quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Direitos do cidadão tipo "deu mole, mané" ou "azar o seu"



A coluna desta quinta-feira foge um pouco do padrão. Tentarei fazer uma antropofagia acerca do que ouvi outro dia em seminário na Goethe-Universitätde Frankfurt. Tratava-se de Justiça(s) de transição no mundo. Na ocasião, o jurista alemão Klaus Günther apontou um interessante esquema para aplicar em Justiça de transição. Claro que ele falava da transição política de regimes ditatoriais/autoritários para a democracia. Disso, fiz uma pequena adaptação para uma constante “justiça em transição” em países periféricos como o Brasil.

Aqui, ultrapassada a transição da ditadura para a democracia, penso que lutamos, hoje, outra guerra. E ela é constante. É o resultado da não superação de nossa histórica desigualdade social. Da não superação da estrutura estamental denunciada por Faoro que teima em se manter e se reproduzir (vejam, por exemplo, o número de filhos de políticos buscando uma “boquinha” nestas eleições, para manter a “tradição política da família”). Trata-se também de falar da não superação da enredada sonegação de direitos da patuleia e a manutenção de privilégios dos estamentos. A propósito: por onde anda a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição?

Por outro lado, o que dizer do famigerado “foro por prerrogativa de função”, eufemismo para privilégios revelados na histórica impunidade da elite política? É o cidadão sendo assaltado — real e simbolicamente —, o subcidadão sendo ignorado e o sobrecidadão privilegiado. É o cidadão desrespeitado, enganado pelas companhias telefônicas, pela TV a cabo, pelas companhias aéreas, fábricas de automóveis, etc. Sintomas que apenas desnudam desmandos históricos. Vítima da corrupção secular (não sou ingênuo a ponto de crer que o mensalão foi o maior desvio ocorrido no país ou que será um ponto de mutação sem uma reforma política séria e o fim do foro privilegiado — o mensalão é a ponta do iceberg “estamental”). Sem direitos sociais para quem precisa. Um “estado de natureza consumerista”. Há, nisso tudo, uma inversão de “culpas”. Tentarei explicar isso na sequência.


Vejamos o papel do Direito, mormente o penal, principalmente neste momento em que há uma guerra em torno do projeto do novo Código Penal. O projeto, de fato, não é grande coisa. Mas, convenhamos: durante todos esses anos, por que o velho Código Penal não gerou essa revolta? Quantos livros foram escritos comentando o (velho) CP sem que, ali, fossem apontados absurdos semelhantes ao que o projeto retrata? Sigo. Primeiramente, essa Justiça em constante transição simbólica precisa realizar uma filtragem hermenêutico-constitucional dos tipos penais que aí estão, para que abandonemos o modelo de proteção máxima do “ter” e o desrespeito com o “ser” (humano). Só para registrar: o Código Penal protege muito mais a propriedade do que a vida. Depois, ele — e aqui me abebero da conferência de Günther — tem que levar em conta uma importante função: a comunicação de uma mensagem. Essa mensagem comunicativa da pena é o que importa para as pessoas que sofreram a injustiça. O desejo primário dos que sofrem injustiças: querer que os perpetradores sofram um castigo (interessante notar as cifras ocultas da criminalidade... sem confiança no “sistema”, mais de 60% dos crimes sequer são levados ao conhecimento das autoridades... por que será?). O Estado tem que passar a mensagem de que o fato ocorrido foi ilícito. Caso contrário, podem acontecer três fatores, dos quais deixo um de fora, porque aplicável na especificidade da Justiça de transição no plano da política:
1) Eigene Fehler Dummheit — a pessoa pode pensar que o que aconteceu foi por culpa dela; porque deu mole; foi burra. Acrescento: as autoridades podem fazer crer à vítima que a culpa foi dela.
2) Unglück (Pech gehabt) — a vítima pode pensar que o fato ocorreu porque deu azar (ela é mesmo uma “pessoa sem sorte”).



Em ambos os casos, há uma perda de autoconfiança da vítima (pensem nisso como o cidadão em geral, vítima constante para além do Direito Penal). O papel do Estado é o de provar a culpa, mesmo que não haja pena a ser aplicada. O Direito deve comunicar isso à sociedade e às vítimas (só para registrar: sim, eu acredito no Direito Penal; nenhum país do mundo abriu mão do Direito Penal; portanto, não quero lidar com a problemática da violência de forma idealista ou idealizante). Fatos que envolvem a dignidade da pessoa e a segurança dela não podem ser interpretados como decorrentes do acaso, do azar ou de sua própria culpa. Aqui, as famosas “cestas básicas” podem ser um “tiro no pé” do sistema. Ou seja, se abuso de autoridade, bondosa figura típica criada em plena ditadura, é considerado crime de menor potencial ofensivo em razão de sua penalidade irrisória, igualado a uma contravenção de latido de animais, é porque perdemos o sentido da diferença e não respeitamos a dignidade humana. Todos os gatos “viram pardos”.

Para evitar essas alternativas ruins acima referidas, o Estado deve investigar e dizer/apontar os culpados. Aqui, de pronto, aparece um grande problema da polícia brasileira: se não há flagrante, não se investiga — ocorre a banalização... e a perda da confiança por parte das vítimas. Existem dados que demonstram que, atualmente, nas grandes capitais, mais de 90% das ações penais decorrem de auto de prisão em flagrante. Não se investiga. Obviamente, a criminalidade do colarinho branco, que exige tecnologia e inteligência, agradece. E muito. Enquanto isso, meio milhão de presos desdentados no sistema carcerário.

Vamos lá. Nossa fábrica de injustiças sociais e privilégios odiosos não fecha... Ou alguém já parou para refletir por que não temos as estatísticas de criminalidade do nível da Suíça (ou da Espanha)? Como acentua Pablos de Molina, “cada sociedade possui a criminalidade que produz e merece”. Mas vejamos como isso é tratado na cotidianidade do (não) exercício da cidadania: a vítima é assaltada e, quando reage, é criticada. E lá vem a mensagem da autoridade: “Não reaja.” Mais: “Carregue nos bolsos o dinheirinho do assalto”, “Não irrite o assaltante”. Não estou dizendo que a vítima deva reagir. O que quero denunciar é que se coloca uma espécie de alternativa ruim para a vítima: “Não dê mole para o assaltante...; não aparente posses etc.” Com isso, inverte-se a relação que está lá na Constituição: há um direito fundamental à segurança pública. O sujeito é assaltado e se diz: “Também... o trouxa ficou dentro do carro... veio o assaltante e, bingo (!), consumou o ato.” É?! Quem sabe podemos ler isso de modo diferente? É um direito do cidadão andar por aí, pelas ruas etc. É o Estado que deve dar segurança para o cidadão. O cidadão está certo. O assaltante, não. O quero dizer é que isso deve ser comunicado à vítima. O cidadão deve saber que o Estado se importa com ele.

Não há vagas nos presídios. Solução do establishment: indultos natalinos e afrouxamento no cumprimento das penas (o Brasil é o único país do mundo em que um assaltante cumpre apenas uma quinta parte da pena). Alguém acha que as autoridades assim agem porque acreditam na “recuperação” dos presos? Claro que não. As autoridades agem assim porque fazem uma análise econômica. Os presídios — autênticas masmorras medievais — são como “hotéis”. As diárias vencem. Alguns saem, outros entram. O próprio governo concorda que os presídios são masmorras. Mas não investe. Prefere fazer “projetos”. Mesmo assim, são mais de quinhentos mil presos. E, então?

Para além do Direito Penal. O trânsito brasileiro mata mais do que a guerra. O que se diz por ai? Osexperts, os governantes e os políticos dizem que “a culpa é dos motoristas”. É? Será mesmo? Quem sabe podemos ler esse fenômeno de outro modo... Por exemplo: seríamos nós, terrae brasiliensis, os piores motoristas e, por isso, a matança no trânsito é a maior do mundo? Não seria também porque temos os piores carros do mundo, que são vendidos sem airbags — com a conivência do Estado —, com chassis fracos, que são rejeitados na Europa e nos Estados Unidos (para falar apenas nesses dois mercados)?[1] Já leram os números? Mais de 80% dos que morrem em eventos de trânsito estavam em carros sem airbags, os chamados “populares” (ou carros velhos), que são vendidos aos incautos brasileiros, trouxas, porque aqui não se dá “bola” para “isso”. Vejam a diferença entre bater um carro com airbag e um sem airbag... Mas, por que permitimos que os carros sejam vendidos semairbags e com chassis de lata velha? Hein? Mais: motoristas morrem em ultrapassagens perigosas. Claro, com rodovias não duplicadas, a probabilidade é “n” vezes maior do que em rodovias duplicadas. Mas cobramos pedágios, é claro! PS: antes que alguém diga que estou sendo “pequeno-burguês” (sic) e que estou preocupado demais com essas “coisas”, adianto-me para dizer que “estou preocupado, sim”, exatamente como estou preocupado com as contradições e idiossincrasias do Direito Penal, como, por exemplo, o fato de que tratamos com mais rigor os crimes de furto do que os delitos de sonegação de tributos (por exemplo, pagando o valor sonegado, extingue-se a punibilidade...).

Há muitas mortes de pessoas tentando atravessar as rodovias. Dizem os jornais: “pedestres descuidados, imprudentes...”. Será mesmo? Qual a razão para que o Estado não construa passarelas? Por que o patuleu tem de andar 1 km (ou mais) para atravessar a rodovia? Ciclistas são mortos em acostamentos... Culpa deles? É? E por que permitimos que rodovias sejam construídas com acostamentos fora dos padrões internacionais (e com superfaturamento)?

Esse é, pois, o “problema do cidadão”... Ele “dá mole para o ladrão, dirige mal, entra mal nas curvas, ultrapassa mal...”. Vá à Delegacia de Polícia e registre uma ocorrência... Verá que a “culpa, no fundo, é sua”. “Deu mole, Mané.” “Reagiu.” “Falou no celular.” Alguma coisa você fez. Não é possível que o Estado possa ter responsabilidade... No fundo, a manchete que o establishment (que ocupa e se serve do Estado, politicamente) desejaria é: “Neste final de semana, no RS, mais 27 pessoas ‘deram azar’ e foram esfaqueadas; 22 foram mortos ‘dando bobeira’ e 13 se ‘descuidaram’ e foram assaltadas.” Ah, bom.

Você quer ser atendido em hospital. Mesmo que tenha plano de saúde, é uma guerra. A culpa é... das pessoas, que não se cuidam. Dão mole para o mosquito da dengue, não se vacinaram contra a gripe, beberam no final de semana... Enfim, enchem os hospitais. Vão tomar soro em pé. A maca estará no corredor. É. É muita gente para pouca infraestrutura. Manchete: “Evite locais de aglomeração; evite os hospitais.”

Você é multado no trânsito. Faz um recurso. 99,99999% dos recursos são indeferidos em duas linhas. Imagino a seguinte explicação: “Piora o nível da advocacia”... O processo administrativo pátrio é uma piada (mas tem centenas de dissertações e teses tratando disso...). O guarda de trânsito tem “fé pública” — uma incrível fundamentação a priori, impossível sob o ponto de vista filosófico, além de inconstitucional (aliás, deve ser por isso que é inconstitucional!). Você é culpado até prova em contrário! As empresas que “alugam” os pardais para os governos ganham comissão por multas. E contribuem com “muito” para as campanhas eleitorais.

A “cidadania” é atuarial. Aliás, para além de boas dissertações e teses de doutorado, para que serve o direito do consumidor? As companhias de telefonia celular enganam milhões de pessoas (imagino um quadro no Jornal Hoje: “Como evitar a queda nas chamadas — especialista ensina truque para evitar o prejuízo”). “Dê um jeitinho.” As companhias sabem que somente alguns milhares reclamarão. Vale a pena enganar o consumidor nessa “farra consumerista”. Seus direitos estão no “0800”: disque 1, para ser otário; 2, para idiota; 3, para voltar ao menu; 4, para ser atendido por um dos “colaboradores” (tucanagem da palavra “terceirizado”). O sujeito que atende você nem sabe como funciona a empresa. Apenas lê um protocolo. E você discute com ele, pensando que o “colaborador” tem algo a ver com isso. Tsk, tsk, tsk...

Mas você sempre pode entrar com uma ação nos juizados especiais. Lá, à tardinha, o meirinho gritará: “Quem quer fazer acordo, lado direito; quem não quiser, lado esquerdo...” Suprema humilhação. Depois, uma estagiária tentará induzir você a fazer um acordo. A empresa — que engana milhões de pessoas — aposta: não vai fazer acordo... Deixa rolar. Poucos terão paciência para levar as ações até o final. Enganar a choldra vale muito a pena.

E as empresas aéreas? Você viaja como uma sardinha. Mas, seja “experto” (com xis mesmo, para imitar bem o sotaque), dirá um “especialista” no Jornal da Globo: “Chegue antes e consiga uma saída de emergência...”. Ou dispute à tapa uma saída de emergência... claro, pagando R$ 30 por trecho e viaje “confortavelmente”. Uau. Não conseguiu? Que pena. É porque você é um “vacilão”. “Deu azar, Mané.” Mas, pergunto: a agência estatal encarregada de fiscalizar as companhias não deveria exigir que os espaços entre as poltronas sejam civilizados? Nas viagens longas, eis o conselho: “Movimente as pernas... Use meias para varizes...”. Não dê bobeira, otário! Com certeza, as companhias aéreas não são responsáveis por seu desconforto. A escolha da companhia é uma decisão do cliente... Uau de novo! Sugiro uma pauta para o Programa Ana Maria Braga: “Como viajar bem em bancos desconfortáveis — pequenos truques para você sofrer menos.” Convidado especial: Ex-Ministro da Defesa Nelson Jobim! Lembram-se quando ele “descobriu” que as poltronas eram desconfortáveis? Céus. Todos pensaram: agora vai...!

Sabem quantas multas — dessas que são aplicadas pelas “agências reguladoras contra as empresas prestadoras de serviços públicos, sejam elas submetidas a qualquer um dos regimes jurídicos possíveis” — são, de fato, pagas? Menos de 10%. O resto vai para as calendas. Sua ligação do celular cai toda a hora? A companhia fez um cálculo: mesmo sendo multada, não pagará. Vale a pena enganar a patuleia (rafanalha, ratatulha). Manchete: “Governo endurece com as companhias.” E os patuleus dizem: “Agora vai.”

Voltando ao Direito. O cidadão está com baixa autoestima. Mas parece que tudo conspira contra ele. Porque, de certo modo, terceirizamos nossos direitos e nossa cidadania. Ao invés de reivindicar, ou deixamos como está ou corremos ao Judiciário. Aliás, o Judiciário resolve tudo... até nos livra dos candidatos “fichas sujas” (como somos idiotas, não sabemos escolher). Sua vida está facilitada. Você não corre o risco de votar em um ladrão! Ufa!

Problemas na saúde? A patuleia está tomando soro em pé? Não há vagas? Mas, ouvindo a propaganda eleitoral, parece que está tudo bem. São Paulo vai fazer mais; Porto Alegre terá um plus; Belo Horizonte agora vai; Rio de Janeiro continuará ainda mais lindo... Na prática, o governo, ao invés de dar o direito à saúde, fornece um bom advogado. Sai mais barato. Há estados da Federação em que o governo gasta mais no pagamento de ações judiciais do que nas políticas públicas de saúdestricto sensu.

E as “greves de zelo” que são feitas contra a população? A pretexto de operações padrões, rasga-se... a própria legislação, especialmente a Constituição e suas garantias, historicamente obtidas a duras penas. Também não vamos falar da enorme máquina pública, que parece ser um universo em expansão: não para de crescer. Gente com salário inicial de R$ 15 mil fazendo greve para obter um “novo plano de carreira”. E o resto da população, como fica diante disso? Um patuleu pergunta(ria): Com uma estrutura desse tamanho, como o mensalão não foi detectado? Tem que esperar uma CPI para descobrir que as 235 empresas que se relacionaram com Charles Watterfall fizeram “movimentações financeiras atípicas”? Hein?

Por que a sonegação é tão grande? Eis o paradoxo: quanto mais mecanismos de controle, impostos, fiscalização, etc., menos controle, menos democracia... e menos eficiência. E menos cidadania. O serviço público no Brasil parece ser um fim em si mesmo. Já notaram que ninguém quer trabalhar para os governos: todos querem ser “guardiões do Estado”. Um amigo meu, procurador do Estado, diz: “Não sou advogado do governo; sou do Estado.” Ah, bom. Estado? O que é essa entidade metafísica? Alguém já encontrou o Estado por aí? Como seria o Estado haitiano? Além disso, há outro fenômeno: a defesa dos hipossuficientes. Todos querem fazê-lo. Já não há hipossuficientes suficientes. Algumas instituições já avançam para os não-hipossuficientes. É a “luta pelos pobres” (se me entendem... talvez não seja bem “pelos” no sentido de “a favor”, mas “pelos” no sentido de “tê-los”). E tudo por conta dela, “da viúva”... Como os juristas gostam de “ontologias”, fico imaginando a “Viúva coisificada” como uma “senhora bem roliça”... Enfim, quando é da viúva, tudo fica fácil. De aposentadorias — mormente as rurais — distribuídas no atacado, com provas fragilíssimas, à licenças maternidade sem previsão legal...

Vejo na TV publicidade maciça de celulares e automóveis.Sim, automóveis “quase de plástico”. Semairbag. E, quando tem, é só para o motorista. O passageiro que se rale. Gastam tanto em publicidade que tem de vender milhares de “carrinhos standards” para pagar o custo, incluindo o cachê do Neymar. Aliás, com tanto incentivo, redução de impostos etc., como é possível que as fábricas demitam gente? Hein?

Vivemos tempos em que a imagem é tudo. Já não refletimos. Colamos “palavras e coisas”. A linguagem televisiva nos imbeciliza. Vendem-nos ilusões. E, o pior: compramos. Viva os publicitários de terrae brasilis. E, quando queremos reclamar, caímos na armadilha do “0800”. Até para termos acesso à justiça tudo ficou pós-modern(izad)o. Aos poucos, o papel está sumindo. Tudo é virtual.Clean. Nada de papel sobre as mesas dos colaboradores (adoro essa nomenclatura) da Justiça. E tudo fica ficcional. Ou alguém acha mesmo que um juiz vai ligar o computador e ficar horas na frente da tela para assistir aos depoimentos ou ler as suas alegações de pen-drive? Aliás, nem faz bem para os olhos do magistrado ficar horas na frente da pantalla...

A pós-modernidade (sem que se saiba bem o que é isso) consegue tudo. Inclusive que acreditemos nesse mundo de ficções. Até o trabalho braçal, de sol a sol, feito com os pés descalços, pode ser “vendido” como algo “charmoso”... Tudo é possível. Imagem é tudo. Lembro-me, a propósito, de uma peça publicitária que ganhou o prêmio de propaganda do ano há um tempo atrás. Descrevo, de memória. O cenário era uma antiga fazenda de café, janelas baixas, azuladas. Algo do tipo Casa-Grande & Senzala, compreendem? Os personagens são dois recém-casados, que, ao acordarem, encaminham-se ao café da manhã (servido por um patuleu de sexo feminino). Entrementes, a câmera mostra os “colaboradores” da “casa grande” se encaminhando para a plantação, com ferramentas rudimentares (típicas “daqueles tempos”). O lindo sol está nascendo. Enquanto os campesinos se afastam, o belo casal senta-se à mesa, ornada com toalha rendada e com xícaras de fino porcelanato (trazida lá do Aveiro). A cena culminante é o café sendo servido, fumegante, denso, saboroso... e uma voz em off anunciando: Café “marca tal”: “A volta dos bons tempos”![2]

O que faltou no case do café? O que não foi dito? O que não foi perguntado é: “Bons tempos para quem, cara pálida”? Do mesmo modo como já de há muito nos esquecemos de perguntar as coisas... E esquecemo-nos de reivindicar. “Tipo senzala”, não é?

É. Pois é. Bons tempos para quem? “Deu azar, vacilão?”


[1] Antes que alguém “se atravesse” e me jogue pedras, adianto-me para dizer que sei que há milhões de brasileiros que nem sabem o que é um airbag, que andam em ônibus precários e que sequer são consumidores no sentido da palavra. Mas também sei que aqueles que se enquadram no conceito de cidadania e “consumidor” estão tão alienados que também não se questionam acerca do funcionamento das agências reguladoras, do sistema de controle de impostos ou de como são indicados os ministros do STJ, do STF, etc.


[2] Até quando inventaremos tradições e diremos que elas são “boas”? Isso não é fenômeno recente, conforme nos fala Eric Hobsbawm (em A Invenção das tradições: “Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica, visam a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”), mas resta potencializado de forma inimaginável na atual quadra da história, especialmente em terrae brasilis.

Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine oFacebook.

Revista Consultor Jurídico, 13 de setembro de 2012

Um comentário:

  1. Lenio, obrigado por provocar meu sentido inquiridor. Realmente não questionamos sobre as afetações em nossa vida. Aceitamos o prato feito.
    Há que se mudar.
    Luiz Lopes

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Posso não publicar, baseado nas regras de civilidade que prezo. Obrigado.