domingo, 22 de abril de 2012

Grandes lembranças...eita Curitiba...!!!


A gurizada de hoje não sabe o que é.
Fechou a Curitiba onde eu vivi
Só não fechou este meu tempo de guri.
Viu, guria !
Saudade da Curitiba dos meus tempos de guri.
Das partidas do “bete-ombro”.
Do jogo de tique.
De pular corda e amarelinha riscada de giz na calçada.
Do jogo de búrico ( bolinhas de gude, de vidro…)
Fidusca em pó, Maria Bodó.
Dos treinos no campinho com as bolas de “capotão” da Casa Walter.
Saudade do jogo do bafo com as Balas Zequinha.
Tinha Zequinha Médico.
Zequinha Radialista.
Zequinha Motorista.
Zequinha Papai Noel ( a mais difícil, quase não saía ) .
Tinha até Zequinha Ladrão.
As figurinhas embrulhavam aquelas balas ruins, que ninguém chupava,
mas que divertiram muito a piazada.
No jogo do bafo era proibido cuspir na mão.
Dos balões de São João que iluminavam as noites frias da Curitiba
dos meus tempos de guri.
Era Balão Caixa, Balão Mimosa, Balão Cruz.
De todos os tamanhos e de todas as formas.
Tinha uns grandes,
tão grandes que até os bombeiros vinham ajudar na hora de acender a tocha.
Os soldados vinham, erguiam a escada, seguravam a copa,
o baloeiro acendia a tocha, o fogo ardia e o balão subia,
espargindo parafina incandescente sobre a Curitiba dos meus tempos de guri
( nunca ouvi falar que um balão tivesse provocado incêndio! ).
Das raias ( pipas, pandorgas ) que esvoaçam pelos campos da Galícia.
Éramos felizes os piás de Curitiba.
Espremidos nas calças curtas os piás e as meninas
nas suas saias de sarja azul marinho,
toda pregueada, como mandava o uniforme escolar,
levavam para a escola um punhado de bolachas Duchen e meia garrafa de Capilé.
Às vezes, Crush ou Mirinda.
Quando não, um suco de uva Grapete.
Ou gasosa de framboesa da Cini.
Prá variar, Minuano.
Tinha uns que levavam Bidu-Cola ou Guaraná Caçulinha, com bolacha Maria.
Aos domingos, faceiros, no terninho de marinheiro da Maison Blanche,
iam à matinada
do Cine Ópera para ver Tom e Jerry.
As meninas, gabolas, enfeitadas em suas saias godê,
da Joclena,
e blusinhas da Mazer,
uma loja infantil ao lado da Gomel, na Praça Tiradentes.
A Maison Blanche era de meninos.
A Joclena e a Mazer, de meninas.
Para os sapatos tinha a Cirandinha.
Piá nenhum admitia vestir o tal de brim coringa não encolhe,
aquele tecido azulão grosso,
especialmente para macacão de mecânico,
que hoje chamam de jeans.
As meninas vestiam tafetá ou veludo, também em festas,
os vestidos godê ponche feitos de organdi suíço.
Os meninos, terninhos de casemira.
Quando muito, camisa Volta ao Mundo e calça de Tergal.
Piás felizes chutando bola,
descalços,
sobre as rosetas dos campinhos por todos os lados.
Esse tempo acabou,
assim como acabou a Modelar,
a Casa Rosa,
a Casa Vermelha,
a Casa Sade.
Não tem mais a Casa da Sogra do Aron Ceranko, presidente do Ferroviário
(que também não existe mais).
Não tem mais a Casa da Pechincha.
Desapareceu o Louvre do Kalluf .
Cadê seu Jamil e seu Miguel e a Capital das Modas?
Não tem mais a Casa das Meias do telefone 66-6666,
nem o 444 da Barão.
A Casa Edith, acredite, ainda tem, mas os chapéus Prada não vende mais.
E a Três Coelhos, em que cartola se meteu?
Não tem mais Móveis Cimo.
Já não se ouve mais o apito da Fábrica Lucinda.
Mudou a Casa Feres, pequena por fora e grande por dentro .
As Casas Lorusso, suba que o preço desce , também desapareceram.
Fechou a Casa Dico  – Fique Rico comprando na Dico -
A Joalheria Pérola, do Kaminski,
a Importadora Americana, do Marcos Salomão Axelrud,
que vendia o Simca Chambord e o Simca Rally.
E as casas da Uda e da Otília ?
Desapareceram o Frischmann´s Magazine,
assim como o Chocolate Basgal, da Tiradentes.
Não tem mais a Tarobá, do Pedro Stier,
em cujas vitrines o pioneiro Nagib Chede exibiu o primeiro programa de TV do Paraná,
projetado diretamente do último andar do Edifício Tijucas.
E o povo encantado via o Jamur em preto e branco, contando as notícias do dia.
Não tem mais o Cine Curitiba
onde os piás trocavam gibis do Capitão Marvel, pelos X-9 do Monte Hale.
Cadê o Cine América,
o Palácio,
o Broadway,
o Avenida,
o Ribalta,
o Oásis,
o Rívoli,
o Vitória,
o Curitiba,
o Marabá,
o Luz,
o Arlequim,
o Ritz.
Até os filmes do Morguenau e do Guarani chegaram ao fim.
Acabaram as matinês do domingo à tarde.
Se você aprontava durante a semana lá se ia a matinê de domingo.
Era ficar na janela vendo os amigos irem, com um monte de gibis embaixo do braço.
Lembram que quando o mocinho beijava a mocinha
todo mundo fazia barulho com os pés no assoalho de madeira do cinema?
Não tem mais o bar Pigalle
Nem o Massalândia Roma, do seu Francesco D'Angelis, ali na praça Osório
E o Lá no Luhm, da Barão?
E a Charutaria Liberty, na esquina da XV com Monsenhor Celso, para onde se mudou?
O Hermes Macedo – do Rio Grande ao Grande Rio – que rumo tomou ?
E o Prosdócimo ?
Não vejo mais as Óticas Curitiba, dos Irmãos Barbosa.
Onde foi parar a Casa Nickel, que vendia Chevrolet ?
Desapareceram a Casa Londres e a Ottoni.
O Lord Magazine,
onde se comprava o esporte-fino para ser exibido
nos chás-dançantes de Medicina e Engenharia.
A Slopper também acabou.
Mesmo fim levaram Calçados Clark, Lojas Ika e Pugsley.
Acabou-se o Café Alvorada do Senadinho.
Fechou o Ouro Verde, onde nasceu a Boca Maldita.
Nem Café Marumby, nem Café Piraquara tem mais.
Apagou-se o neon da Caixa Econômica, na Praça Zacarias,
com as moedinhas correndo e caindo no cofrinho.
E a Farmácia Minerva,
que vendia Zig e Mercúrio-Cromo
e também pasta Kolynos, creme dental Eucalol e sabonete Lifebuoy.
Será que ainda existe o Talco Ross ?
E o Rum Creosotado ?
E Auricedina?
E a Pomada Minâncora?
E o Vinho Reconstituinte Silva Araújo?
E o Regulador Xavier :
número 1 excesso
número 2 escassez
E Antissardina
( o segredo da beleza feminina ).
E o Creme Rugol.
E as Pílulas de Vida do Doutor Ross – fazem bem ao fígado de todos nós – ?
Nem a Stellfeld, do relógio de sol sobrou,
com suas prateleiras repletas de Cibalena, Varamon e Cafiaspirina, Glostora e Gumex.
Só o relógio de sol resistiu, como a testemunhar os meus tempos de guri.
Saudades do time infanto-juvenil do Juventus
o moleque do Batel
do técnico Tuca , do Sabá, dos Cava, do Tonico, do Paulinho,
dos irmãos Popadiuk, do Roberto italiano ...
No Edifício Azulay ficava a Musical .
Ali também ficava a loja de calçados Pisar Firme.
A Clark também ficava lá,
assim como a Farmácia Colombo.
Eo curso W.Abreu, preparatório para Direito ?
E o Curso 19 de Dezembro que não pagava ninguém ?
Fechou o Banco de Curitiba, quebrou o Banestado.
E o Bamerindus ?
Cadê o Colégio Parthenon,
o Iguassu ( pagou, passou! ) da Praça Rui Barbosa?
E o Colégio Cajuru ?
Por onde andarão as suas alunas, tão bonitas e invejadas ?
E as meninas do Sion com suas saias cor de vinho?
E as normalistas do Instituto de Educação por onde andarão?
Acabaram-se as empadinhas da Cometa e os queijos da Casa da Manteiga.
No Mercado Municipal tinha o Manquinho, da Mercearia Sulina.
Só vendia o que era de primeira .
Ele mesmo dizia, aqui presunto, se quer mortadela vai em outro.
A coalhada da Schaffer, servida pelo seu Milton,
o Toddy da Leiteria Viana,
e o pão sovado da Berberi, em que forno se enfornou ?
Por que não tem mais Milo para beber com leite, era tão gostoso !
E a pastelaria Ton Jan, da Marechal ?
Tinha pastel de carne e de palmito. E também o especial, com ovo e azeitona
Fechou a Churrascaria Bambu, a Tupã.
Até a Caça e Pesca fechou.
Alguém se lembra do Mitóca ?
Não tem mais o açougue Garmatter e nem o Francês.
E o piá de pedra fazendo xixi na frente do Posto Garoto, cresceu?
E a pérgola na Travessa Oliveira Belo que os Bombeiros mandaram retirar ?
Acabou-se o rabo-de-galo do Bar Americano
e não tem mais a carne de onça do Buraco do Tatu.
Nem o filé completo da Tingui.
Nem a dobradinha do Restaurante Rio Branco.
Do pastelzinho do Pasquale,
nas manhãs dos sábados no Passeio Público,
restou a saudade.
O Locanda Suíça desapareceu.
Até o Gruta Azul sumiu.
O Jatão, em Santa Felicidade, travou a turbina e caiu.
Desmoronou.
Nem a Maria do Cavaquinho,
nem a Gilda,
nem o Esmaga
nem o Osvaldinho da Praça Osório,
perambulam pelas portas da Velha Adega, na Cruz Machado,
ou pela frente da Gogó da Ema na Comendador.
Por ali onde andava o Saca-Rolha,
nas tardes de sol,
com o seu guarda chuva sempre fechado.
O Bataclã não desfila mais com o seu terno branco
e cravo vermelho na lapela,
pela frente do Fontana Di Trevi
ou da Guairacá, na João Pessoa que virou Luiz Xavier.
Fechou a Curitiba onde vivi.
Só não fechou este meu tempo de guri.
Não tem mais Leminski,
nem Kolody.
Dele, resta o lamento:
Esta vida é uma viagem;
pena eu estar só de passagem
Dela, um alento:
Para quem viaja ao encontro do sol é sempre madrugada.
De mim, o consolo:
Saudade
és a ressonância de uma cantiga sentida
Que
embalando a nossa infância
Nos segue por toda a vida .

Curitiba querida DOS BONS TEMPOS, que bom que eu te vivi !
autor  anônimo

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Como a Argentina busca a verdade e produz justiça


Publicado originalmente no "Carta Maior", em 05/04/2012


Se, na economia, o Brasil é o gigante da América do Sul, no terreno da busca da Verdade, da Justiça e da Memória, a Argentina é a referência principal com uma história de busca da verdade, construção da justiça e reconstrução da memória. Em entrevista à Carta Maior, Remo Carlotto, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Garantias da Câmara dos Deputados, fala sobre o sentido desses avanços e de outors que estão por vir. Um deles é a responsabilização de civis e grupos empresariais que participaram ativamente do golpe, da repressão e da prática de crimes contra a humanidade.





Porto Alegre - A Argentina é, sem dúvida alguma, o país que mais avançou na América Latina na tarefa de julgamento dos crimes cometidos durante o período ditatorial que assolou o continente. A desmoralização dos militares argentinos após a Guerra das Malvinas contribuiu para isso, é verdade, mas essa não é a parte mais importante dessa história de busca da verdade, construção da justiça e reconstrução da memória. Neste processo, a Argentina inovou e segue inovando em matéria de direito civil, penal e constitucional. Pactos e tratados internacionais de direitos humanos, subscritos pelo país, foram incorporados à Constituição. Além disso, o Congresso argentino tem legislado em matéria civil, introduzindo a figura da desaparição forçada de pessoas no Código Civil e no Código Penal. Agora, prepara-se para fazer o mesmo com a figura do genocídio.

Em vários aspectos, a Argentina está a anos-luz do que ocorre no Brasil nesta matéria. Em entrevista à Carta Maior, o deputado nacional Remo Carlotto, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Garantias da Câmara dos Deputados, fala sobre o sentido desses avanços e de outros que estão por vir. Um deles é a responsabilização de civis e grupos empresariais que participaram ativamente do golpe e da repressão. Na entrevista ele cita alguns exemplos:

“(...) A empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires, um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz. O mesmo ocorreu com a principal empresa açucareira argentina, Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o sequestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nación, a empresa Papel Prensa, a partir do sequestro e da tortura dos proprietários dessa empresa que produz papel para jornais”.

Carlotto esteve em Porto Alegre participando do 5º Encontro Latinoamericano Memória, Verdade e Justiça. Conhecer a experiência argentina é indispensável para transformar essas palavras em eixos estruturantes de políticas públicas de defesa dos direitos humanos e da democracia. Se, na economia, o Brasil é o gigante da América do Sul, no terreno da busca da Verdade, da Justiça e da Memória, a Argentina é a referência principal.

Carta Maior: O senhor veio a Porto Alegre para participar de um debate sobre o conteúdo e as consequências das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relacionadas a crimes cometidos pelas ditaduras civil-militares do Cone Sul. A Argentina é o país da América Latina que mais avançou neste terreno. Qual a sua avaliação sobre o modo como as sentenças da Corte Americana vem sendo tratadas na região?

Remo Carlotto: A Argentina tem uma característica particular com respeito ao direito interno de aplicação dos pactos e tratados internacionais de direitos humanos subscritos por nosso país. A partir da reforma constitucional de 1994, a Argentina incorporou no artigo 75, inciso 22, da Constituição, todos os pactos e tratados de direitos humanos subscritos até esse momento. Isso significa que a hierarquia que esses pactos e tratados tem no direito interno equivale à ordem constitucional, o que provoca um reordenamento da interpretação jurídica em nosso país, afetando as leis em sua totalidade, não só aquelas que têm a ver especificamente com a aplicação de uma legislação vinculada a um direito em particular. 

A partir desse momento, toda legislação do país deve contemplar os pactos e tratados internacionais em matéria de direitos humanos assinados e reconhecidos pelo país. E os pactos e tratados posteriores a 1994 têm um sistema de incorporação que é similar aquele adotado pelos países da região e que envolve a assinatura do tratado e sua ratificação pelo parlamento nacional. Com uma maioria especial (dois terços da composição de ambas as câmaras, de deputados e de senadores), esses pactos podem ser incorporados à ordem constitucional.

Neste sentido, o direito internacional está muito presente na discussão legislativa na Argentina e também na aplicação e na interpretação das leis, o que tem favorecido um tema central neste debate do qual estamos participando , a saber, que não podem existir leis de anistia e de perdão que impeçam o julgamento de crimes contra a humanidade e, no caso da desaparição forçada de pessoas, a imprescritibilidade desses crimes.

Carta Maior: Como é esse debate no interior do Legislativo? 

RC: Nós temos acompanhado no Legislativo os atos de reparação por parte do Estado argentino. Além disso, temos legislado em matéria civil, introduzindo a figura da desaparição forçada de pessoas no Código Civil e no Código Penal. Ou seja, na Argentina pode-se julgar e condenar alguém pelo crime de desaparição forçada de pessoas. Hoje estamos debatendo a incorporação da figura do genocídio em nosso código e também temos a tarefa de ratificar as reparações que devem ser feitas pelo Estado para as vítimas da ditadura. Não se trata apenas da reparação de caráter econômico, mas também o reconhecimento, pelo Estado, da prática de crimes. Isso significa uma vinculação de ordem jurídica, mas também uma interpretação e um olhar interdisciplinar sobre as formas de reparação das vítimas, familiares e sobreviventes, por parte do Estado de uma maneira integral. Legislamos ainda em matéria de construção da memória como uma ação pública. Ou seja, o leque de opções e conceitos que vem sendo adotados pelo Estado argentino é amplo.

Cabe observar que tudo isso depende de decisões de caráter estritamente político. Um exemplo é a implementação de um processo, em nível parlamentar, para a reversão das leis de impunidade. Tivemos duas delas: a Lei de Obediência Devida, que determinava que os membros das forças de segurança e das forças armadas tinham cumprido ordens e que só as cúpulas eram responsáveis; e a Lei do Ponto Final, que estabelecia um término para a apresentação de ações judiciais relacionadas a crimes da ditadura. Essas duas leis obstruíam o acesso á Justiça. Então, o caminho que se seguiu na ordem parlamentar foi propor a anulação dessas leis, declarando-as absolutamente nulas por contrariarem o direito internacional reconhecido pela Argentina. Isso ocorreu não somente pela reforma constitucional de 1994, mas também pela interpretação do direito internacional que afirma que nenhum tipo de crime ou ato genocida pode ser anistiado ou declarado impune. Posteriormente houve uma ratificação por parte da Corte Suprema reconhecendo a inconstitucionalidade dessas leis.

Avançamos também em outra direção. Tivemos participantes do terrorismo de Estado que foram eleitos parlamentares e o Parlamento acabou impedindo que tomassem posse, declarando a incompatibilidade moral de alguém que participou de tortura e crimes aberrantes ocupar um cargo público de representação popular. Assim, o âmbito parlamentar tem um duplo papel neste processo: um papel de caráter legislativo para adequar toda a legislação nacional aos pactos e tratados internacionais, e um papel eminentemente político que deve acompanhar os processos de julgamento dos responsáveis pelos crimes da última ditadura civil-militar e monitorar o cumprimento desses pactos e acordos. Os países, muitas vezes, subscrevem pactos e tratados internacionais e depois não os cumprem. Por isso, é fundamental desenvolver ferramentas de monitoramento interno.

Carta Maior: Há algum outro país da região que tenha feito essa incorporação constitucional de tratados e pactos internacionais?

RC: As reformas constitucionais realizadas por Equador, Bolívia e Venezuela caminham nesta direção. Não é exatamente a mesma coisa que foi feita na Argentina, mas tomam o direito universal e o sistema interamericano de direitos humanos e o incorporam, artigo por artigo, dentro da própria estrutura da Constituição. Mais do que isso, essas Constituições, no marco da interpretação do Constitucionalismo social latino-americano, apresentam profundos avanços em matéria de garantia de direitos humanos. Esses países seguem um caminho sumamente auspicioso por que avançam também sobre temas específicos e particularidades de sua realidade social e política.

Há um tema de fundo por trás desses avanços. Cada vez que falamos de crimes cometidos pelas ditaduras civil-militares estamos falando da usurpação dos recursos econômicos do Estado por parte de grupos econômicos concentrados em nossos países. Os militares não decidiram, sozinhos, levar adiante ações criminais, só pelo prazer de praticá-las. Eles fizeram isso no marco da implementação de planos econômicos muito direcionados, sob a coordenação dos Estados Unidos e apoiados em uma doutrina de segurança nacional. Essa espoliação das economias de nossos países foi sustentada pela ação repressiva e persecutória por parte das ditaduras.

Carta Maior: Em que consiste precisamente o ponto de vista do Constitucionalismo Social para esses temas?

RC: A prioridade dada à busca da garantia de direitos tem a ver também com a forma pela qual a riqueza é distribuída em nosso país e a forma pela qual se tem acesso à totalidade de direitos. Esse é o ponto de vista do Constitucionalismo social, que considera que os direitos humanos não podem ser dissociados um do outro. A Argentina é um dos cinco países que ratificou o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse pacto está baseado em quatro pilares – acesso à habitação, à educação, à saúde e ao trabalho -, a partir dos quais se pode demandar judicialmente os Estados para que cumpram e garantam esses direitos. Essa é a concepção que temos sobre a distribuição da riqueza em nosso país. 

Então, respondendo sua pergunta, o Constitucionalismo social que está sendo implementado nestes países latino-americanos está diretamente relacionado com um processo distributivo de garantia essencial de direitos que é, em última instância, o que articula a garantia da totalidade de direitos em nossa sociedade.

Carta Maior: Na Argentina, os militares saíram do poder muito desmoralizados e enfraquecidos politicamente, tanto pelo que aconteceu na Guerra das Malvinas, quanto pela crise econômica na qual acabaram mergulhando o país. Aqui no Brasil, ao contrário, os militares saíram relativamente ilesos e hoje ainda tem uma força política grande o suficiente para resistir a uma iniciativa como a Comissão da Verdade. Na sua avaliação, a Corte Interamericana da OEA tornou-se um caminho para superar essa barreira imposta pelos militares e seus aliados civis no Brasil?

RC: Creio que os processos de conhecimento da verdade, de construção da memória e da justiça são processos inexoráveis para nossas sociedades. Não há como impedir que a sociedade saiba a verdade, que saiba o que aconteceu com as pessoas que estão desaparecidas, quem foram os responsáveis. Sem nenhuma dúvida, os instrumentos internacionais, como são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, têm um papel sumamente importante. Quando ratificamos um pacto ou um tratado internacional, estamos assumindo a responsabilidade perante estes organismos de seguir, por exemplo, as recomendações das sentenças que são proferidas por eles. Para isso, obviamente, é necessário o conhecimento e o esclarecimento do conjunto da população a respeito de seus direitos. Quando falamos de reparação por parte do Estado, estamos falando que a reparação não é só para as vítimas, mas também para o conjunto da sociedade. E isso é assim para que se possa construir uma sociedade com maior qualidade democrática.

A Argentina teve não somente a intervenção da Comissão Interamericana e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas também a aplicação da justiça universal através das ações do juiz Baltasar Garzon, na Espanha. Esses crimes que queremos esclarecer devem ser considerados como crimes contra a humanidade e, assim, devem ser perseguidos pela totalidade da comunidade internacional. Isso é o que aconteceu na Espanha, o que condicionou fortemente o próprio funcionamento do poder Judiciário em nosso país. O Judiciário avaliou que os crimes que haviam sido cometidos na Argentina deviam ser julgados na Argentina e não em outra jurisdição. Esse elemento também foi fundamental para romper o cerco de impunidade.

É disso que viemos tratar nesse encontro em Porto Alegre que reúne os países da região, parlamentares, procuradores, organizações de direitos humanos e investigadores, debatendo como podemos nos ajudar para romper esse cerco de impunidade em cada um de nossos países. Isso para nós é uma obrigação. 

A Argentina é, claramente, o país com o processo mais avançado nesta direção. Queremos contar nossos acertos e fracassos e transmitir as formas pelas quais podemos colaborar para obter essas demandas que consideramos essenciais à democracia. A nossa presidenta da República disse que se os crimes de lesa humanidade não fossem resolvidos na Argentina, o país seria uma sociedade pré-democrática. Na Argentina foi possível reverter um processo de impunidade, no marco do exercício estrito da justiça. Não houve nenhum ato de vingança pessoal nem se fez justiça pelas próprias mãos. Esperou-se pacientemente que a Justiça resolvesse os casos. E quando houve absolvição de alguns responsáveis por crimes, respeitou-se a decisão da Justiça. Esse foi um ato de profunda maturidade do povo argentino.

Os nossos estados devem implementar não somente uma política de memória em relação aos crimes, mas sim para formar e capacitar nossos agentes públicos, educar nossas crianças e adolescentes para a construção do verdadeiro “nunca mais”, que é saber que devemos respeitar irrestritamente o funcionamento democrático em cada um de nossos países e que devemos garantir integralmente os nossos direitos humanos.

Eu tenho um olhar otimista sobre esse quadro. A Argentina começou esse processo de justiça a partir da busca pela verdade. O caminho foi a busca da verdade. Isso desencadeou o resto das ações que acabaram dando início aos julgamentos dos genocidas. Tenho uma visão esperançosa sobre o debate que está ocorrendo no Brasil, no Uruguai, no Paraguai e também no Chile. Parece-me que temos um olhar comum, uma experiência compartilhada comum, consequências da ação do terrorismo de Estado muito similares e, em função disso, devemos ser atores que articulem a reparação que os estados devem fazer. O que não podemos é seguir deixando que as vítimas sejam quem toque isso adiante. Os estados devem assumir a responsabilidade por esse processo.

Carta Maior: O senhor observou que os militares argentinos, assim como ocorreu no Brasil e em outros países sulamericanos, não deram o golpe e cometeram todos os crimes que cometeram simplesmente por que foram movidos por um desejo sádico. Eles tinham uma conexão com setores econômicos civis da sociedade. Há um movimento na Argentina para responsabilizar os representantes de empresas e de setores sociais que apoiaram e foram cúmplices do golpe e de ditadura?

RC: Sem dúvida alguma. Nós dizemos que a ditadura na Argentina foi uma ditadura civil-militar. Isso significa que poderosos grupos econômicos, que denominamos de oligarquia argentina, foram enormemente beneficiados, fundamentalmente a partir da proposta de endividamento feita pelos Estados Unidos durante as décadas de 70 e 80. Neste período, a dívida argentina passou de 7 bilhões de dólares para 40 bilhões de dólares, sem que nenhum investimento fosse feito no país. Foram transferências diretas de recursos aos grupos econômicos mais concentrados. O ministro da Economia da ditadura civil-militar foi Martínez de Hoz, um integrante das direções das empresas mais importantes de nosso país. Mas não foi somente isso que aconteceu. Esses grupos também foram beneficiários econômicos a partir da aplicação do terrorismo de Estado. A implementação do seu programa econômico precisava que as organizações sindicais e sociais fossem desmanteladas.

Além disso, eles foram partícipes diretos da prática de crimes contra a humanidade. Temos o exemplo da empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires, um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz. O mesmo ocorreu com a principal empresa açucareira argentina, que é a empresa Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o sequestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nación, a empresa Papel Prensa, a partir do sequestro e da tortura dos proprietários dessa empresa que produz papel para jornais. Ou seja, temos uma enorme quantidade de ações judiciais onde há o envolvimento de empresários em crimes de lesa humanidade. 

Nós não acreditamos que os militares atuaram de uma maneira perversa e diabólica para levar adiante uma ação sem sentido. Eles fizeram o que fizeram para gerar terror na população e poder implementar esse processo de transferência de recursos econômicos de um país periférico para uma potência como os Estados Unidos e também para realizar uma transferência econômica interna, dos setores populares para os setores concentrados da economia, o que provocou a devastação do aparato produtivo do país.

Carta Maior: Há aí, sem dúvida, um outro traço em comum às ditaduras que tivemos em nossos países, a participação de grupos empresariais, entre eles grandes grupos de comunicação. Essa é uma outra área onde está ocorrendo uma profunda mudança na Argentina a partir da aprovação da Lei de Medios. Qual o estágio atual desse debate?

RC: O que está acontecendo na Argentina é que se questionou a hegemonia comunicacional do grupo Clarín, que possui não somente o diário de maior circulação no país, mas também cerca de 70% do serviço de televisão a cabo (em algumas regiões chega a 100%) e mais de 270 emissoras de rádio espalhadas por praticamente todo o território argentino. A situação da comunicação do país foi tema de debate e se sancionou a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, que democratiza o acesso à informação, a possibilidade de informar e de ser informado. Essa lei foi aprovada dentro do estrito marco dos direitos humanos, garantindo a democratização da palavra, o conhecimento das realidades locais e regionais. Isso significou, sem dúvida, mexer com o que significa hoje o epicentro das novas estruturas de poder. 

Antes se utilizava as estruturas militares para debilitar um governo; hoje se utilizam os meios de comunicação audiovisuais concentrados, que buscam condicionar os governos a partir da difusão e da tergiversação da informação. Isso ocorre em muitos países latino-americanos. Há, praticamente, uma matriz comum. Na Venezuela, essa estrutura midiática provocou um golpe de Estado. Foram fatos extremamente graves. 

Para nós, leis de comunicação que garantam a diversidade e a multiplicidade de vozes é a base essencial de onde devemos partir para discutir o que significa a democratização da comunicação. Isso significa também expor esses grupos midiáticos concentrados que manejam a informação pública segundo seus interesses particulares. Eles foram sócios diretos das ditaduras e hoje são sócios de grupos econômicos concentrados para gerar instabilidade em nosso país. 

Nós estamos discutindo muito seriamente a responsabilidade que cabe aos meios de comunicação, por exemplo, sobre a tergiversação de informações econômicas para gerar condições de instabilidade econômica em nosso país. 

Acreditamos que isso tem a ver com uma responsabilidade de caráter penal, pois não se pode mentir, tergiversar, para provocar desestabilização ou buscar vantagens econômicas. Esse é um debate muito rico. A Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual possibilita que organizações sociais, sindicatos, universidades e os próprios governos estaduais e municipais tenham canais de rádio e TV. Isso abre o panorama para que se tenha a multiplicidade de vozes necessária, reproduzindo nos meios de comunicação a diversidade da realidade que vivemos e não o olhar de uma empresa que tenta condicionar nosso olhar sobre a realidade que vivemos.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

A Formação da Identidade Brasileira e as Convenções Sociais: Um Beco Sem Saída?


Resumo: Este artigo pretende problematizar a identidade, como uma convenção socialmente necessária que é, a partir dos conceitos relativos ao tema que estão relacionadas às teorias do campo dos Estudos Culturais e às idéias de autores como Hall (2001) e Bauman (2005), um processo não estanque de construção nos tempos “líquidos” e pós-moderno, e questiona a formação e a construção de identidade nacional. A difícil definição incide nas infinitas saídas e pelas urgentes necessidades de novos paradigmas conceituais, tanto para a identidade, a identidade brasileira, como para formação desta. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica onde aceitamos o critério sócio-histórico, por um caminho processual também histórico, onde se presentifica a dialética do singular-particular-universal.
Palavras-chave: identidade; identidade “líquida”; identidade brasileira.

Introdução

Não sei se já observastes isso em vós mesmos – como ente humano e não como um fragmento, num mundo fragmentado. Um ente humano (...) não tem nacionalidade (...) “participar” não significa simplesmente estender a mão para receber alguma coisa. Significa que deveis compartilhar (...) se ganhais uma belíssima jóia e não sabeis quanto ela é preciosa, podeis jogá-la fora; sois incapaz de apreciá-la em companhia de outros.
Krishnamurti.
As (in)definições de conceitos relativos ao tema identidade estão relacionadas às teorias do campo dos Estudos Culturais onde é concebida “a cultura como espaço privilegiado de transformação do ser social” (Williams, citado por Escosteguy, 2003, p.57).
Esta pesquisa tem a orientação construcionista, bibliográfica, é exploratória, explicativa, qualitativa e refere que o objeto das Ciências Sociais é histórico. Onde, aceitando os critérios da historicidade, aproximado e construído, o pesquisador – cavador de respostas – na busca do progresso desta precisa estar associado muito mais às violações do que à obediência (Feyerabend citado por Minayo, 2004, p.16; Santos, 2002).
As propostas dos Estudos Culturais serão relacionadas com as idéias de autores como Hall (2001) e Bauman (2005) que situam o tema na pós-modernidade e no pós-estruturalismo, utilizando, respectivamente, os termos “modernidade tardia” e “modernidade líquida”. Estes e alguns outros autores dos Estudos Culturais fazem levantamentos que constituem a difícil definição da identidade brasileira ou de uma formação dela, coadunando urgentes necessidades de novos paradigmas para tal referencial que requerem análises complexas, de cunho emancipatório e urgentes, onde é necessária a revisão frente às crises dos paradigmas conceituais do conhecimento.
A construção de uma identidade – nacional – não se constitui em um processo simples porque é difícil conceituar termo tão ambíguo, ou até mesmo poético, romântico. Hall irá tratá-lo como “(. . .) demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido” no conhecimento social contemporâneo “para ser definitivamente posto à prova” (2001, p.8).
Os sujeitos assumem diferentes e conflitantes identidades, o que só torna o processo como algo diferente de inato e existente na consciência desde o momento do nascimento até a hora da morte. A identidade não se desenvolve naturalmente sendo formada em relação aos outros, ao longo do tempo, através de processos inconscientes. Gritando que existe “algo 'imaginário' ou fantasiado sobre sua unidade” (Hall, 2001, p. 37-38), fazendo com que ela permaneça incompleta, um processo que está sempre sendo formado e reformulado.
No que se refere a um país continental, composto de muitos diferentes sujeitos e demasiadas desigualdades sociais, econômicas e culturais, a pretensa definição de identidade nacional e a análise de sua formação requerem muito mais a possibilidade de alguma licença poética aliada ao rigor na complexidade de tal análise, do que o rigor científico em “recapturar esse prazer fantasiado da plenitude” (Hall, 2001, p.39).
O problema que norteia este artigo é se pode se falar de uma identidade nacional brasileira. A questão fundamental que direciona este estudo vincula-se ao referencial de identidade que utilizado numa ampliação e não num fechamento. A isto segue a pergunta: qual o referencial de identidade utilizado?
No livro “Identidade”, o entrevistador Vecchi diz que em sua impressão ao dialogar com Bauman, foi ficando consciente de ter adentrado um continente muito mais amplo que aquilo por ele esperado: o vasto território real incabível nos mapas. “Continente cujos mapas eram quase inúteis em se tratando de encontrar direções” (2005, p.7). Igualmente, nós nos deparamos com a impossibilidade de um fechamento tranquilo ou meramente tranquilizador pela imprecisão e pela própria complexidade a que a temática nos submete. Eles, entrevistador e entrevistado, falam do lugar de impossível definição de identidade no mundo de rupturas pós-moderno e líquido, cuja tarefa torna-se impraticável/impossível pelas suas infinitas saídas.
Durante o transcorrer do processo de pesquisa bibliográfica foi necessário aceitar que às referências circunscritas, articulavam-se paradoxos ao pensamento lógico formal em suas características determinantes e restritivas que não poderiam dar conta de tal complexidade.
O referencial de identidade parte do esfacelamento do próprio referencial – via alternativa – que abre maiores possibilidades de diálogo dentro do tema. O convite de Bauman (2005, p.12) é o de nos exercitarmos com um pouco de sabedoria nos preparando para que este exercício seja, inevitavelmente, rompido por convidados “inesperados” que ele chama de “estratégias de adaptação à modernidade líquida” e que tem ações nas sociedades capitalistas tardias. Somos lançados, sem poder descansar, ao infinito e às profundidades desta questão social, atual e crucial. O autor vai referir que “a identidade é uma convenção socialmente necessária” e que muitas vezes vem sendo usada “com extremo desinteresse no intuito de moldar e dar substância a biografias pouco originais”.
Submetendo, sob o pretexto de entreter, homens e mulheres hipermodernos à alienação, remetendo-nos a pensamentos reducionistas, cientificamente atomizado-nos em seres (uni nucleados) individualizados (indivisíveis). Inserindo distância aos sujeitos naquilo que poderia começar a responder à problemática, subjetiva e filosófica pergunta: quem sou eu?

Tradição na Globalização: o Esfacelamento das Fronteiras

Os seres da modernidade líquida e tardia, dentro dos cercadinhos de suas individualidades consomem seus variados aparatos tecnológicos, objetos elitizados na forma de consumismo ocidentalizante e capitalista para construção de identidades fictícias e vazias, alicerçadas no feti(ço)che da mercadoria (Marx, 2005)[01]. Como índios, modernos e civilizados aceitando bugigangas, espelhinhos, etc. no lugar da emancipação ou algum território de real democracia, vital soberania ou continuidade.
Tal situação dá sustentabilidade ao prolongamento de um novo colonialismo em suas características de passividade, anestesiamento, esquecimento dos conflitos, violências, identificação com o agressor – colaboração na “banalização do mal” e na “injustiça social” [02] – e a aceitação das desigualdades como ordem social natural.
(. . .) o crescimento da sensação de insegurança, com a ‘corrosão do caráter’ que a insegurança”, através do esgarçamento e estiramento que “a flexibilidade [no local de trabalho] têm provocado na sociedade” vem criando “as condições para o esvaziamento das instituições democráticas e para a privatização da esfera pública (BAUMAN, 2005, p.11, [grifo nosso]).
Ligada ao colapso do estado de bem-estar social a identidade pode ser vista como um dos processos dentro das grandes transformações que afeta as estruturas estatais, condições de trabalho, a subjetividade coletiva, a produção cultural, entre outras estruturas (Bauman, 2005).
Em diversas ocasiões Bauman zomba, de forma educada, daqueles que tentam conceitualizar, em uma definição, a relevância da identidade nas sociedades que tornaram incertas e transitórias as identidades sociais, culturais e sexuais: “qualquer tentativa de ‘solidificar’ o que se tornou líquido por meio de uma política de identidade levaria inevitavelmente o pensamento crítico a um beco sem saída” (2005, p. 12).
Em sua análise a questão se amplia no multiculturalismo ou no fundamentalismo em expansão. As identidades prontas para o consumo imediato são transportadas e transformadas rapidamente pelos veículos mediadores, como a internet – um dos vários exemplos destes mediadores midiados e antidemocráticos, que são impostos para consumo imediato (Bauman, 2005; Ianni, 2002).
A identidade irá falar a linguagem dos que foram marginalizados pela globalização e muitos são os que enfatizam que o recurso à identidade é como um processo contínuo de redefinir-se e de inventar a sua própria história, mesmo dentro das restritivas condições de identificar-se com a história da nação e suas relações de contextos muito maiores.
Sobre a comunidade, o autor supracitado refere que ela representaria “um abrigo em relação ao efeito da globalização em todo o planeta” (p.12). O mesmo valendo para a identidade, termo tão atualizado, que seria muito melhor não buscar as respostas tranquilizadoras em textos clássicos do pensamento crítico anteriores a este conceito (Bauman, 2005, p.8).
O sociólogo polonês refere que dentre os vários problemas conhecidos como “minha identidade”, o da nacionalidade ganhou um destaque particular nos deslocamentos e esfacelamentos repetitivos, onde ele diz:
Eu compartilho essa sorte com milhões de refugiados e migrantes que o nosso mundo em rápido processo de globalização produz em escala bastante acelerada.  (. . .) a identidade é um monte de problemas, e não uma campanha de tema único (. . .) Em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados enquanto as nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados (. . .). Mundo em que serão poucos aqueles que poderão evitar a passagem por mais de uma comunidade de idéias e princípios (Bauman, 2005, p.18-22).
Nesta obra, o autor discorre sobre os problemas com a questão da consistência, a continuidade da nossa identidade com o passar do tempo(“la mêmete”) e a coerência daquilo que nos distingue como pessoas (“l’ipséite”), “o que quer que isto seja”, problemas que assemelham as maiorias dos deslocados de algum centro de identidade unívoco:
Minha colega (. . .) se queixou de que, sendo mulher, húngara, judia, norte-americana e filósofa, estava sobrecarregada de identidades demais para uma só pessoa. Ora, seria fácil (. . .) ampliar a lista (. . .) para demonstrar a impressionante complexidade da tarefa (. . .)Sim, de fato, a “identidade” só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que    (. . .) a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusiva da identidade deva ser, e tenda ser, suprimida e laboriosamente oculta (Bauman, 2005, p.19, 21-22).
Complementando e, ilustrativamente referindo à revolução aí contida, Pierucci remete a questão da diferença dentro das diferenças e que penetram nos referenciais da identidade e do pertencimento, pois:
(. . .) reconhecer que ‘mulher' é uma categoria socialmente construída – Salve dona Simone de Beauvoir! – é começar a desconfiar para sempre de todas as garantias que se acreditavam fixas na natureza. Tal descoberta tem o efeito de uma revolução copernicana em nível de massa. Não há dúvidas que a noção de realidades “socialmente construídas”, importada da teoria sociológica e antropológica, acelerou muito o ritmo da produção de novas diferenças dentro das diferenças... (2000, p.145).
Atualmente, é mais difícil esconder essa verdade do que no início da era moderna. Completamos o raciocínio de que “seria fácil (. . .) ampliar a lista (. . .)” para desmoronar qualquer pretensão de convicções clássicas ou arcaicas!
As pessoas em busca de identidade se vêem invariavelmente diante da tarefa intimidadora de ‘alcançar o impossível’: essa expressão genérica implica, como se sabe, tarefas que não podem se realizar no ‘tempo real’, mas que serão presumivelmente realizadas na plenitude do tempo – na infinitude... (. . .) Tornamo-nos conscientes de que o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não tem a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’. Em outras palavras, a idéia de ‘ter uma identidade’ não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino (. . .) (Bauman, 2005, p.16/17).
O autor se refere, na passagem citada, a sua condição de expatriado e onde o seu destino de pertencimento foi abalado. Completa que só ao sair desta posição que poderá nascer a problemática de que se está diante “de uma tarefa a ser realizada, e realizada vezes e vezes sem conta”, e não de uma só tacada científica (2005, p.18).
Este destino como uma condição sem alternativas, onde se nasce e morre nele, realizando algum mito ou revelação, ou, ainda, como num beco sem saída!
A tarefa impossível e idéia imaginada de ter alguma identidade perfeita (porque idealizada) não ocorre com facilidade enquanto pertencemos a um único destino onde se nasce e morre realizando algum objetivo científico, trapaça mitológica ou revelação de um beco sem saídas!
A obra fictícia levaria à evidência da ambivalência da identidade e onde “a nostalgia do passado conjugada à total concordância com a ‘modernidade líquida’” levam a questão de que a identidade precisa envolver-se como que realmente é: uma convenção socialmente necessária e de transposição de trapaças ocultas. As trapaças que ficam ocultadas pelas transposições só poderão se revelar reconstruirmos a “passagem da dimensão individual, que a identidade sempre tem, para a sua condição como convenção social” (Bauman, 2005, p.13, [grifo nosso]).
O que o autor chama de questão central deixa evidente a participação do conhecimento como instrumento social – mito, religião e ciência – como construtores de modelos a serem seguidos para garantia de determinada unidade consensual.

Sobre as Raízes e os Aspectos Econômicos da Miséria Humana

Outra evidência revelada (Rorty [1998, p.79,91], citado por Bauman, 2005, p.43) é a crítica aos mensageiros das novas visões ou militantes das novas “causas sociais”, que preferem não falar em dinheiro elegendo como “[suposto] principal inimigo” um esquema mental e não o esquema de algum ajuste econômico.
A evidência que fica afastada da memória é aquela que deveríamos garantir como preocupação central de como e sobre quais as “causas profundas da miséria humana”. Sob graves riscos de reproduzirmos e identificando-nos, mesmo que inconscientemente, com erros antigos e constituintes a repetição que habilmente deslocamos da nossa memória:   
(. . .) o fato de os países que saíram na frente em termos de industrialização possuírem uma riqueza cem vezes maior que a dos não industrializados. Nossos filhos precisam aprender, desde cedo, a ver a desigualdade entre seus próprios destinos e os das outras crianças, não como a Vontade de Deus nem como um preço necessário pela eficácia econômica, mas como uma tragédia evitável (Rorty [1999, p.203], citado por Bauman, 2005, p.44).
Pierucci (2000) relaciona a internacionalização do capital e a divisão internacional do trabalho como formas híbridas de colonização de um processo que ainda não foi interrompido.
Hoje as ex-colônias estão presentes através de imigrações em massa através de “trabalhadores e trabalhadoras que vão do Terceiro para o Primeiro Mundo (. . .) em busca de trabalho” (PORTES [1995], citado oor PIERUCCI, 2000, p.171) deflagrando a ampliação no campo das identidades e a proliferações de novas posições referentes de identificação cultural, “identidades genéricas, abstratas”.
Situações novas que, como diz o autor, trazem novamente à tona o velho racismo através de um neo-racismo e seus dois dispositivos básicos: “o da diferença notada com os olhos fixos na pele” e o da “inferioridade imaginada, deduzida, propagandeada”, naturalizada e projetada (Bhabha; Wieviorka [1992] citados por Pierucci, 2000, p.174). Acrescentaríamos, a este último dispositivo, as desigualdades aceitas e introjetadas, programam um novo racismo mais “agressivo e regressivo” recheado em sutilezas e mágoas nas culturas “hospedeiras” e neocoloniais.
Dado que entre o Ocidente rico e o resto pobre do mundo persistem relações desiguais de poder econômico, mas também de dominação política e hegemônica cultural, e dado que o fluxo internacional de bens de consumo, bens de capital e força de trabalho obedece por isso mesmo a um direcionamento desigual, a globalização é pensada como sendo, essencialmente, um processo de ocidentalização de toda a terra mediante a ocidentalização capitalista do “resto” (Hall [1995], citado por Pierucci, 2000, p. 169)
A desigualdade está na base do domínio colonial, onde a colônia não tem nem liberdade nem soberania e “(. . .) nem sequer tem personalidade reconhecida (. . .)” (RÉMOND, 1974, p. 180), fato que a identifica, identifica o pertencimento de seu povo, a distingue do protetorado e da tutelar metrópole promovendo a cômoda situação de se ter uma identidade concedida em permuta frente à ilusão de vir a não ser, nem saber quem se é. Tornando-se, de tal forma, aquilo que não é irreconhecível.
O historiador supracitado (p.149) chama o “Movimento das Nacionalidades” no “sentido de uma doutrina política dentro das fronteiras dos países” que se justapôs aos grupos lingüísticos, étnicos, históricos de naturezas dessemelhantes no nascimento das nações desenhado após 1815 e através do fortalecimento do Estado. Fortalecimento e dispositivos que entram no lugar do “mecenato dos antigos príncipes”, através do liberalismo e da não intervenção e neutralidade do Estado.
Um dos efeitos mais significativos dessa “transferência de responsabilidades é a mudança da fronteira entre particular e o público”, o Estado, não é amado, torna-se naturalmente impopular, mesmo dentro dos rumos posteriores de uma constituição de blocos formados por uma direita nacionalista e contra uma esquerda internacionalista (RÉMOND, 1974, p. 97-98).
Bauman retoma, a partir de suas percepções, de que houve uma época em que os moradores das aldeias[03] e vilas (os vilões e os sujeitos das ruas) eliminavam a questão da “identidade” até que isto se tornasse um problema em suas formas de estar no mundo.  A identidade, então, passa a ser uma tarefa alicerce na questão de soberania, das pretensões à legitimidade e na crise de pertencimento que o Estado impunha a estes (2005, p.25). Podemos inferir que processo semelhante se deu para os povos primitivos e nativos nas antigas colônias.
Sobre a violência, Bauman nos conduz através da “ficção” em que a “natividade dos nascimentos” vai desempenhar como fórmula empregada pelo nascente Estado Moderno à legitimação da exigência de uma subordinação incondicional por parte de seus súditos, os cidadãos, em troca do seu reconhecimento. Esta ficção exige coerção, convencimento, vigilância constante e esforço gigantesco pela superposição do território domiciliar à soberania invisível do Estado (foi no início e continuou sendo por muito tempo uma “noção agonística e um grito de guerra” de “plebiscito diário” [Renan, citado por Bauman, 2005, p.27]).
Fazendo um paralelo com o conceito de comunidades européias frente à invenção do Estado-Nação, podemos pensar que ao ser descoberto e explorado, o Brasil – ou “Pindorama” [04], como o chamavam alguns dos nativos – possuía uma comunidade que não foi reconhecida por àquelas, civilizadas, que faziam e escreviam a história. Mesmo sendo anterior a ela, seu discurso oficial de verdades, que colonizavam o mundo com idéias eurocêntricas, santas, ideais, iluminadas e científicas.
As nações primitivas não constituíam autoridade suficiente nem foram reconhecidas, sendo descartadas enquanto riqueza de posição nos jogos de poder, seus dispositivos de manipulação arbitrários que fizeram com que o seu povo fosse eliminado ao ser eliminada a sua cultura e língua. A nação foi unificada, sendo colocada como infantilizada, submissa e colonial; subjugada ao poderio erigido sobre suas terras e riquezas materiais concretas e tomando, simbolicamente, a forma fragmentada de uma Nação continentalmente fraturada.
A identidade nacionalizada polonesa contada pelo autor foi lida pela história, diferindo do caso do Brasil, mas também foi martirizada e precisou acomodar-se violentamente aos moldes das pretensas identidades de outras nações, uma identidade una dos seus indivíduos que corresponderia ao Estado de direito. Dispositivos que culminaram nas grandes guerras e onde o Estado buscava a obediência de seus indivíduos e representava-se como a concretização do futuro da nação na garantia da continuidade destes.
O desejo dos sujeitos de tornarem-se reconhecíveis e pertencentes, do anseio por identidade, vem do desejo de segurança, estimulante e cheio de promessas à curto prazo, mas que a longo prazo, torna-se uma condição enervante e produtora de mais ansiedades sem perspectivas atraentes de estar fixo e ser identificado, portanto, controlado pelo permanente estado e sentimento de guerra (Bauman, 2005).
A base do domínio (colonial) como marca que identifica e distingue do protetorado tutelar (da metrópole) dispensa precocemente a liberdade e a soberania, promovendo ter alguma identidade reconhecida: sou brasileiro; mesmo sendo esta situação fictícia e um tanto vulnerável frente à ilusão e o medo de vir a não ter garantias, vantagens e sem ser ou saber, definitivamente, quem se é (Rémond, 1974).
Pensemos nas condições brasileiras: “Brasil”, o nome, refere-se ao primeiro produto (objeto, coisa, mercadoria) comercializado e extraído do pau-brasil na produção de tintura avermelhada (como o sangue) para a Europa civilizada (Calligaris, 2000).
Quanto ao adjetivo do ser nascido no Brasil, remeteria ao brasileiro ser o trabalhador estrangeiro na extração do pau-brasil, isto é reforçado na menção sobre a discussão da denominação correta para a designação das pessoas que nasciam no Brasil. O trabalhador brasileiro, hoje, extrai de sua própria substância (pau-brasil), sua brasilidade (tinta vermelha) não mais para, nem por um explorador estrangeiro, mas para e por seu povo, trabalhador, no nome adjetivado, da sua própria tintura, língua e brasilidade de brasilienses ou brasilianos (Gomes, 2007).
Novamente, seria fácil ampliar a lista para desmoronar pretensões de reconstituir infinitamente e arbitrariamente as convicções clássicas, arcaicas ou eurocêntricas (européias ou portuguesas). Deixando-nos com as perguntas: poderá, ao analisar sua reprodutiva auto-fragmentação, construir-se alguma outra imagem enquanto nação, não como unitária nem fragmentária, mas mais favorável ou diferenciada? As identidades brasileiras ficarão indefinidamente cristalizadas unicamente como a de um povo oprimido, obedientemente agredido e “deitado em berço esplendido” [05]?
Conforme teorização do eminente sociólogo, antes citado, a resposta seria um contundente não. Colocado em pauta outra análise “a mudança já está ocorrendo, e há muito. Se for melhor conhecida, poderá ser mais bem produzida e acelerada. A mudança em Holanda se radicaliza e se amplia, o horizonte brasileiro se abre, e o seu [nosso] espírito se enche de otimismo” (Reis, 2000, [grifo nosso]).

Somos Inclassificáveis[06]

As perguntas que nos faz Reis (2000) provocam nossos pensamentos e análises:
Seria possível produzir um discurso sobre o Brasil desapaixonado, científico, verdadeiro? Dificilmente. É por isso que todas as representações do Brasil são relevantes, pois, juntas, revelam uma idéia do Brasil complexa, poliédrica, uma idéia composta de idéias, de projetos, um polígono de múltiplas faces ao mesmo tempo opostas e interligadas em uma mesma figura (. . .)Há inúmeras outras perspectivas sobre o Brasil, tantas quantos podem ser os matizes das combinações das cores (. . .)O problema que se propõe ao debate é: como se deu a formação do Brasil-Nação? Não há resposta única, fechada, sistemática para esta questão.
O autor, sem fechar as possíveis respostas, refere que estas dependem do sujeito histórico que tome a palavra e, se é ou não brasileiro, pois são inúmeras as perspectivas, quantas são as combinações de cores. Pensar no Brasil não dispensa múltiplos modos de pensamentos, de pensar e perguntar:
Quem são os "heróis" da história brasileira? Quais são os grandes eventos, as datas mais fortes? Em que direção o Brasil se encaminha? Que juízo de valor elaborar sobre as experiências brasileiras? A resposta revelará a identidade social e histórica de quem toma a palavra. (. . .)todos[as] sustentáveis por uma argumentação coerente e reconhecível. Existem versões do Brasil de origem senhorial, burguesa, proletária, classe média, camponesa, sem-terra, paulista, mineira, nordestina, sulista, negra, indígena, feminina, imigrante, migrante, caipira, urbana, suburbana, litorânea, sertaneja, oficial, marginal, militar, civil, etc... A maioria delas ainda não formulada, silenciosa. (. . .) discursos e representações usam a história dita científica para legitimar seus interesses e paixões. Imaginário, mitologia e reabertura de arquivos se confundem (Reis, 2000) [grifo nosso].
Ao acentuarmos a relevância da memória e da cultura para formação poliédrica de identidade(s) brasileira(s) estaremos refletindo sobre o sentimento de cidadania adormecido e esquecido nos sujeitos construtores da história, as suas e do país, pelo desconhecimento, descontentamento e desvalorização de suas raízes.
O foco maior é a identidade, mas eis que ela invoca, categoricamente, toda a sua família: memória, subjetividade, política, etc., parentes próximos dentro da cultura ou das culturas brasileiras, sendo redesenhadas e provocadas cada vez que uma delas é chamada à manifestação.
Os múltiplos significados que compõem uma nação multifacetada e futurista, incentivam a idéia de que o berço esplendido não é embalado para fazer dormir, mas é sacudido pelas bases até que acordem os gigantes.
Nos movimentos como os do modernismo[07], referido ao país, e na dinâmica globalizante de “características prigoginianas” (Tofler, 1994, p.289-290[08]) que os sistemas mundiais vêm assumindo nas mais diversas sociedades não há país ou nação alguma que possa ficar “impávido colosso” [09].
Esta nação foi sendo constituída, de forma substancial e indelével, sob(re) marcas psico-sócio-históricas e étnicas, de aventura, pioneirismo e pluralismos. Referimo-nos, também, aos econômicos, políticos, raciais e culturais e toda a violência e ambivalência que isto carrega. As marcas de brutais desigualdades sociais, além de outros elementos e diferenciais que compõem a substância brasileira, seu povo como um todo: (de) multi(plicidades) colorido(das) e de doce receptividade ao que é alheio a si, facilmente confundível, em muitas passagens, pela passividade propícia ao carnavalesco, ao abuso, à emoção “faceira”, à mania, ao futebol, à promiscuidade, à perversidade e à corrupção.
A imagem é, quase sempre, de um país receptivo ao que é estranho e estrangeiro. Submissão sempre reeditada a uma nova forma de colonialismo, como na imposta pela globalização e, simultaneamente, como um reflexo de um país que se reconhece multicultural e é reconhecido como facilmente adaptável e aberto ao mundo e ao novo.
O Brasil, de várias diferentes tribos de índios, colonizadores de todas as partes do mundo, colonizados, brancos, mestiços, negros de variadas nações; livres, escravos, colonos, imigrantes, emigrantes, americanos, europeus, orientais, ocidentais, etc. Mestiçagem e miscigenações construídas sobre a confluência e absorção pacífica de múltiplas diferenças. Lugar onde e quando, plantando “tudo dá”, abertura, também ao malandro, ao ladrão, ao aproveitador, ao menino/menina de rua, ao politiqueiro, capitalista, individualista, empresários do crime organizado, perversos e neuróticos de colarinhos brancos ou azuis, etc.
As gigantescas características de belezas e diferenças não encobrem os grandes, graves e complexos e muitas camadas de substâncias ocultas, mesmo ao mais brasileiro dos brasileiros, quiçá para estrangeiros que não adentram além de suas praias neste reino de vasto sertão (Ser tão: veredas...[10]). Verdades de multiplicidade, biodiversidades sociais, culturais e psicológicas onde o referencial fica ampliado no conceito de identidade brasileira “colonizada”.
Fonseca descreve uma história do pensamento ocidental moderno comprometida com a continuidade e renovação do projeto iluminista através do empirismo lógico, Positivista. Processo em que se confundiu a concepção a respeito da natureza por meio da confiança epistemológica do mecanismo que a torna “passiva, eterna e reversível” [11] através da lógica e método de dominar e controlar, onde o conhecer significaria quantificar através da “matematização do universo”, da natureza e da realidade (1998, p.41).
A crise se instala onde o ideal de um saber universalizante iluminista e eurocentrista, encerrariam a falsa imagem de possibilidade de uma identidade nucleada: “uma comunidade formada por seres iguais e dotados de instrumentos capazes de garantir entre eles, o consenso” (Fonseca, 1998, p.40). Tal crise se instala a partir das evidências do desgaste do reducionismo letal nas marcas de um “modelo global e totalitário”, ao quê acrescentaríamos antiético e desumano: “(. . .) na medida que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos princípios epistemológicos e pelas regras metodológicas (Santos, citado por Fonseca, 1998, p.40).
Na redução do mundo, dos sujeitos e dos objetos na fórmula universal da cultura científica, cientificante e ocidental – do mercado global – centros europeizados, não são poupadas críticas ao método, seu poder de padronizar convivência idealizada e adaptativa.
A falta de um rigor na revisão epistemológica aplicada à Ciência só ajudaria a reduzir as possibilidades do mundo, de seus sujeitos, objetos e seus projetos, mas não podem esconder, nem impor o completo esquecimento destas táticas aplicadas arbitrária e compulsoriamente à revelia dos sujeitos do Estado de Direito e seus poderes emancipatórios. São discursos de verdades que beneficiam somente os beneficiáveis: as elites eleitas e contínuas, unas e indefinidamente no poder[12], contando com exclusividade nos consensos destes discursos de verdades.
Não que o conhecimento deva evitar o precioso conceito de consenso entre os iguais, mas estes iguais serão sempre quem? Os mesmos? Poderíamos imaginar um reciclador de lixo, um sem-teto, uma mãe solteira, um ex-drogado, etc. dentre estes iguais? Algum Pobre? Um idoso ou um doente? Algum excluído seria contado em sua (não) identidade? Ou estes expatriados serão contados sempre entre identidades de sub-classes? E, portanto, não quantificáveis ou confiáveis: não humanos e totalmente excluídos.
Uma sociedade que desconhece seu potencial e não acredita ser capaz de prosperar subsiste em uma realidade que não é sua, agrega elementos culturais que não têm, ou não precisam mais ter ligação com sua substância e não permite que o sentimento de cidadania desperte nas ações novas forma de ser e de se fazer ser.
Os discursos (nacionais) ficam dispensados de valor e relegados ao mundo subdesenvolvido de “sub-classes” (Bauman, 2005, p. 46), deslocam, substituem, condenam e condensam imagens fantasiadas e falsificadas sobre a Nação, seus sujeitos e os seus fragmentos.
Encontramos nas nossas raízes, fora também, as causas para este estado de alienação típica da violência dos explorados e desrespeitados, ética e culturalmente. Está no surgimento do conhecimento da Ciência o estatuto de garantir algo pra alguém que pertence; definindo e identificando os pertencedores, excluindo outros saberes. Alguns poucos que possuem o privilégio de serem “iguais”, aumentando as desigualdades, as diferenças e promovendo farsas e identidades controláveis.
Dentro dos Estudos Culturais a identidade é um fenômeno construtivo, não definido a priori, em movimento e sem a qual não se concebem os sujeitos e muito menos suas nações:
A visão de cultura, bem como das identidades e subjetividades aqui discutidas, mesmo entendendo-a como um campo de conflitos e lutas, afasta-se da proposição de uma avaliação epistemológica de falso e verdadeiro, enfatizando uma luta em torno da imposição, da construção de significados. (. . .) não objetivamos buscar uma Verdade, mas sim problematizar constructos, como por exemplo, muito tempo ocupou-se a Psicologia do conceito de identidade como essência, como estabilidade eternamente idêntica a si mesma e fundamental para um processo de evolução do sujeito (. . .)vários autores tratam da identidade como um requisito fundamental para uma saúde mental adequada, necessária, etc. (Bernardes & Hoenisch, 2003, p.123 e p. 96, [grifos dos autores].
Os autores vão dizer que não se trata simplesmente de uma pura “concepção de sujeito e subjetividade passível” de simples “decodificação” a partir de signos ou significados pré-determinados, fazendo valer um jogo aberto de processualidade e constituição de modos de ser, ver e operar no mundo (Bernardes & Hoenisch, 2003, p. 106).
Escosteguy define os Estudos Culturais como sendo um “(. . .) campo de estudos onde diversas disciplinas se interseccionam no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea (. . .)” (2003, p.66). Tratando-se, em outra definição, de um campo de estudos que não pretende ser rígido muito menos fixo, propondo-se “abrir as questões ao invés de fechá-las” (Guareschi; Medeiros E Bruschi, 2003, p.23).

Considerações Finais

Diversamente das primeiras definições anteriores aos efeitos do descentramento do sujeito, produzidos a partir da pós-modernidade ou “modernidade tardia”, conforme Hall (2001, p.14-34), nós podemos conceber a identidade a partir do que se é, um consenso social (Bauman, 2005), até o que se pode ser num devir: “compossível” (Fonseca, 1998), abrindo o leque de referencial conceitual.
Dentro destes termos, a proposta é uma nova significação onde o passado se torna um presente disponível e o tempo torna-se uma rede de multiplicidades compondo oportunidades renovadas para ler e escrever outras histórias na grande cartilha dos tempos múltiplos de futuros simultâneos “compossíveis’” (Fonseca, 1998, p.39).
Ou ainda, conforme Reis (2000) que referencia que a “identidade histórica” é construída em cada presente numa relação de recepção e recusa de passados, de abertura e fechamento aos futuros então, muito mais, cada vez mais, “líquidos” (Bauman, 2005).
Através da colocação do caráter ficcional de uma cultura, registra-se a primazia do significante que inaugura incerteza e instabilidade como “grandes contribuições para as ciências e outros campos do conhecimento”. A exemplo do que ocorreu no “coração da referida radicalização” da linguagem e na sua redefinição constituída pelos movimentos migratórios:
(. . .) tal idéia origina-se da noção de um cruzamento de fronteiras entre raças, gêneros, nacionalidades e etnias que é fluido e dinâmico, produzindo constantemente novos sentidos, novas performances, novos significados culturais. Tratar-se-ia de admitirmos que, via de regra, as histórias de um povo são frutos de uma determinada reconstrução ficcional realizada por indivíduos de uma cultura, que recontam uma longa mitologia, muitas vezes em um país que não tem tanto tempo assim. (. . .) o caso da tão postulada “alegria e espontaneidade” da alma brasileira (. . .) não é possível definir ou postular a natureza de ser brasileiro de maneira linear, principalmente em um país com a extensão e diversidade étnica do nosso... (Bernardes & Hoenisch, 2003, p.98/99).
Na questão: nascimento do Brasil, construção do Estado-Nação e identidade de seus cidadãos podemos parar para repensar, pois estamos diante do desmoronamento pós-moderno do conceito de subjetividade, adiantados em séculos e adiando faz séculos uma nítida emancipação à exemplo de uma pacificação.
Os conceitos discursivos sobre identidade, tanto quanto os de identidade nacional, são abalados nas exigências prematuras de sermos um centro do mercado globalizado mesmo antes do descobrimento: nos Tratados de 1493 e de Tordesilhas (1494 [13]). Do momento em que se dividiam as terras ultramarinas entre os reinos de Portugal e Espanha até a abertura dos portos às nações amigas, que colocou os portos do Rio de Janeiro e Salvador como “elo de união entre o comércio dessas grandes regiões do globo” (Gomes, 2007, p.154), passando pelo consensual instrumento de linguagem: a Língua Portuguesa ou seria Brasileira? Brasiliense? Brasiliana?
Desde os vários nascimentos, re-nascimentos: colônia, império-monárquico, república e país, etc., andamos muito à frente e muito atrás de todos os conceitos. Desde as carroças aos aviões a jato, conceitos simultaneamente não excludentes, mas de sujeitos e subjetividades sempre excluída: pobres, negros escravos, alforriados e negros livres, donos de outros negros, seus escravos, mulatos, pardos, cafuzos, caboclos, etc., quase todos. Tudo pode conviver continental e simultaneamente neste continente de saberes e conhecimentos acientíficos.
Reis (2000) afirma, novamente nos convidando para refletir:
A sociedade não está dominada pelo passado, pela tradição, não está submetida a determinismos de nenhuma espécie e não está, portanto, condenada a repeti-lo, a continuá-lo. Mas o passado não se abole com um golpe de ficção. Não se muda só porque se "quer mudar". A mudança é um esforço, um trabalho penoso, uma construção difícil, tensa. A tradição resiste ao novo – há uma luta de vida ou morte entre os homens do passado e os homens do futuro. O ritmo da mudança brasileira é lento, secular. (. . .) A libertação da dominação luso-brasileira tradicional, a reaproximação do Estado com a sociedade, a criação de novas formas de convívio, com novos valores, o que é possível e realizável, e não uma utopia inalcançável, abrem o horizonte do Brasil à democracia. Olhando o Brasil assim, "as cores voltam ao seu perfil". A realidade luso-brasileira foi e é um horror, mas o Brasil não está condenado a ser sempre como foi [grifo nosso].           
Dentro da criação de outra prática de ser brasileiro temos heranças necessárias para estes novos conhecimentos e posicionamentos, até mesmo na multiplicação de termos referentes que nos remetam “a uma superfície de linguagem” como: os “diferentes portos culturais” (Bernardes & Hoenisch, 2003, p.99), a abertura dos portos não somente às nações amigas, (Gomes, 2007), mas a “um terceiro espaço” [14] e novas criações, todas as nações, tudo que aqui se planta (idem, 2003, p.120).
“Mestiços” [15], “híbridos” e nascidos para (e por) uma “terceira via”: fomos descobertos numa nova rota alternativa, talvez “pacificadora” e inovadora [16] de ventos sempre e cada vez mais inexauríveis da modernidade tardia, líquida e democrática, não em palavras, mas em direito a ser construído!
Terras férteis para um campo psicológico de conhecimento e convivências solidárias, mais pacificadoras, com maiores responsabilidades e chances de respeito às diferenças no vasto laboratório de multiplicidades montado aqui. Só que não enxergamos, nem vemos, ou sequer olhamos tão bem pela fresta de tão pouca valorização dos elementos tradicionais do folclore, da música e pela riqueza das nossas manifestações culturais.
O eminente sociólogo Polonês, expatriado, identidade que lhe foi negada e tornada inacessível, Bauman (2005), convidado a soletrar sobre as questões da Identidade nos faz saltar desta convenção socialmente necessária às formas não estabelecidas dentro da “líquida” modernidade, tempo, medo, comunidade e vida. Para podermos testar as características pouco definidas do termo e conceito de identidade, o autor propõe seus pólos gêmeos impostos à existência social: a opressão e a libertação:
A severidade das exigências era um reflexo da endêmica e incurável precariedade do trabalho de construir e manter a nação. (. . .) a nação foi uma entidade imaginada que só poderia ingressar na Lebenswelt [17] se fosse mediada pelo artifício de um conceito. (. . .) E sua perpetuação não podia ser garantida a não ser por meio de batalhas ainda por vir. (Bauman, 2005, p.29).
Talvez precisássemos em uma nação brasileira em constante constituição, enormes marcadores histórico-politico-sociais, mas sem definições ou fronteiras definidas, muito menos apropriações no terreno da geografia antropológica, psicológica, lingüística ou sociológica definitivas.
Esta pesquisa teve o propósito de refletir sobre as questões de imposição e imposturas na pretensão de uma identidade reafirmada através de seus dispositivos atrozes. Propõe uma outra direção que aponte para a abertura de uma terceira via até as Índias – mais alternativa – no campo conceitual até o de outra possível efetivação histórica do ser brasileiro.