do Verdes Trigos
Bom livro para quem não quer esquecer o maior mito da canção argentina é “Carlos Gardel, Lunfardo e Tango“, de José Lino Grünewald, lançado pela Nova Fronteira há muitos, muitos anos (é um item precioso de sebo, para quem gosta do cantor e quer conhecê-lo melhor).
Pode ser que esta sugestão dê arrepios em gente que se habituou a associarGardel ao que há de mais cafona e machista, imaginando sempre que o cantor é pano de fundo indissociável de bebedeiras e choradeiras de crocodilo de cafajestes tropicais anacrônicos em botecos antigos. Uma homenagem feita a ele porHerivelto Martins, cantada por Nelson Gonçalves, é ainda um pouco responsável pelos estereótipos a que o cantor ficou associado, de certo modo. Vejam um trecho da letra: “Se cantavas a tragédia das perdidas/compreendendo suas vidas/perdoavas seu papel… Por isso, enquanto houver um tango triste/um otário, um cabaré e uma guitarra/tu viverás também, Carlos Gardel…” Por coisas assim, Gardel ficou associado para todo sempre a esse tipo de atmosfera barata onde quase sempre, como clichê, rolam e reinam “Mano a mano”, “Por una cabeza” e congêneres.
Pode ser que o pessoal de gerações mais recentes considere ouvir Gardel uma grande besteira, depois que – segundo a argumentação mais moderna – Piazzola reinventou o tango argentino, tirando deste as suas gorduras, o seu sentimentalismo viscoso, tornando-o contemporâneo, com toques de Bela Bartók, Stravinski e jazz. Esta resistência tem suas razões de ser, mas é o problema do clássico bom-gosto, que pode ser esterilizador demais. E há nisso um pouco de ouvido ruim também, pois quem prestar atenção não ouvirá em Piazzola um destruidor do tango, mas um criador que revitalizou a sua passionalidade com uma habilidade tal que não fez senão prolongar o que ele já tinha de melhor. Tango não é uma coisa, graças aos céus, bem-comportada: o sentimento é intenso, patético, exagerado, e, mesmo filtrado, não pode desaparecer, sob pena de perder o atrativo. Basta que a gente se detenha no “Tango del angel”, de Piazzola, arrebatado e arrebatador, emotivo até os ossos, para se entender isso.
Quanto às letras, os tangos que Gardel cantava trazem uma poesia que eu acho que não envelhece, a despeito de seus exageros e de seus lamentos de machões feridos em seu narcisismo clássico, mulheres sempre más, traições, patifarias etc. Para quem for procurar o livro de Grünewald, é bom adiantar que ele traz uma segunda parte com um vocabulário do “lunfardo“, a gíria portenha que se incorporou ao tango, e também uma série de letras de tangos clássicos, que pensamos ter entendido, mas nem tanto…Ao ouvi-las, ouvimos uma coisa; vendo-as impressas, descobrimos outras tantas. O vocabulário ajuda a decifrar as letras e as letras nos ajudam a voltar àquele passado em que o tango era onipresente em rádios brasileiras do interior. Gatos de porcelana, machos que só se condoem de si mesmos, mulheres fatais, imprecações contra o Destino e até mesmo uma exaltação verdadeiramente trágica do papel materno em “Silencio” (no qual uma mãe perde seus filhos na Primeira Guerra Mundial), Gardel cunhou signos de um imaginário lírico e trágico que volta e meia nos voltam à memória e parecem conter verdades emocionais que ressoam profundamente em nós. Não entenderemos quem somos se não prestarmos atenção (eu nem diria tributo, apesar da palavra me tentar) a eles.
No meu último livro, “Hóspedes do vento“, há um conto, “A terceira porta“, que nasceu sob a influência da letra de um tango, “En esta tarde gris“. E, sem perceber, o que narrei foi um melodrama – o toque portenho contaminou a história. Claro que, ao perceber isso, procurei “secar” o sentimentalismo implícito com ironia e boas doses de distanciamento, mas, se obedecesse demais a este, percebi que o conto não teria a eficácia que eu pretendia que tivesse.
É a história de uma mulher que, viúva, retorna à cidade natal (de onde saiu quando jovem e onde já não reconhece mais nada) e procura por certo Xavier, cantor de tango que tinha o pseudônimo de “Javier Ferres” por quem se apaixonou ao ouvir cantar, num bar antigo da cidade, o tango “En esta tarde gris“. Ela fica sabendo que ele está ainda vivo, e vai procurá-lo com vontade de reencontrá-lo tal como um dia o amou, mas…
Mais do que isso não contarei, claro. Usei abertamente lembranças de minha terra natal, Novo Horizonte, SP, onde era comum que eu, desde menino um ouvinte fanático de rádio, me deixasse contagiar por um programa da antiga rádio de lá, ZYS-9, que era patrocinado por um hotel local, só de tangos. Minhas irmãs mais velhas, Josefa e Santa, gostavam de cantar junto com aquelas letras, e falavam não só de Gardel, mas de Libertad Lamarque, Pedro Vargas, Nat King Cole (que tinha um disco de boleros de enorme sucesso na época), Bienvenido Granda, Miguel Aceves Mejia… Havia muitos imitadores brasileiros de cantores de tangos e boleros, e adotar um nome castelhano como pseudônimo, para cantores apenas esforçados e quase anônimos como o “Javier Ferres” do conto, era bastante comum.
Em minha casa, rolava uma espécie de culto ao que era cantado em castelhano, porque, quando menino, vivia-se ainda, no rádio, entre fins dos 50 e inícios dos 60, sob a força (só diluída bem mais tarde, com a Bossa Nova e a Jovem Guarda) do bolero, da rumba, do mambo, do tango, da rancheira. Éramos, curiosamente, mais afeitos à música da América Latina (mas sem contaminação por ideologias políticas, como posteriormente) naqueles tempos. No meu caso particular, meu pai, espanhol nascido em Málaga e vindo já menino crescido para o Brasil, jamais falou português direito e nem se esforçou para isso, e em casa havia uma fala informal de portunhol, que facilitava o entendimento daquelas canções para lá de sentimentais. Vou sempre associar o tango a tardes que pareciam particularmente “grises” e a um sentimento de que eu podia entender a “melancolia portenha” muito bem, de um modo que parecia até predestinado.
UMA VIDA UM TANTO MISTERIOSA
Minhas irmãs adoravam Gardel, e, lá pelo meio das conversas delas, eu, menino, sem entender muito bem o que eu via, aprendia que ele havia feito filmes também e que morrera num desastre aéreo na Colômbia, relativamente moço, tragédia que ecoara por toda a América Latina.
Dezenas de controvérsias cercavam esse mito, ou mito não seria, e foi bom encontrar eco dessas coisas no livro de Grünewald. O mistério já começa com seu nascimento, alguns reivindicando que se tratava de um uruguaio, outros querendo que fosse de Buenos Aires mesmo, mas os documentos mais sólidos o apontando como francês. Capaz de cantar com tanta sensibilidade aqueles dramas de amor, ninguém conseguiu, no entanto, detectar uma mulher definida em sua vida, a não ser sua mãe, a quem devotava um afeto que parecia excluir o resto da humanidade feminina. Bastou para que os psicanalistas de bolso lessem o dilema freudiano de sempre e cismassem que era homossexual, coisa de que ninguém tampouco teve a mínima prova (a meu ver, a forçosa associação que se faz entre homens muito devotados às mães e a homossexualidade masculina não tem uma leitura única; é sabido que machões prototípicos veneram a mãe acima de tudo, sem terem aversões ao contato heterossexual – pelo contrário, preferindo-o claramente – e sendo muito bem capazes de manter os grandes amigos como grandes afetos sem querer ir para a cama com eles). Gardel, segundo se depreende do livro de Grünewald, parecia preocupar-se exclusivamente com a qualidade de seu canto, de sua música.
É bom nem falar dos filmes dele. Há DVDs deles nas bancas do país, mas em estado miserável de imagem e som, verdadeiro atentado aos nostálgicos que os compram (só os fãs menos críticos podem agüentar aquilo). Praticamente, passou a curta vida toda cantando, gravando discos às pencas e fazendo esses filmes. Durante muito tempo ficou relegado ao panteão dos deuses da cafonice latina, mas talvez essa rejeição só tenha se operado mesmo numa faixa mais intelectualizada e esnobe, e mesmo nessa havia dissidências. Escritores como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar se detiveram diante do mito e o primeiro lhe escreveu um poema enquanto o segundo lhe dedicou uma bela crônica quando exilado em Paris ( que pode ser encontrada no livro).
Ele não morre, e não há por que morrer quem cantava “Madreselva” e quem, em “Amargura“, faz a mais rasgada confissão de machismo ferido de que tenho notícia: “Um viento de locura/atravesó mi miente/deshecho de amargura/yo me quise vengar/Mis manos se crisparon/mi pecho las contuvo/su boca que reía/ yo no pude matar…”Sugere um ódio danado às mulheres, mas dessa psicopatologia machista saíam pérolas poéticas imprevisíveis, como as que brotavam no Brasil nas letras do nosso Lupiscínio Rodrigues, de Herivelto Martins e tantos outros.“Su boca que reía/yo no pude matar…”
Pode-se deduzir que “essa boca que ria” rirá por toda eternidade desse homicida em potencial que, na verdade, era apenas um homem frágil que abrigava sob seu rancor as maiores vulnerabilidades que um apaixonado podia guardar. Ele não mataria ninguém, claro – ele apenas lançava bravatas e esperneava com pena de si mesmo. Notas assim soam nas peças e crônicas de Nelson Rodrigues e também, ironicamente, desesperadamente, parodicamente, nos contos de Dalton Trevisan e nas letras conscientemente debochadas de Aldir Blanc. Embora alguns narizes pretensamente superiores se empinem diante da música popular, vendo nessas coisas apenas plebeísmo, vulgaridade e baixeza, é para a eternidade que certas broncas masculinas, mais desesperadas do que cafajestes, foram escritas.
Gardel é um desses mitos com quem temos uma relação meio “pecaminosa”, porque escorrega no mau-gosto, mas é grandemente reveladora. Se alguém acha que o seu machismo é grande demais, tente imaginar maior louvor, verdadeiramente místico, a uma mulher como o que foi escrito em “El dia en que me quieras”. Outro dia, vendo televisão, vi um trecho do filme homônimo em que ele canta a sua canção mais famosa e entendi perfeitamente a razão da perenidade dela. Difícil imaginar música que idealize mais o amor de uma mulher e seja de uma devoção até mística, com seu “rayo misterioso” que “hara nido em tu pelo”, e ao mesmo dê a impressão de uma consumada impossibilidade, donde o tom de lamento e desespero que a percorre: o que ela deseja e prega é bonito demais para poder existir senão como um suspiro impotente pela fusão entre dois amantes e o resto do universo.
* Chico Lopes é autor de três livros de contos, Nó de sombras (2000), Dobras da noite (2004) publicados pelo IMS/SP e ” Hóspedes do Vento ” (2010) publicado pela Nankin. Participou de antologias como ” Cenas da favela ” (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a “Cult” e “Pesquisa“. Também é tradutor de sucessos como ” Maligna ” (Gregory Maguire) e ” Morto até o anoitecer ” (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.
Mais Chico Lopes, clique aqui
Email: franlopes54@terra.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Posso não publicar, baseado nas regras de civilidade que prezo. Obrigado.