quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O passado, o presente e o futuro do STF em três atos




Lanço três citações abaixo, que representam — simbolicamente — o passado recente, o presente e o futuro do Supremo Tribunal Federal.


Ato 1. “Não estamos aqui para caminhar seguindo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o compromisso de guardamos a Constituição. O discurso da doutrina [= discurso sobre o Direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ele nos seguirá; não o contrário.”


Ato 2. “Venho afirmando que o julgador, ao deparar-se com determinada questão jurídica, busca, nas convicções íntimas, na formação humanística, enfim, na cosmovisão que possui, a resposta que mais lhe afigure correta e justa. É o que chamam de contexto de descoberta. Em seguida, procura, no ordenamento jurídico, os fundamentos capazes de sustentar a conclusão. Surge aí contexto de justificação. Quando a solução mais justa, na concepção particular do intérprete, não encontra esteio no arcabouço normativo, impõe-se a revisão do sentimento inicial. Às vezes, o politicamente correto simplesmente não equivale ao juridicamente acertado.”


Ato 3. “Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são.”


Qual seria a diferença entre as três posturas ou três modelos de Direito acima delineados? Em termos de fundamentação teórica, nenhuma. Pois a primeira é do ex-ministro Eros Grau (Rcl 4.335 — STF), a segunda é do ministro Marco Aurélio Mello (ADI 3.937/SP — STF) e a terceira é da lavra do novo ministro do STF, Teori Zavaski (AI nos EREsp 644.736/PE, Rel. Ministro Teori Zavaski, Corte Especial, julgado em 06/06/2007, DJ 27/08/2007, p. 170). Portanto, um passado recente, o presente e o futuro da Corte [antes que alguém diga que uma citação não representa o pensamento do(s) autor(es) — com o que concordarei, é óbvio — apenas saliento que a contundência dos enunciados possui um valor simbólico incomensurável, porque representa um claro deslocamento do discurso de validade do Direito em direção ao Judiciário].


O que deve preocupar a comunidade jurídica? Afinal, o que é o Direito? Seria ele, efetivamente, o que os três ministros dizem que é ou ele pode/deve ser outra coisa? Se for o que dizem (ou disseram) os três ministros, isso é democrático?


Deixemos isso mais claro, por amor ao debate, que parece estar esgarçado em terrae brasilis.


No âmago das três citações, vê-se presente o velho realismo jurídico. Mas, vejamos. A afirmação produzida pelo Justice Holmes, de que “o Direito é o que os tribunais dizem que ele é” (the law is what the courts say it is[1]) deve ser contextualizada. Na verdade, cuidadosamente contextualizada. Vendo-a repristinada no discurso do STF, tem-se a impressão que a postura realista de Holmes é algo inovador em terrae brasilis. Ora, isso não tem nada de inovador. Isto porque o realismo jurídico (escandinavo e norte-americano) foi uma reação à jurisprudência analítica, forma de positivismo exegético de um Direito produzido pelos juízes no século XIX e no início do século XX. Como já tenho demonstrado em vários textos [especialmente em Hermenêutica Jurídica e(m) crise e Verdade e Consenso], o século XIX teve três formas de positivismo (o exegetismo francês — para sustentar, ideologicamente, o Direito produzido pelo legislador, a jurisprudência dos conceitos alemã, como forma de preservar o direito produzido pelos professores e a jurisprudência analítica, forma de positivismo dedutivista da common law). Cada um deles gerou a sua antítese, por assim dizer. Holmes foi o precursor do realismo norte-americano; disse o que disse ainda no século XIX; mas, veja-se que o “movimento” anti-exegetista se dá concomitantemente em três países (França, Alemanha e Estados Unidos). Não vou explicitar isso aqui, remetendo os leitores aos livros já mencionados.


Interessa-me, apenas — mas, sobretudo — mostrar que a postura realista, nos moldes propagados por Holmes, foi um modo de superar a forma dedutiva de aplicação dos precedentes no common law, que, para usar uma linguagem simples, era tão “dura” quanto o positivismo francês (o que Ferrajoli chama de paleojuspositivismo e Castanheira Neves denomina de positivismo legalista). Logo, ao invés de o juiz ficar vinculado automaticamente aos precedentes, com o realismo jurídico a validade do direito foi transferida para a decisão, ou seja, criou-se uma nova forma de positivismo, o “positivismo fático”. Apenas inverteu-se a pirâmide: da dedução para a indução. Pode-se chamar a isso também de sociologismo jurídico. [2]


Sigo. Andante.


Mas, então, se isso que falei acima tem algum sentido — e penso que tem — qual é a razão pela qual os juristas brasileiros, especialmente os ministros de nossa Suprema Corte, continuam a sustentar tais teses alienígenas de forma descontextualizada? Essa é que deve ser a indagação dos juristas brasileiros. Não se trata de implicância teórica minha. Trata-se, sim, de discutir as tão importantes condições pelas quais são construídos os discursos de validade do Direito.


Há várias razões para que nos preocupemos. Por exemplo, por trás dessa tese de que “a Constituição é aquilo que o STF diz que é” e “o Direito infraconstitucional é o que o STJ diz que é”, está um livre-atribuir-de-sentido, que aproxima esse tardio realismo à Escola de Direito Livre e seus sucedâneos (sociologistas, voluntaristas ou cognitivistas). Sim, isso deve ser dito. Devemos debater isso no seio da doutrina brasileira. Afinal, por ocasião do julgamento do mensalão, várias vezes (ou)vimos ministros falarem do primado da “livre apreciação da prova” e/ou do “livre convencimento”. Claro que a maior parte da comunidade jurídica quedou-se silente, embora grande parte dela tenha sido derrotada, simbolicamente, no aludido julgamento.


Insisto: a maior derrotada no julgamento foi/é a dogmática jurídica penal e processual penal. E isso por uma razão singela: A vida toda a doutrina sustentou a livre apreciação (ou o nome que tenha). E, ao que consta, o cerne da doutrina não gostou do resultado ou do modo como foi alcançado o resultado do julgamento. Como já escrevi, aqui se faz, aqui se paga (ler aqui).


De minha parte, permito-me — acadêmica e mui respeitosamente — contestar as três posições dos Ministros de nossa Corte Suprema, que, na verdade, são uma só, porque tem uma raiz comum. E contesto dizendo que o direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador.


Ou seja, o direito possui, sim, elementos (fortes) decorrentes de análises sociológicas, morais etc. Só que estas, depois que o direito está posto — nesta nova perspectiva (paradigma do Estado Democrático de Direito) — não podem vir a corrigi-lo de forma indutivista, transferindo o locus do discurso de validade para a “cabeça do juiz”, sob pena de completa ausência de legitimidade democrática. Aqui me parece fundamental um olhar dworkiniano. Na verdade, o direito presta legitimidade à política, compreendida como poder administrativo, sendo que a política lhe garante coercitividade. Concebendo a política como comunidade (Polity), o direito faz parte dela. Compreendida como exercício da política (politics), há uma coimplicação (sim, co-implicação e não “complicação”) entre eles na constituição do político. Como ponto de vista partidário, o Direito tem o papel de limitar a política em prol dos direitos das minorias, definindo o limite das decisões contramajoritárias. O Direito é essencialmente político se o considerarmos como um empreendimento público. Daí política ou político, no sentido daquilo que é da polis, é sinônimo de público, de res publica.


Por tudo isso, a doutrina brasileira deveria estar (mais) atenta. Sejamos claros. Se é verdade que o direito é aquilo que os tribunais dizem que é e se é verdade que os juízes possuem livre apreciação da prova (sic) ou “livre convencimento” (sic), então para que serve a doutrina? Ela só serve para “copiar” ementas e reproduzir alguns “obter dictum”? Para que serve o “bordão” da “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”, tão propalada pelo Supremo Tribunal Federal?


Não estou satisfeito. Por isso, vou um pouco mais fundo. A questão que se põe — e aí a responsabilidade é da doutrina lato sensu — é que parece que não estamos preocupados com uma efetiva teoria “do” e “no” Direito. Historicamente, apostamos em uma dogmática jurídica tecnicizante, de cunho pragmaticista. No centro dessa dogmática, encontra-se o sincretismo metodológico. O que sempre importou foi uma espécie de “hermenêutica de resultados”, algo do tipo “decido-e-depois-busco-o-fundamento”. É claro que isso pode, por vezes, dar resultados. Afinal, um relógio parado acerta a hora duas vezes ao dia. O grande problema é que ficamos na dependência não de uma estrutura jurídica de pensamento apta a fornecer sustentáculos à construção de decisões adequadas, mas, sim, de posturas individualistas (ou, se quiserem, solipsistas, para usar uma palavra chata). Todos os dias, deparamo-nos com decisões ditadas pelo “livre convencimento”, que, no fundo, não passam de álibis teóricos para a ideologização da aplicação do direito. Veja-se, de um lado, decisões como a do juiz mineiro que “declarou” inconstitucional a EC 41 por vício de decoro parlamentar (ler aqui); e, de outro, o juiz que concedeu liminar aos Correios na batalha contra uma empresa estrangeira, deixando dezenas de milhares de utentes com seus passaportes retidos (a pergunta que se faz, ali, é: pode a Empresa de Correios e Telégrafos ter razão... mas, por favor, onde estava a relevância e urgência para a concessão de liminar?! Há 25 anos que a Constituição fala do monopólio dos Correios...!). E assim vamos indo. Se querem mais, basta ver a cotidianidade das práticas jurídicas. Uma portaria vale mais que a Constituição; circulares comandam a nação; o conceito de insignificância, no crime, depende de “cada cabeça”...


A dogmática jurídica brasileira é um queijo suíço. Um sintoma disso — e venho denunciando isso há anos — são os embargos declaratórios. Perguntem como funcionam os “embargos” no direito alemão, no francês e no norte-americano (berço do “realismo”)? Perguntem se lá um juiz pode mandar emendar a inicial sem dizer o porquê; perguntem, na verdade, se lá existem os tais embargos.


Numa palavra: penso que o debate sobre os diferentes modelos de interpretação e de decisão é absolutamente necessário. Esse debate nada tem de pessoal. A questão é sabermos que tipo de direito queremos para o futuro do Brasil. E que tipo de efetividades queremos: se meramente as quantitativas ou se qualitativas. E isso parece que não se resolve transferindo o discurso de validade do direito para o judiciário, como dizem os realistas... Se somos inovadores — por exemplo, somos o único país do mundo com processos totalmente eletrônicos em muitos setores da Justiça —, também somos o único país em que os servidores e já alguns juízes começam a se queixar de doenças laborais provocadas exatamente pelo manejo da tela dos computadores diariamente, tela essa que veio substituir o “malsinado” papel. E, cá para nós, alguém acredita mesmo que, em grau de recurso, as provas digitalizadas e as gravações das audiências sejam repassadas-reexaminadas? Particularmente, venho tentando — em alguns processos digitais que atuo como procurador de Justiça — lidar com depoimentos digitalizados. Garanto: tarefa quase impossível...


Mas, enfim, o que o realismo jurídico professado por três ministros do STF (claro que não somente eles que assim pensam) tem a ver com os embargos declaratórios, com os processos eletrônicos, com as decisões do juiz de Minas Gerais que “inconstitucionalizou” a EC 41, com o conceito de insignificância, com os agravos de instrumento etc.? Definitivamente, tudo. O Direito não está à disposição do julgador. O Direito não é uma mera racionalidade instrumental. Aliás, por pensarem assim, os instrumentalistas do direito processual civil conseguiram “construir” isso que aí está. E no processo penal continuamos a pensar como há décadas atrás. Sequer conseguimos fazer cumprir o artigo 212 do CPP, conquista do sistema acusatório. E por que isso é assim? Porque o Direito é visto de forma fragmentária e pragmaticista.


Não é por nada que a pesquisa de uma Universidade paranaense publicada recentemente pelaConJur (ler aqui) deu conta de que as decisões judiciais refletiriam a ideologia pessoal dos juízes. Ora, como eu já havia dito no momento, os dados não me surpreendem. Confirmam a crise de paradigma que venho denunciando há anos. Nossa formação jurídica, nosso ensino, nossas práticas, encontram-se arraigadas a um paradigma filosófico ultrapassado. Sei que é difícil dizer isso, mas falta filosofia. Falta compreensão. Nosso imaginário jurídico está mergulhado na filosofia da consciência (na verdade, na sua vulgata). Nele, cada juiz é o “proprietário dos sentidos”. É um equívoco dizer que sentença vem de sentire. Essa é uma das grandes falácias construídas no Direito.


Na democracia, as decisões não podem ser fruto da vontade individual ou da ideologia ou, como queiram, da subjetividade do julgador. A primeira coisa que se deveria dizer a um juiz, quando ele entra na carreira é: Não julgue conforme o que você acha ou pensa. Julgue conforme o Direito. Julgue a partir de princípios e não de políticas. Aceitar que as decisões são fruto de uma “consciência individual” é retroceder mais de 100 anos. E é antidemocrático. O direito depende de uma estrutura, de uma intersubjetividade, de padrões interpretativos e não da “vontade”. Por isso, minha contestação à frase famosa de Holmes! De Holmes para cá, já se passaram mais de 100 anos... Talvez 100 anos de solidão. Como na Macondo de Gabo, não adianta colocar cartazes nas coisas para nos lembrarmos para o quê elas servem... Sem o DNA entre palavras e coisas, ainda ficamos apontando com o dedo... Às vezes, mesmo que passados tantos anos, as coisas soam ainda como se fossem tão recentes. Pois é: Macondo pode ser a metáfora do mundo... e, mais ainda, do Brasil.


Dizendo o que já disse sobre a pesquisa do Paraná: juiz tem responsabilidade política. Ele decide. A consciência do juiz não é um ponto cego ou isolado da cultura. Quando o desembargador — nessa pesquisa do Paraná — diz que não dá para esperar que o juiz se separe de seus conceitos políticos e religiosos etc., tem um problema: Ninguém nessa altura do campeonato acha que o juiz é uma alface ou que esteja amarrado aos textos como no iluminismo. Desde há muito que a hermenêutica, principalmente a filosófica, superou isso, na medida em que a carga de pré-conceitos não é um mal em si, mas é uma aliada. Interpretar não é atribuir sentidos de forma arbitrária, mas é fazê-lo a partir do confronto com a tradição, que depende da suspensão dos pré-conceitos. Se o juiz não consegue fazer isso, não pode e não deve ser juiz. São os dois corpos do rei, como diria Kantorowicz. Dworkin diz muito bem que não importa o que o juiz pensa; não importa a sua subjetividade. Suas decisões devem obedecer a integridade e a coerência do Direito.


Numa palavra final, na contracapa do meu O que é isto — decido conforme minha consciência, há um longo trecho que reproduzo acerca da relação “interpretação-aplicação do Direito”, que me permito aqui registrar, que parece explicar um pouco melhor o que estou pretendendo dizer — mormente para que ninguém pense que as críticas ao diversos realismos e/ou sociologismos são um mal humor de minha parte ou simples implicância teorética. Aí vai:


“Mais uma vez é preciso alertar para os possíveis mal-entendidos: o rigoroso controle das decisões judiciais não quer dizer — sob hipótese alguma — diminuição do papel da jurisdição (constitucional). Aliás, esse mesmo controle deve ser feito em relação às atividades do Poder Legislativo. O Estado Democrático de Direito é uma conquista. É, portanto, um paradigma, a partir do qual compreendemos o direito. Quando propugno pelo cumprimento da Constituição e o direito fundamental à obtenção de respostas adequadas (à Constituição), quero dizer com isso que, mesmo em face de o Parlamento realizar amplas reformas e (visar a) desvirtuar a Lei Maior, ainda assim poderemos continuar a sustentar a democracia e os direitos fundamentais! Ou seja, a defesa que faço da Constituição não significa ‘qualquer Constituição’! Há uma principiologia constitucional que garante a continuidade da democracia, mesmo que os princípios não tenham visibilidade ôntica. Ora, o Direito possui uma dimensão interpretativa. Essa dimensão interpretativa implica o dever de atribuir às práticas jurídicas o melhor sentido possível para o direito de uma comunidade política. A integridade e a coerência devem garantir o DNA do direito nesse novo paradigma. Para ser mais claro: quero dizer com isso que, em última ratio, levando em conta as inexoráveis possibilidades de o Parlamento aprovar leis ou emendas constitucionais ‘de ocasião’ (inconstitucionais), a jurisdição constitucional deve se constituir na garantia daquilo que é o cerne do pacto constituinte de 1988!


Entretanto — e esse é motivo pelo qual defendo uma Teoria da Decisão — isso não depende (e não pode depender) da visão solipsista (consciência individual) de juízes ou tribunais.”


[1] "One Nation Indivisible, With Liberty And Justice For All": Lessons From The American Experience For New Democracies. WALD, Patricia M., Fordham Law Review, Volume 59; Issue 2; Article 3.


[2] Uma nota tipicamente de rodapé: O mais inusitado disso tudo é que, paradoxalmente, sabem os caros leitores qual a tese que sustentava o tão criticado direito alternativo aqui no Brasil? Não sabem? Não lembram? Conto-lhes: o velho realismo jurídico. Detalharei isso em uma próxima Coluna.




Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Cristian Góes: E-coronelismo, o poder da mídia e a mídia do poder



Nos debates sobre democratização dos meios de Comunicação no Brasil uma expressão é quase obrigatória: coronelismo eletrônico. Ela representaria a síntese de uma política atrasada, autoritária e concentradora que envolve, em sua essência, a terra, o Estado, as relações econômicas e o conjunto de comunicação nos espaços do poder.
Por José Cristian Góes*
O coronelismo ainda é uma dura realidade nas estruturas locais e regionais e a face da comunicação nesse esquema é fundamental para a construção e manutenção da hegemonia dominante, isto é, uma visão majoritária de uns poucos imposta como verdade para muitos.
Apesar de fortemente enraizada no Nordeste brasileiro, fruto do surgimento das figuras históricas dos coronéis, o coronelismo eletrônico reflete hoje mais a ação do poder em si, isto é, o modus operandi, a forma e os princípios de atuação de figuras e grupos, do que algum conceito restrito as delimitações geográficas. Assim, não é de todo estranho falar em coronelismo eletrônico tanto no Nordeste, quanto em qualquer outra região no País. O que pensar, então, dos Câmara, em Goiás; dos Sirotsky, no Sul; dos Barbalho e Maiorama, no Norte; dos Marinho, Saad, Macedo, Abravanel, no Sudeste?
É claro que se os coronéis nordestinos já rejeitam, de certa forma, esta patente, os coronéis do asfalto não admitiram tal comparação. Para atendê-los, intitulamos de e-coronel.
Fundamental assegurar que, não obstante o termo coronelismo remeter ao Brasil da chamada Primeira República (1889-1930), - ou até antes - esse fenômeno continua bastante atual e com configurações contemporâneas, modernas, digitais. O coronelismo eletrônico se consolidou e se sustenta tanto por um arcabouço político-legal, que parece sedimentado nas estruturas dos poderes no Brasil, quanto por um amplo sistema de mídias de suas propriedades - que mantêm o ideário hegemônico dominante. Certamente a 1ª Conferência Nacional de Comunicação no País vai, necessariamente, chegar a esse debate.
FACES DESSE PODER
Antes mesmo de analisar as condições do coronelismo eletrônico hoje, é fundamental compreender, de forma bastante resumida, sobre as faces do poder. Sabemos que as primeiras manifestações de poder estão relacionadas à força física. Tinha poder apenas quem tinha força e vice-versa. A submissão e o controle impostos pela minoria sobre a maioria se davam pela ação física. A palavra não contava para se determinar quem dominava quem.
Quando o homem percebeu que dois ou mais dos seus são mais fortes que apenas um, questionou-se, então, o poder da força apenas pela força. Não era mais ela sozinha que determinava o comando e a imposição da visão totalitária. Assim, o poder da força recorreu ao sobrenatural e ao divino para resolver as disputas. Além da força, o poder é também uma dádiva suprema de Deus. É Ele quem diz que um homem tem ou não o poder de mandar e os demais de obedecer. O estágio da teocracia na humanidade fundamentou a naturalidade dos poderes de reinados e governos.
Vale lembrar que conceitos como dízimo, céu e inferno, além de muitos outros também vêm desse momento histórico, lá das civilizações mesopotâmicas, passando pelos reinados da Idade Média. Qualquer ser vivente que não temesse e fielmente cumprisse as determinações de governantes instituídos diretamente por Deus teria como fim o fogo mais ardente do inferno, ainda em terra. Vide as inquisições. Milhões foram mortos pela força e vontade do Deus Celeste, manifestada pelos soberanos em terra.
Mas os questionamentos ao absoluto poder divino que recaía apenas somente sobre as cabeças de monarcas produziram a superação, em parte, da teocracia. Montesquieu, no século XVIII, crítico do poder absoluto, sacramentou em seu Espírito das Leis, a idéia de que o poder vem do Estado e está dividido entre três esferas: Executivo, Legislativo e Judiciário. Todos os homens devem estar enquadrados pelo Estado e suas leis, caso contrário, seriam o poder da força do próprio Estado.
Perceba que apesar do aspecto divino e, depois, com o surgimento do Estado moderno, a força física estará sempre presente. Esse poder seja pela força dos músculos, seja pela dádiva celeste e pela força das leis busca a hegemonia de uma classe dominante. As instituições, frutos desses poderes estão aí para fundamentá-lo, garanti-lo, mantê-lo, inclusive pela força. Em outras palavras, o poder continua existindo basicamente como força forças armadas, polícia, conjunto de lei, aparelho judiciário e seus agregados, agentes da Fazenda e de outras áreas do Estado. A mídia é também componente vital na idéia de poder-força. É através dela que se estabelece a construção do consenso da normalidade pacífica da dominação de classe.
MEDO, LIMITE E CONSENSO
Nesta rápida e incompleta passagem pelas faces do poder, três componentes fundamentais são elos em todos esses momentos: o medo, o não limite e a construção de consenso hemegônicos. Não há poder sem medo. Seja pela força, pelo convencimento que o poder vem de Deus ou que é fruto da lei, o medo é peça-chave para tentar compreendê-lo. É o medo de perder, de ser punido, de ser expulso ou excluído da comunidade, o medo da morte, das conseqüências da ação do poder-força. Ele modela a ação do indivíduo e da comunidade. As complexas relações de poder e medo se estabelecem em todas as situações sociais, seja no micro ou no macro espaço.
Outra característica do poder é sua condição de não estar limitado, ou pelo menos, não querer ser limitado, ter amarras e obstáculos que possam dificultar toda sua ação de controle. Basta ver o capital e sua necessidade que tem de acumular e circular sem quaisquer limites. E, como já apontado anteriormente, poder tem uma relação de essência com hegemonia, com a construção de consensos, com a fabricação de verdades despejadas para manter o quadro de dominação. É aqui que o sistema de mídias ocupa papel central nessa discussão sobre o poder.
Ocorre que numa análise mais geral, podemos enquadrar, sem nenhum constrangimento e nem medo de errar, os coronéis nordestinos tanto os mais antigos quanto os novos -, por exemplo, como aqueles que detêm o poder com uma peculiaridade. Ainda hoje, em plena supremacia de sistemas eletrônicos e da virtualidade, tragicamente, eles reúnem num mesmo composto os aspectos mais aparentes do poder-força ao longo da história. A concentração desses aspectos nos coronéis é fundamentada na história do Brasil e sustentada pelo conceito de propriedade e controle oligopolizado dos meios das engrenagens políticas, econômicas e sociais, entre elas e fundamental, a mídia.
O poder dos coronéis teve início no período colonial quando fazendeiros recebiam a patente militar para cumprir o papel de autoridade estatal nas regiões de difícil acesso, compondo a Guarda Nacional. A partir da instalação da chamada Primeira República (1889-1930), estes coronéis incrementaram sua estrutura de poder baseados num sistema eleitoral que não previa a votação secreta. A dependência dos trabalhadores rurais em relação aos coronéis e a possibilidade de conferência dos votos criaram uma situação na qual o voto de cabresto era praticamente obrigatório. Desta forma, os coronéis municipais se aliavam às oligarquias estaduais, representadas principalmente pelos governadores, e estas ao Governo Federal, numa intensa rede de favores. (SANTOS, 2006).
CORONELISMO HOJE
Esse quadro apontado por Suzy dos Santos mudou? Muito pouco ou quase nada. Talvez os mecanismos de poder se sofisticaram. A farda deu lugar ao terno, o cavalo deu lugar a jatinhos, a fazenda se modernizou, o negócio do campo ganhou multipossibilidades, globalizou-se e chegou ao asfalto e ao mundo virtual. No entanto, a essência continua: a propriedade e concentração das terras, o controle do Estado, da economia e da comunicação. Tudo isso sob a base dos interesses privados, com troca de favores, clientelismo, patrimonialismo, nepotismo. O fim do controle hegemônico justifica qualquer meio.
A história brasileira mantém viva a imagem dos coronéis desde o período colonial, adquirindo, a cada etapa, novas distinções por serviços prestados. (...) se a modernização foi vista como uma ameaça a essas práticas, os coronéis vêm demonstrando uma enorme capacidade de sobrevivência, mesmo em governos ditos populares (SANTOS e CAPPARELLI, 2006).
Os braços desse e-coronelismo se concretizam hoje num tripé evidenciado no monopólio econômico, político e de mídia em seus âmbitos locais e regionais. No que pese a urbanização da vida, os coronéis detêm o poder sobre as terras. No Nordeste, por exemplo, são amplas as propriedades tomadas pelos canaviais, fazendas de gado e imensos latifúndios improdutivos. Mas esse controle econômico ultrapassou as fronteiras agrícolas e hoje, em alguns casos, modernizadas pelas ações do agronegócio, chegou ao asfalto com indústrias, comércios e comunicação.
Não é por acaso que grandes latifundiários nordestinos também espalharam seus negócios em indústrias de bebidas, de alimentos, empreiteiras e construtoras, shopping Center, concessionárias de veículos, entre outros ramos. O Grupo Paes Mendonça, em Pernambuco, é dono de terras, indústrias e seis shoppings, jornais, portais e emissoras de rádio e TV, espalhados em vários estados nordestinos. Assim e de forma idêntica são os grupos ACM (Rede Bahia), na Bahia; Franco e Alves, em Sergipe; Collor, em Alagoas; Garibaldi Alves e Agripino Maia, no Rio Grande do Norte; Sarney, no Maranhão; Grupo Calmon e outros, na Paraíba; Jereissati, no Ceará; Pereira e Alves, no Piauí.
Além do controle do aspecto econômico e do monopólio dos meios de produção: terra, indústria e comércio, o coronelismo eletrônico tem a segunda perna sedimentada na estrutura política. Estão presentes desde as capitanias hereditárias no controle de partidos políticos, governos, Legislativos, Judiciários, associações de classe e igrejas. Em razão da ocupação dos espaços econômicos, logo assumiram os partidos políticos apenas como um instrumento ideológico e legal de chegar aos poderes institucionais nas prefeituras, Câmara de Vereadores, Assembléias Legislativas, Governos de Estados e no Congresso Nacional.
Apesar de 21 anos depois da Constituição Federal de 1988, onde, em tese, delimitaram-se com clareza os campos privados e públicos na sociedade e em função da ação de Estado, a ação cotidiana coronelesca não permite essa separação. O que valem, na concepção do coronelismo eletrônico, são os interesses privados e o controle de poder. A administração pública estaria aí para beneficiar os interesses desses grupos, os interesses do capital. Prefeitos, governadores, legisladores, magistrados seriam agentes para o atendimento desses interesses, com vista à ampliação e proteção ao patrimônio privado.
São ainda muito comuns, por exemplo, a contratação no serviço público da parentada sem a menor cerimônia. Obras e serviços públicos são realizados por suas próprias empresas. Dão nomes a prédios e espaços públicos com homenagem a suas mulheres e filhos. Mobilizam os recursos públicos para que beneficiem suas fazendas, suas indústrias e comércios, e as suas empresas de comunicação. Ora, se a terra é privada, tem dono; se a indústria, o comércio, os meios de produção são privados, se o Estado é instrumento para o privado, a comunicação também é ação privada. Essa história de concessão pública dos meios de mídia, na prática, não funciona. Os meios têm donos e não há limites para eles.
NORMALIDADE PACÍFICA
Com o controle dos meios de produção a economia, e dos meios de poder institucional a política, o e-coronelismo ganha contornos que parecem de eternidade quando ele assume, controla e oligopoliza os meios de comunicação, fechando o círculo privado da dominação. Observe que as pernas dessa estrutura estão profundamente interligadas. É o coronel dono da terra, que detém a indústria e comércio, que detém o poder em todas as esferas do Estado e que passa a controlar com o mesmo espírito de dono os meios de comunicação jornais, rádios (inclusive as comunitárias), sites e principalmente a tv. Talvez essa perna da comunicação seja uma das principais hoje porque é ela quem constrói o consenso sobre a vida da maioria, impede transformações, pacifica a normalidade do status político, econômico e social.
A relação entre mídia e poder é absurda. Não é por acaso e nem por mera coincidência que, no Brasil, segundo levantamento do site(www.donosdamidia.com.br), são 271 políticos com mandato que aparecem como sócios ou diretores de 324 veículos de comunicação. Estes números não levam ainda em conta os resultados das eleições municipais de outubro do ano passado. A Agência Repórter Social realizou uma pesquisa no banco de dados dos Tribunais Regionais Eleitorais e descobriu que um terço dos senadores e mais de 10% dos deputados eleitos para o quadriênio 2007-2010 controlam rádios ou televisões. No Rio Grande do Norte, por exemplo, o senador Garibaldi Alves (PMDB), que foi presidente do Senado, é dos de várias emissoras de tv e rádio e uma delas, curiosamente, chama-se Trampolim da Vitória.
César Veiga Arruda apresentou um trabalho em 2006 onde ele aponta que o Brasil é profundamente marcado pela prática do coronelismo eletrônico que teve como marco o regime militar nas décadas de 60/70 que o utilizou como moeda de troca para saldar dívidas políticas com os que apoiavam a ditadura. Assim, numa ponta, concessões de rádio e TV há muito são usadas como escambo para compra de apoio no Parlamento. Na outra, perpetuam o poder econômico e a influência social de seus beneficiários que são ainda brindados com um instrumento de fantástico potencial eleitoral: um excelente e virtual palanque eletrônico.
Quem não se lembra da farra de distribuição de concessões públicas de emissoras de rádio e tv no Governo Sarney? Apenas em três anos (1985 a 1988), o então presidente concedeu 1.028 concessões de emissoras de rádio e TV. Pelo menos 168 foram entregues a parlamentares que o ajudaram a aprovar a emenda que lhe deu cinco anos de mandato. O ministro das Comunicações era exatamente Antônio Carlos Magalhães, que foi indicado para o cargo pelo então Roberto Marinho, dono da Rede Globo. E para passar o projeto de reeleição de FHC, como foi? O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso distribuiu, por portaria do Ministério das Comunicações, as estações retransmissoras de televisão que podiam ser entregues aos aliados sem necessidade de aprovação do Congresso. Em setembro de 1996, outorgou 1.848 licenças de RTVs, das quais pelo menos 268 beneficiaram entidades ou empresas controladas por 87 políticos. A generosidade coincidiu com a aprovação da emenda constitucional que permitiu a sua reeleição. São os coronéis da Colônia, da República Velha, que se consolidaram na Ditadura Militar e que navegam com desenvoltura nos esquemas de poder ainda hoje.
A jornalista Andréa Vianna é certeira ao tratar por coronelismo eletrônico: Um dos traços determinantes do poder oligárquico nacional é a propriedade de estações de rádio e televisão por grupos familiares e pelas elites políticas locais ou regionais. A ciência política trata como coronelismo a relação entre os coronéis locais, líderes das oligarquias regionais, que buscavam tirar proveito do poder público, no século XIX e no início do século XX. Hoje, não há como deixar de se associar esse termo aos atuais impérios de comunicação mantidos por chefes políticos oligárquicos, que, por isso mesmo, acabam exercendo forte influência nacional. O compadrio e o patrimonialismo modernizaram-se com o recurso dos meios de extensão do poder da fala: o rádio e a televisão.
O grupo de José Sarney detém emissoras de rádio e televisão que cobrem 80% do território maranhense um fenômeno típico do Norte e Nordeste. Segundo o Ministério das Comunicações, o grupo tem 04 emissoras de televisão que retransmitem a Rede Globo (afiliadas da TV Globo em São Luís, Imperatriz, Santa Inês e Codó), 14 emissoras de rádio (FM e AM), controlam o jornal diário de maior circulação, O Estado do Maranhão, é beneficiário direto e indireto de 21 RTVs é o Sistema Mirante de Comunicação o mais notável exemplo de gestão da informação. (...) Possui ainda o Sistema Meio Norte de Comunicação, que se estende no Piauí onde publica o jornal Meio Norte, e repete a programação do SBT, a partir de Timon. O império funciona sob o comando de Fernando Sarney, filho de José Sarney, e de sua mulher, Teresa Murad, que é irmã do marido de Roseana Sarney. O governo estadual destinava 64% da verba publicitária televisiva às empresas da família Sarney, apontou o repórter Maurício Lima. José Sarney não tem seu nome incluído no cadastro de concessionários de emissoras de rádio e televisão do Ministério das Comunicações. (ARRUDA, 2006)
Se em um dos maiores estados em termos territoriais no Nordeste a situação é essa, imagine no menor. Em Sergipe, praticamente todos os veículos de comunicação que absorvem quase a totalidade dos meios pertencem a dois grupos: Franco e Alves/Amorim, comandados por dois ex-governadores que se revezavam no comando do Executivo nos últimos 40 anos. Das quatro únicas emissoras de tv abertas (consumida por 90% de toda população) duas são dos Francos (Globo e Record), uma é da igreja Católica (Canção Nova) e uma do Governo do Estado. Os Francos ainda detêm o maior jornal diário, emissora de rádio e portal na internet. Os Alves (família) têm jornal diário e emissoras de rádio espalhadas pelo interior que chegam a cobrir quase 100% de todo Estado. Alves/Amorim e Franco detêm amplas terras, cana-de-açúcar, indústrias e construtoras.
O Governo de Sergipe gasta, numa média histórica dos últimos dez anos, cerca de R$ 40 milhões, por ano, com a mídia local. Diretamente João Alves Filho e Albano do Prado Franco governaram Sergipe por 16 anos e nesse período todo enviaram em linha direta os vultosos recursos públicos para as suas empresas de comunicação. Tudo dentro da maior normalidade possível. Nenhum, absolutamente nenhum órgão de controle institucional local foi movido para questionar essa aberração. Mesmo depois de uma alternância de grupo político, com a eleição do prefeito Marcelo Déda (PT) para governador, esse quadro não mudou muito. A diferença é que o atual governador não é detentor de veículos de comunicação, mas os vultosos recursos públicos continuam a ser canalizados para os veículos de comunicação dos velhos e novos coronéis locais.
A família e alguns aliados do atualmente senador Antônio Carlos Magalhães são proprietários da Rede Bahia que domina todos os segmentos de comunicações no estado, incluindo: seis geradoras de TV aberta e 311 retransmissoras do Estado, todas afiliadas à Rede Globo a partir do episódio conhecido como CPI da NEC; 22 uma emissora de TV UHF; parte da única operadora de TV a cabo da capital, com outorga também em Feira de Santana; parte de uma operadora de MMDS com outorgas na capital, em três cidades do interior da Bahia e em PetrolinaPE, afiliadas à franquia Net Brasil, também da Rede Globo; duas emissoras e uma rede de rádio FM; um selo fonográfico; uma editora musical; um jornal diário; uma gráfica; e, por fim, uma empresa de conteúdo e entretenimento. (...) A expressiva dependência da televisão brasileira às índoles políticas locais e regionais é extensiva à televisão estatal. No caso baiano, se somarmos aos veículos da Rede Bahia a geradora e as 197 retransmissoras do IRDEB Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia, vinculado à Secretaria de Cultura e Turismo do Estado, teremos sete das treze geradoras e 508 das 703 retransmissoras do Estado sob influência direta do senador. (SANTOS e CAPPARELLI, 2006).
Para esses estudiosos, a rede de clientelismo que configura as comunicações brasileiras passa por distintas formas de associações de interesses, apadrinhamentos e parentescos. O que pode parecer um mercado concorrencial, às vezes, revela-se uma espécie de divisão de bolo entre amigos.
FORMAÇAO DE QUE OPINIAO?
O coronelismo eletrônico é uma realidade local e regional, de ampla conseqüência nacional, mas se engana quem pensa que ele está preso ao passado, fechado em um ciclo, apartado do processo mais global. A linha ideológica do capital é a mesma e as opiniões dos grandes grupos do mercado são disseminadas e chegam à base social justamente em razão dos poderes dos meios dos coronéis. O que divulga e defende a Veja, a Globo, o Estado de S. Paulo, a Folha de S. Paulo são fielmente reproduzidos e defendidos pelos veículos de comunicação dos coronéis nos municípios e estados e todo esse conteúdo jamais coloca em risco seus poderes locais, muito pelo contrário, constrói consensos e reforça-se a hegemonia do capital, assegurando uma cadeia de comando de classe, autoritária, prepotente e concentradora.
Basta observar os temas como são tratados pelas redes nacionais de comunicação e as regionais/locais. Eles têm o mesmíssimo enfoque. Desenvolvimento: ocorre pela liberdade total de mercado, pela liberdade sem limites ao capital. O Estado tem que entrar apenas para prover a estrutura e a segurança, mas nada de regulação ou interferência. Sindicato de Trabalhadores só serve se for para ajudar ao capital, se for para onerar deve ser criminalizado. Trabalhadores são importantes para produzir e fortalecer o capital, o mercado. Assim, todos ganham. Reforma Agrária, nem pensar. É coisa de criminoso. Aliás, pode até ser no caso de terras completamente imprestáveis que o Governo pode adquirir por preços superfaturados. Qualquer lei que constranja o capital e a liberdade de empresa, seja ela local ou internacional, deve ser duramente combatida. E assim seguem as verdades despejadas a toda hora nas mídias para formar a opinião pública.
Diante desse quadro, onde há uma sociedade sob influência quase total do coronelismo eletrônico, o que pensar sobre a formação da opinião pública, especialmente nos municípios e nos pequenos municípios? Que conteúdo informativo recebem as pessoas em lugares onde quase todos os canais de tv, emissoras de rádio, jornais, sites pertencem a um mesmo grupo político que domina o Governo, a prefeitura, a Câmara, a Assembléia, o Judiciário, e estabelece uma teia de relações clientelistas com o comércio, a indústria, o serviço e outros setores? O que pensa, do dizem, como agem, como votam aqueles que somente recebem um tipo de informação, aquela postadas nos veículos coronelescos?
Alguém imagina de que lado está a mídia em sua cidade quando o tema é sindicato de trabalhadores, greves, manifestações populares, reforma agrária, democratização da comunicação, educação e saúde públicas? Será apenas uma mera coincidência que políticos em Sergipe, Maranhão, Ceará, Alagoas, Bahia e em outros estados cheguem a 30, 40, 50 anos de mandatos em governos e câmaras locais e nacionais e também sejam donos de importantes meios de comunicação? Como atuam os novos coronéis quando políticos de grupos não alinhados assumem o poder momentaneamente? Alinham-se e se enquadram aos novos governos? Por que governos eleitos justamente na crítica à concentração a esses meios acabam se rendendo à força dos coronéis?
(...) a força dos interesses ideológicos, acima dos interesses dos movimentos sociais ou das pressões do mercado de comunicações, tenta manter o status quo que vigora. A este importante ator, o coronel eletrônico, interessa essencialmente a capacidade massiva de disseminação do seu poder de influência. Embora haja exemplos de elites políticas proprietárias de serviços de televisão por assinatura e/ou provedores de conteúdo para Internet, é claro que, na lógica coronelista, o caráter fragmentado destes meios não compensa o volume de investimentos necessários para a sua implantação. Na lógica clientelista estabelecida nas comunicações brasileiras, a adoção do ideário neoliberal acontece de forma cautelosa. A flexibilidade da regulamentação, bem como a livre competição dos mercados, limita-se ao espaço que não altere os domínios dos coronéis eletrônicos SANTOS E CAPPARELLI (2006).
(...) O imaginário brasileiro das últimas décadas vem sendo ampliado consideravelmente com a expansão da oferta de opções audiovisuais. Resta, entretanto, verificar até que ponto e de que forma a hegemonia de um conglomerado sólido, como é o caso das Organizações Globo, tem participado da construção desse imaginário. Mais que isso, é fundamental observar que os espaços para a regionalização da produção (o que equivale a falar sobre a necessidade de disseminação da fantástica diversidade cultural brasileira) vêm sendo reduzidos a cada dia em proveito de uma discutível linearização dos conteúdos em direção à malfadada formação de um pensamento uniforme (CUNHA, 2002, p.221).
QUAIS OS PAPÉIS?
Em um texto intitulado O projeto popular, Ademar Bogo (2004), diz que na sociedade capitalista o poder sempre está com um grupo ou com uma classe; no nosso campo, com a classe burguesa, que controla os meios de produção e por isso elabora as leis civis e morais para ordenar as relações sociais. Resumindo, a centralidade do poder está na força do capital, no Estado, nas relações sociais e de produção. Sem modificar estes três campos conjuntamente, por mais que se conquistem pequenos territórios no espaço social e na vida política, jamais se conseguirá derrotar a classe dominante capitalista. (...) Não é por nada que os capitalistas temem tanto a revolução e não temem as eleições. Porque a revolução desestrutura o poder de propriedade dos meios de produção, juntamente com o poder político e, assim, modifica as relações sociais.
E escreve ele ainda: Isto posto, não significa dizer que não devemos lutar por conquistas localizadas que aumentem o poder popular. Todas as lutas que fazemos vão construindo o poder da classe trabalhadora e explorada, modificando hábitos e criando novo conteúdo para valores (...).
Ainda bem que a história não é um bloco monolítico, homogêneo. Desde o nascimento das figuras dos coronéis na colônia até o mais sofisticados deles em atuação hoje nas realidades regionais, há belíssimos processos de resistência seja em associações, partidos, grupos, sindicatos de trabalhadores. Se o coronelismo eletrônico é uma dura e inequívoca realidade no Brasil, há também ao mesmo tempo e com força crescente, os movimentos populares de resistência ao autoritarismo que minam as poderosas bases do poder coronelesco.
É impossível deixar de lembrar a importância estratégica nessa luta contra-hegemônica e em defesa da democratização dos meios do jornal Brasil de Fato, das revistas Carta Capital, Caros Amigos, Retrato do Brasil, Fórum, Revista do Brasil, dos inúmeros sites e blog, como o da Carta Maior, Correio da Cidadania, do MST, da Adital, do NPC, do Intervozes, do Fazendo Media, assim como a TV Comunitária de Brasília, e uma série de editoras de esquerda como a Boitempo, Contraponto, Expressão Popular, Mauad, Perseu Abramo, entre tantas outras ações extraordinárias dos movimentos social, sindical e popular nesse campo da comunicação.
A verdadeira liberdade de expressão e de imprensa só começa a ser concretizada se e quando as organizações do público tiverem completo acesso aos meios. Enquanto não houver no Brasil uma Rede dos Trabalhadores, com o olhar dos trabalhadores, e enquanto as verbas publicitárias do Estado (fruto da arrecadação de impostos de todo o povo) não forem distribuídas com alguma justiça, contemplando mais efetivamente veículos e publicações populares, não se pode chamar o nosso sistema de democrático.
Vale a pena destacar o esforço tímido e tardio, mas nunca desprezível, do Governo Lula em tomar a decisão de criar a EBC (Empresa Brasil de Comunicação), de buscar estabelecer uma rede nacional fora dos esquemas coronelescos de mídia e de estimular em todo País, oficialmente, o debate sobre a democratização dos meios do sistema de Comunicação com a realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação da história do Brasil. Os passos do Governo brasileiros nessa área são muito mais tímidos quando se comparados com as ações tomadas por governos na América Latina, como as dos presidentes Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, e mais recentemente da presidente da Argentina, Cristina Kirchner, que, na prática, abrem amplas possibilidades de maior democratização dos meios.
É claro que apenas a resistência firme e constante não modifica esse quadro de profunda injustiça, mas ela é fundamental para animar os setores progressistas, de esquerda, revolucionários na busca por romper com essas estruturas latifundiárias da terra, do Estado e da Comunicação. Como já foi escrito anteriormente, quem sabe a 1ª Conferência Nacional de Comunicação na história do Brasil não seja o sinal de que um dia teremos um sistema de mídia verdadeiramente democrático que priorize a vida, o meio ambiente, a pluralidade das várias vozes sociais, principalmente as mais excluídas dos processos comunicativos.
REFERÊNCIAS:
ARRUDA. César Veiga.CORONELISMO ELETRÔNICO? a construção política do Grupo Sarney e o uso do aparelhamento da mídia no Maranhão. Trabalho apresentado no VI Encontro Humanístico, promovido pelo Centro de Ciências Humanas/UFMA, realizado de 11 a 15 de Dezembro de 2006, durante a mesa redonda Práticas políticas midiáticas, cultura e virtualidade. Disponível em . Acesso em: 10 de outubro de 2009.
CUNHA, Paulo José, Televisão e poder no Brasil, in: MOTTA, Luiz Gonzaga (org.). Imprensa e Poder. Editora Universidade de Brasília, 2002. São Paulo.
SANTOS, Suzy dos. E-Sucupira: o Coronelismo Eletrônico como herança do Coronelismo nas comunicações brasileiras. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação da Unb, dezembro de 2006: Disponível em: . Acesso em: 08 de outubro de 2009.
SANTOS, Suzy dos; CAPPARELLI, Sérgio. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um velho conceito In: BRITTOS, Valério Cruz; BOLAÑO, César Ricardo Siqueira (Org.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia.1 ed.São Paulo : Paulus, 2005, v.1, p. 77101. Disponível em:
. Acesso em: 12 de outubro de 2009.
* É jornalista no INSS/DF, com especialização em Gestão Pública (FGV/Esaf). Ex-secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju e ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Sergipe.
Fonte: Portal Eptic Online