segunda-feira, 5 de julho de 2010

A FOME DE MARINA


Por José Ribamar Bessa Freire* 
Há pouco, Caetano Veloso descartou do seu horizonte eleitoral o presidente
Lula da Silva, justificando: “Lula é analfabeto”. Por isso, o cantor baiano
aderiu à candidatura da senadora Marina da Silva, que tem diploma
universitário. Agora, vem a roqueira Rita Lee dizendo que nem assim vota em
Marina para presidente, “porque ela tem cara de quem está com fome”.
Os Silva não têm saída: se correr o Caetano pega, se ficar a Rita come.
Tais declarações são espantosas, porque foram feitas não por pistoleiros
truculentos, mas por dois artistas refinados, sensíveis e contestadores,
cujas músicas nos embalam e nos ajudam a compreender a aventura da
existência humana.
Num país dominado durante cinco séculos por bacharéis cevados, roliços e
enxudiosos, eles naturalizaram o canudo de papel e a banha como requisitos
indispensáveis ao exercício de governar, para o qual os Silva, por serem
iletrados e subnutridos, estariam despreparados.
Caetano Veloso e Rita Lee foram levianos, deselegantes e preconceituosos.
Ofenderam o povo brasileiro, que abriga, afinal, uma multidão de silvas
famélicos e desescolarizados.
De um lado, reforçam a ideia burra e cartorial de que o saber só existe se
for sacramentado pela escola e que tal saber é condição sine qua non para o
exercício do poder. De outro, pecam querendo nos fazer acreditar que quem
está com fome carece de qualidades para o exercício da representação
política.
A rainha do rock, debochada, irreverente e crítica, a quem todos admiramos,
dessa vez pisou na bola. Feio.“Venenosa! Êh êh êh êh êh!/ Erva venenosa, êh
êh êh êh êh!/ É pior do que cobra cascavel/ O seu veneno é cruel…/ Deus do
céu!/ Como ela é maldosa!”.
Nenhum dos dois - nem Caetano, nem Rita - têm tutano para entender esse
Brasil profundo que os silvas representam.
A senadora Marina da Silva tem mesmo cara de quem está com fome? Ou se trata
de um preconceito da roqueira, que só vê desnutrição ali onde nós vemos uma
beleza frágil e sofrida de Frida Kahlo, com seu cabelo amarrado em um coque,
seus vestidos longos e seu inevitável xale? Talvez Rita Lee tenha razão em
ver fome na cara de Marina, mas se trata de uma fome plural, cuja geografia
precisa ser delineada. Se for fome, é fome de quê?
O mapa da fome
A primeira fome de Marina é, efetivamente, fome de comida, fome que roeu sua
infância de menina seringueira, quando comeu a macaxeira que o capiroto
ralou. Traz em seu rosto as marcas da pobreza, de uma fome crônica que
nasceu com ela na colocação de Breu Velho, dentro do Seringal Bagaço, no
Acre.
Órfã da mãe ainda menina, acordava de madrugada, andava quilômetros para
cortar seringa, fazia roça, remava, carregava água, pescava e até caçava.
Três de seus irmãos não aguentaram e acabaram aumentando o alto índice de
mortalidade infantil.
Com seus 53 quilos atuais, a segunda fome de Marina é dos alimentos que,
mesmo agora, com salário de senadora, não pode usufruir: carne vermelha,
frutos do mar, lactose, condimentos e uma longa lista de uma rigorosa dieta
prescrita pelos médicos, em razão de doenças contraídas quando cortava
seringa no meio da floresta. Aos seis anos, ela teve o sangue contaminado
por mercúrio. Contraiu cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose.
A fome de conhecimentos é a terceira fome de Marina. Não havia escolas no
seringal. Ela adquiriu os saberes da floresta através da experiência e do
mundo mágico da oralidade. Quando contraiu hepatite, aos 16 anos, foi para a
cidade em busca de tratamento médico e aí mitigou o apetite por novos
saberes nas aulas do Mobral e no curso de Educação Integrada, onde aprendeu
a ler e escrever.
Fez os supletivos de 1º e 2º graus e depois o vestibular para o Curso de
História da Universidade Federal do Acre, trabalhando como empregada
doméstica, lavando roupa, cozinhando, faxinando.
Fome e sede de justiça: essa é sua quarta fome. Para saciá-la, militou nas
Comunidades Eclesiais de Base, na associação de moradores de seu bairro, no
movimento estudantil e sindical. Junto com Chico Mendes, fundou a CUT no
Acre e depois ajudou a construir o PT.
Exerceu dois mandatos de vereadora em Rio Branco , quando devolveu o
dinheiro das mordomias legais, mas escandalosas, forçando os demais
vereadores a fazerem o mesmo. Elegeu-se deputada estadual e depois senadora,
também por dois mandatos, defendendo os índios, os trabalhadores rurais e os
povos da floresta.
Quem viveu da floresta, não quer que a floresta morra. A cidadania ambiental
faz parte da sua quinta fome. Ministra do Meio Ambiente, ela criou o Serviço
Florestal Brasileiro e o Fundo de Desenvolvimento para gerir as florestas e
estimular o manejo florestal.
Combateu, através do Ibama, as atividades predatórias. Reduziu, em três
anos, o desmatamento da Amazônia de 57%, com a apreensão de um milhão de
metros cúbicos de madeira, prisão de mais 700 criminosos ambientais,
desmonte de mais de 1,5 mil empresas ilegais e inibição de 37 mil
propriedades de grilagem.
 
Tudo vira bosta
Esse é o retrato das fomes de Marina da Silva que - na voz de Rita Lee - a
descredencia para o exercício da presidência da República porque, no frigir
dos ovos, “o ovo frito, o caviar e o cozido/ a buchada e o cabrito/ o
cinzento e o colorido/ a ditadura e o oprimido/ o prometido e não cumprido/
e o programa do partido: tudo vira bosta”.
Lendo a declaração da roqueira, é o caso de devolver-lhe a letra de outra
música - ‘Se Manca’ - dizendo a ela: “Nem sou Lacan/ pra te botar no divã/ e
ouvir sua merda/ Se manca, neném!/ Gente mala a gente trata com desdém/ Se
manca, neném/ Não vem se achando bacana/ você é babaca”.
Rita Lee é babaca? Claro que não, mas certamente cometeu uma babaquice. Numa
de suas músicas - ‘Você vem’ - ela faz autocrítica antecipada, confessando:
“Não entendo de política/ Juro que o Brasil não é mais chanchada/ Você vem…
e faz piada”. Como ela é mutante, esperamos que faça um gesto grandioso, um
pedido de desculpas dirigido ao povo brasileiro, cantando: “Desculpe o auê/
Eu não queria magoar você”.
A mesma bala do preconceito disparada contra Marina atingiu também a
ministra Dilma Rousseff, em quem Rita Lee também não vota porque, “ela tem
cara de professora de matemática e mete medo”. Ah, Rita Lee conseguiu o
milagre de tornar a ministra Dilma menos antipática! Não usaria essa imagem,
se tivesse aprendido elevar uma fração a uma potência, em Manaus, com a
professora Mercedes Ponce de Leão, tão fofinha, ou com a nega Nathércia
Menezes, tão altaneira.
Deixa ver se eu entendi direito: Marina não serve porque tem cara de fome.
Dilma, porque mete mais medo que um exército de logaritmos, catetos,
hipotenusas, senos e co-senos. Serra, todos nós sabemos, tem cara de
vampiro. Sobra quem?
Se for para votar em quem tem cara de quem comeu (e gostou), vamos
ressuscitar, então, Paulo Salim Maluf ou Collor de Mello, que exalam saúde
por todos os dentes. Ou o Sarney, untuoso, com sua cara de ratazana
bigoduda. Por que não chamar o José Roberto Arruda, dono de um apetite voraz
e de cuecões multi-bolsos? Como diriam os franceses, “il péte de santé”.
O banqueiro Daniel Dantas, bem escanhoado e já desalgemado, tem cara de quem
se alimenta bem. Essa é a elite bem nutrida do Brasil…
Rita Lee não se enganou: Marina tem a cara de fome do Brasil, mas isso não é
motivo para deixar de votar nela, porque essa é também a cara da
resistência, da luta da inteligência contra a brutalidade, do milagre da
sobrevivência, o que lhe dá autoridade e a credencia para o exercício de
liderança em nosso país.
Marina Silva, a cara da fome? Esse é um argumento convincente para votar
nela. Se eu tinha alguma dúvida, Rita Lee me convenceu definitivamente.
 
(*) Professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e
pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)
 

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