: a defesa que faço da Constituição não significa “qualquer Constituição”! Há uma principiologia constitucional que garante a continuidade da democracia, mesmo que os princípios não tenham visibilidade ôntica, circunstância que implica a superação da equivocada cisão estrutural entre regra e princípio. Isso para dizer o mínimo.
O Direito possui uma dimensão interpretativa. Essa dimensão interpretativa implica o dever de atribuir às práticas jurídicas o melhor sentido possível para o direito de uma comunidade política. A integridade e a coerência devem garantir o DNA do Direito nesse novo paradigma. Muitas vezes o problema nem é “como se está decidindo agora, neste momento”; o problema maior é “como se vai decidir amanhã”. E depois de amanhã. O que não podemos admitir é uma fragmentação, uma espécie de “estado de natureza hermenêutico”, em que a decisão é, ou um jogo de cartas marcadas ou uma loteria (que não deixa de ser, também, um jogo).
Bola no centro. Claro que não disse tudo isso para o professor fatalista. Digo agora. Ali, naquele momento — face a sua falácia realista —, fiquei escutando o silêncio do “Estádio”. Como nos tempos em que jogava futebol e, vencendo o jogo até os 45 minutos do segundo tempo, o time era atropelado por um pênalti mal marcado. Reclamávamos. Xingávamos o juiz. Ali, naquele caso, o fatalista teria razão: o pênalti estava marcado. “É assim mesmo...; quem manda é o árbitro”. Não há volta. A esperança, então, voltava-se toda para o pobre do goleiro. Que, casualmente, era este escriba!
[1] É uma onomatopéia que quer dizer “uau”.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
Revista Consultor Jurídico, 30 de agosto de 2012
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