sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Crônicas de tragédias anunciadas — por que dizer o já dito


Coluna de Lenio Luiz Streck no Conjur, em 31 de janeiro de 2013

Nada mais atual do que repetirmos algo
A Coluna de hoje é uma respeitosa homenagem às famílias das vítimas da tragédia de Santa Maria. Faço também uma homenagem ao meu amigo e colega de Coluna, Néviton Guedes, que tão bem tratou do assunto (Não se impede a morte desprezando o direito à vida – clique aqui para ler). Disse Néviton: “A prova cabal da desimportância do direito à vida é que o Brasil se transformou numa grande carnificina sem que ninguém tenha protestado seriamente. O primeiro significado jurídico do direito à vida é, entretanto, a proibição de matar. Mas aqui mata-se a granel, sem motivo ou por motivo torpe, por incompetência ou por desídia, por ódio e até mesmo, dizem, por amor. Todos os dias assistimos às mais depravadas demonstrações de violência contra a vida humana sem que parta da comunidade (indivíduos, sociedade ou Estado) a mesma indignação que aquela manifestada em casos de violação ao meio ambiente, aos direitos dos animais, à liberdade de expressão, à moralidade administrativa, à liberdade ou à igualdade entre as pessoas.”

Pois a Coluna de Néviton me fez “repetir-me”. Invoco Umberto Eco, para quem “nada mais atual do que repetir aquilo que já se disse”. E eu digo: principalmente se o que se disse se esvaiu nas brumas da fragmentação pós-moderna. Por isso, permito-me repetir parte da Coluna que escrevi aqui na ConJur, chamada “Direitos do cidadão ‘tipo’ azar o seu. Nem ponho o “ler aqui” porque a maior parte é repetição.
Mas, por que repito praticamente toda uma Coluna já escrita? Para mostrar que os reclamos de Néviton já tinham eco nesta Coluna. Meus protestos contra as carnificinas já foram feitas também em outras Colunas e artigos, como “As razões pelas quais o Estado não pode se ‘acadelar’” (ler aqui). Vamos aos reclamos.
A origem do tema
Na Coluna que em parte aqui repito havia feito uma antropofagia acerca do que ouvi em seminário naGoethe-Universität de Frankfurt (julho de 2012). Tratava-se de justiça(s) de transição no mundo. Na ocasião, o jurista alemão Klaus Günther apontou um interessante esquema para aplicar em justiça de transição. Claro que ele falava da transição política de regimes ditatoriais/autoritários para a democracia.

Disso, fiz uma pequena adaptação para uma constante “justiça em transição” em países periféricos como o Brasil. Aqui, ultrapassada a transição da ditadura para a democracia, penso que lutamos, hoje, outra guerra. E ela é constante. É o resultado da não superação de nossa histórica desigualdade social.
Trata-se também de falar da não superação da enredada sonegação de direitos da patuleia e da manutenção de privilégios dos estamentos. A propósito: por onde anda a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, prevista na Constituição? Por outro lado, o que dizer do famigerado “foro por prerrogativa de função”, eufemismo para privilégios revelados na histórica impunidade da elite política? É o cidadão sendo assaltado — real e simbolicamente —, o meio-cidadão sendo ignorado e o super-cidadão privilegiado. É o cidadão desrespeitado, enganado pelas companhias telefônicas, pela TV a cabo, pelas companhias aéreas, fábricas de automóveis etc. Sintomas que apenas desnudam desmandos históricos. Vítima da corrupção secular. Sem direitos sociais para quem precisa, embora os avanços de inclusão dos últimos dez anos. Mas que estamos em um “estado de natureza consumerista”, não tenho dúvida. Há, nisso tudo, uma inversão de “culpas”. Tentarei explicar isso e outras coisas na sequência
O papel do Direito
Vejamos o papel do Direito, mormente o Penal, principalmente neste momento em que há uma guerra em torno do projeto do novo Código Penal. O projeto, de fato, não é grande coisa. Mas, convenhamos: durante todos esses anos, por que o velho Código Penal não gerou essa revolta? Quantos livros foram escritos comentando o (velho) CP sem que, ali, fossem apontados absurdos semelhantes ao que o projeto retrata? Grande parte dos manuais e compêndios sobre o atual CP é patética, sequer desnudando a teoria do bem jurídico que conformou o velho Decreto nos anos 40.

Sigo. Primeiramente, essa justiça em constante transição simbólica precisa realizar uma filtragem hermenêutico-constitucional dos tipos penais que aí estão, para que abandonemos o modelo de proteção máxima do “ter” e o desrespeito com o “ser” (humano). Só para registrar: o Código Penal protege muito mais a propriedade do que a vida. Depois, o Direito Penal — e aqui me abebero da conferência de Günther — tem que levar em conta uma importante função: a comunicação de uma mensagem. Essa mensagem comunicativa da pena é o que importa para as pessoas que sofreram a injustiça. Ou seja: Trata-se do papel da interdição da lei!
O desejo primário dos que sofrem injustiças: Querer que os perpetradores sofram um castigo (interessante notar as cifras ocultas da criminalidade... sem confiança no “sistema”, mais de 60% dos crimes sequer são levados ao conhecimento das autoridades... por que será?). O Estado tem que passar a mensagem de que o fato ocorrido foi ilícito. Caso contrário, podem acontecer três fatores, dos quais deixo um de fora, porque aplicável na especificidade da justiça de transição no plano da política:
1 — Eigene Fehler Dummheit — a pessoa pode pensar que o que aconteceu foi por culpa dela; porque deu mole; foi burra. Ou que foi uma tragédia... Acrescento: as autoridades podem fazer crer à vítima que a culpa foi dela.
2 — Unglück (Pech gehabt) — a vítima pode pensar que o fato ocorreu porque deu azar (ela é mesmo uma “pessoa sem sorte”).
Em ambos os casos, há uma perda de autoconfiança da vítima (pensem nisso como o cidadão em geral, vítima constante para além do Direito Penal). Pensem nas vítimas da tragédia de Santa Maria. O papel do Estado é o de provar a culpa, mesmo que não haja pena a ser aplicada. O Direito deve comunicar isso à sociedade e às vítimas (só para registrar: sim, eu acredito no Direito Penal; nenhum país do mundo abriu mão do Direito Penal; portanto, não quero lidar com a problemática da violência de forma idealista ou idealizante)
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

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