Alexandre Haubrich, jornalista, editor do blog Jornalismo B
(www.jornalismob.wordpress.com)
Homens armados atiram para todos os lados em uma favela carioca. Fortemente
armados. O estrondo dos tiros ecoa junto com os zunidos das balas por todo o morro.
Pessoas caem baleadas. Algumas estão apenas feridas, outras estão mortas. Entre os
milhares de barracos de madeira rodeados por terra, esgoto e sangue, há um em que uma
menina de quatorze anos está sentada ao computador, como você que está lendo esse
texto está agora. Ali ela tenta concentrar-se em uma realidade diferente, tenta ignorar
os tiros e zunidos e gritos e urros e mortes. Ela está lendo um recado que recebeu no
Orkut, ela está vendo um vídeo engraçado no Youtube, ela está lendo este mesmo blog
que você agora lê. De repente ela não está mais. Das suas costas escorre sangue, seu pai
grita, sua mãe chora em desespero. A menina de 14 anos que brincava no computador
foi morta por uma bala que saiu da arma de um policial, saiu da arma do Estado que
deveria protegê-la.
Uma história muito parecida com essa aconteceu essa semana no Rio de Janeiro,
e passou quase batida em meio ao fervor midiático e popular com uma guerra tão
próxima, olha que maravilha, agora o Brasil também tem guerra, podemos curtir mais
esse espetáculo do conforto de nossos lares e imaginar quase em gozo que é longe o
suficiente para nos mantermos protegidos e perto o suficiente para nos dar prazer. Tropa
de Elite 3, agora ao vivo.
Violência do tráfico x violência do Estado
Durante décadas o Estado brasileiro promoveu ações policiais em favelas. O tráfico
de drogas e armas continua, a “violência” que assusta a classe média continua, nada se
resolve. Além disso, a violência social está devidamente estabelecida. Os moradores das
favelas cariocas, como os moradores de todas as periferias das grandes e médias cidades
brasileiras, são violentados dia e noite por criminosos comuns ou institucionalizados.
O Estado violenta os pobres a cada instante. A violência do não acesso à educação, à
cultura, à saúde. A violência do não acesso ao respeito, à solidariedade, ao carinho. A
violência do não acesso à cidade, do preconceito, da exclusão, do nojo das elites que
não tomariam um copo d’água servido em um barraco. A violência que vemos pela
TV é só a mais visível daqui da superfície. Como as revoluções, a violência contra os
pobres não é televisionada.
A atual ação policial em alguns morros do Rio de Janeiro tem sido uma demonstração
de força e truculência, e uma demonstração de como o Estado lida com a pobreza. Sem
distinguir criminosos de não-criminosos, a polícia entra para matar quem passar pelo
caminho. Revira casas que nada têm a ver com o tráfico, desrespeita os moradores
como se estes não tivessem os mesmos direitos que qualquer um. Invadiria dessa
forma casas de classe média? Não creio. Muitos dos chefões do tráfico de drogas e
armas não moram nas favelas, mas em coberturas das zonas nobres do Rio de Janeiro.
Por que essas coberturas não são invadidas da mesma forma? Os traficantes ocupam
áreas da cidade e as transformam em suas propriedades. Milionários fazem o mesmo
em áreas paradisíacas em diversas cidades brasileiras. Por que as mansões que estes
constroem não são invadidas e devolvidas ao Estado? O problema não são os policiais,
é importante explicar. É a estrutura policial, a instituição. A mentalidade, vendida pela
mídia e comprada pela sociedade em quase todas as suas instâncias, remete ao tempo da
escravidão negra: pobre não tem direitos, pobre não é gente. A polícia também compra
essa ideia.
Além dos inocentes assassinados pela polícia, além dos inocentes feridos ou
simplesmente desrespeitados em seus direitos, há os criminosos. Não parece, mas o
Brasil ainda tem leis e ainda tem Judiciário. Que direito a polícia tem de travestir-se de
juiz e executar criminosos a seu bel prazer? Ainda que, em sua cega ânsia vingativa,
grande parcela da conservadora e ignorante sociedade brasileira defenda a pena de
morte, este recurso não é permitido no Brasil. Se em um julgamento não se pode
determinar a execução de um criminoso, por mais grave que seja seu crime, como pode
ser aceito que a polícia mate traficantes como patos de festa junina? A limpeza social
que está sendo posta em prática diariamente e, agora, de forma intensiva, não pode
ser permitida. Além disso, a noção de “guerra” aplicada ao momento cria um clima de
confronto exagerado, que faz crescer ainda mais a violência de lado a lado e reduz a
preocupação com os direitos humanos e com o respeito à vida.
Fique claro: não estou defendendo os traficantes, que oprimem as pessoas através das
armas, executam quando entendem que devem, e, mesmo em ações que “ajudam a
comunidade”, desempenham um papel que não é deles. Exercem o poder através das
armas em um nível de coerção muito maior do que o Estado atual. Porém, de nada
adianta, através de seu caráter de detentor do monopólio da violência legítima, o Estado
agir sobre os criminosos e sobre as comunidades da mesma forma. É claro também que,
em uma situação estabelecida de conflito armado, os policiais precisam se defender,
precisam atirar. Mas a atitude inicial do Estado, ali representado pela polícia, frente aos
criminosos, não pode ser de confronto e busca pela morte do outro. Deve-se combater o
crime. Mas combater o crime não é matar gente. Isso é cometer novos crimes. Combater
o crime é buscar mudanças na sociedade.
A bala de prata contra a violência é a paz
Gostaria de ver o Estado brasileiro invadir as favelas cariocas e todos os grotões de
pobreza armado com livros, estetoscópios e computadores. Essas são as balas de prata
contra a violência não institucional. Essa violência é lamentada sem que se perceba
onde nasce. Com a sociedade capitalista exclusiva, antidemocrática e preconceituosa
por natureza, não há escapatória. A publicidade exalta o consumo, quem não pode
consumir está automaticamente excluído. E esse mesmo que não pode consumir já mora
longe das regiões centrais das grandes cidades, está desempregado ou subempregado,
sofre na pele o preconceito de classe, monstruosamente presente na sociedade brasileira.
Se mora na favela, não é por acaso. Não há lugar no campo por causa dos latifúndios
que excluem, não há lugar na cidade por causa da especulação imobiliária, então o
pobre vai parar nas periferias, isolado, e passa a ser visto com ainda mais preconceito,
e o ciclo se renova. A política costumeira de isolar a pobreza não funciona. Enquanto a
pobreza for mantida apartada da cidade média, não será enxergada nem eliminada, e a
violência seguirá nascendo todos os dias.
A curto prazo é preciso pensar atitudes concretas básicas. A ocupação policial e a prisão
dos traficantes é, sim, necessária, mas deve ser feita com preocupação com os direitos
humanos básicos, em todos os sentidos, desde a atitude com os moradores até as ações
frente aos criminosos. Mas só isso não adianta. A melhoria das condições de vida dessas
pessoas é a única forma de impedir que a violência se prolifere, em suas mais diversas
esferas. Para combater o tráfico de drogas e armas, a legalização de todas as drogas
é um caminho inicial fundamental. Legalização não é liberação, leia bem. O Estado
precisa deter o monopólio das drogas e controlar, dessa forma, seu consumo. Com as
drogas legalizadas, o crime organizado que domina os morros do Rio de Janeiro perde
sua principal fonte de financiamento.
Para resolver o problema em definitivo e em sua esfera mais ampla, porém, é preciso
uma mudança profunda. Econômica, política, cultural e humana. É preciso fazer nascer
um novo homem, que veja beleza na solidariedade, na igualdade entre diferentes, no
respeito a essas diferenças. É preciso fazer nascer uma nova sociedade, com essas
mesmas características do novo homem, começando-se por revoluções educacional e
na saúde, por reformas agrária e urbana radicais, por redistribuição radical de renda. É
dessa forma que o Estado pode atuar contra a violência. O resto é apenas reacomodação,
solução apenas aparente, casual. A verdadeira solução é, como o verdadeiro problema,
estrutural. É difícil? Muito. Mas as verdadeiras soluções não costumam ser as mais
fáceis. Uma das poucas certezas que tenho é que absolutamente todas as ações e reações
sociais são possíveis. A mudança precisa ser muito profunda, uma mudança sistêmica.
Sem isso, temos pouco mais que nada. A paz não pode ser apenas aparente nem para
alguns. Ela precisa ser profunda, permanente, e para todos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Posso não publicar, baseado nas regras de civilidade que prezo. Obrigado.