Alexandre Nativa
"(... a) súbita emergência de um movimento popular, a súbita deposição de uma tirania, o súbito reacender de uma chama que julgávamos extinta. Nós somos surpreendidos porque não percebemos o quieto murmúrio da indignação, os primeiros fracos sons de protesto, os sinais espalhados de resistência que, em meio ao nosso desespero, anunciam a excitação da mudança. Os atos isolados começam a se juntar, os ímpetos individuais se unem em ações organizadas, e um dia, geralmente quando a situação parece mais desesperadora, um movimento explode e entra em cena."valeu a dica, zaak! muito bom o texto. li por partes, que é bem longo, mas valeu!
"sejamos nós mesmos a mudança que queremos ver no mundo" Gandhi.
saudações
alexandre
A Pergunta em Kalamazoo
por Howard Zinn (1922-2010)
Eu tinha sido convidado para dar uma palestra em Kalamazoo, Michigan. Era a noite do último debate presidencial na TV da campanha de 1992, e para minha surpresa (será que precisavam de uma pausa da loucura eleitoral?) havia algumas centenas de pessoas na platéia. Era o quinto centenário da chegada de Colombo no Hemisfério Ocidental e eu falava sobre “O Legado de Colombo, 1492-1992″.
Dez anos antes, logo nas primeiras páginas do meu livro Uma História do Povo dos Estados Unidos, eu havia escrito sobre Colombo de uma maneira que espantou vários leitores. Eles, assim como eu, tinham aprendido na escola primária (um “fato” nunca contestado, não importando o grau de escolaridade) que Colombo era um dos grandes heróis da história mundial, a ser admirado por sua audaciosa imaginação e coragem. No meu relato, eu admitia que ele era um intrépido marinheiro, mas observava (baseado em seu próprio diário e nos relatos de várias testemunhas) que ele foi perverso em seu tratamento dos gentis índios Arawak que lhe saudaram em sua chegada a este hemisfério. Ele os escravizou, torturou, assassinou – tudo isso em sua busca por riqueza. Ele representa, eu sugeria, os piores valores da civilização ocidental: ganância, violência, exploração, racismo e hipocrisia (ele se dizia um cristão devoto).
O sucesso de Uma História do Povo pegou a mim e a meu editor de surpresa. Em sua primeira década, o livro passou por vinte e quatro edições, vendeu trezentas mil cópias, foi indicado ao American Book Award, e foi publicado na Grã Bretanha e Japão. Eu comecei a receber cartas de todo o país, e uma grande parte delas eram uma reação excitada ao capítulo inicial sobre Colombo.
A maioria das cartas me agradecia por revelar uma história não contada. Algumas eram céticas e indignadas. Um estudante de segundo grau de Oregon, após ter o livro indicado por seu professor, escreveu: “Você disse que obteve muita dessa informação do próprio diário de Colombo. Se tal diário existe, por que ele não é parte da nossa história? Por que nada disso está no meu livro de história?” Uma mãe na Califórnia, ao ler uma cópia de Uma História do Povo que sua filha trouxera para casa da escola, ficou colérica e exigiu que a diretoria da escola investigasse o professor que usava meu livro em suas aulas.
Tornou-se claro que o problema (sim, eu representava um problema) não estava apenas na minha irreverência quanto a Colombo, mas em todo meu enfoque da história americana. Em Uma História do Povo, eu insistia, como um crítico colocou, numa “inversão de perspectiva, numa mudança de posição entre heróis e vilões.” Os Pais Fundadores não eram apenas engenhosos organizadores de uma nova nação (embora eles certamente o fossem) mas também ricos donos de escravos, mercadores e debêntures, temerosos de qualquer rebelião das classes mais baixas, ou como James Madison colocou, de “uma divisão eqüitativa de propriedade”. Nossos heróis militares – Andrew Jackson, Theodore Roosevelt – eram racistas, assassinos de índios, amantes da guerra, imperialistas. Nossos presidentes mais liberais – Jefferson, Lincoln, Wilson, Roosevelt, Kennedy – estavam mais preocupados com poder político e engrandecimento da nação do que com os direitos da população não-branca.
Meus heróis eram os fazendeiros da Rebelião de Shay, os abolicionistas negros que violaram a lei para libertar seus irmãos e irmãs, as pessoas que foram para a prisão por se opor a Primeira Grande Guerra, os trabalhadores que entraram em greve contra corporações poderosas, desafiando a polícia e a milícia, os veteranos do Vietnã que se levantaram contra a guerra, as mulheres que exigiam igualdade em todos os aspectos da vida.
Houve historiadores e professores de história que receberam bem meu livro. Algumas pessoas, entretanto, ficaram transtornadas; para elas eu era claramente um desordeiro. Como se houvessem crimes que eu tivesse cometido como “ataque com arma letal – um livro” ou “conduta imprópria – causando distúrbios num clube exclusivo” ou “invasão – do sagrado terreno da tradição historiográfica.”
Para alguns, não apenas meu livro era desordeiro, toda minha vida era desordeira – havia algo impatriótico, subversivo, perigoso, na minha crítica de tudo que acontecia nesta sociedade. Durante a Guerra do Golfo em 1991, eu dei uma palestra para um grupo de alunos de segundo grau em Massachusetts, numa escola particular em que os estudantes vinham de famílias afluentes e dizia-se que “95 por cento eram a favor da guerra”. Eu expus minha opinião e para minha surpresa recebi aplausos. Mas numa sala de aula mais tarde, num encontro com um pequeno grupo de estudantes, uma garota que estivera me encarando com óbvio ar de hostilidade durante a discussão subitamente ergueu a voz, seu tom registrando sua raiva: “Por que você vive neste país?”
Eu senti um clique. Era uma pergunta que eu sabia que muitas pessoas tinham, mesmo quando ela passava sem ser formulada. Era a questão do patriotismo, da lealdade a seu país, que surge sempre, seja quando alguém critica a política externa, ou evita o serviço militar, ou recusa-se a fazer o juramento à bandeira.
Eu tentei explicar que meu amor era pelo país, pelas pessoas, não pelo governo que acaso estivesse no poder. Acreditar na democracia é acreditar nos princípios da Declaração de Independência – que o governo é uma criação artificial, estabelecida pelas pessoas para defender o igual direito de todos à vida, à liberdade e à procura da felicidade. E eu interpreto “todos” como incluindo homens, mulheres e crianças de todo o mundo, que têm um direito à vida que não pode ser tirado pelo governo deles ou pelo nosso.
Quando um governo trai esses princípios democráticos, ele está sendo impatriótico. Um amor pela democracia exigiria então se opor a seu governo. Ele sim está sendo desordeiro.
A publicação de Uma História do Povo levou a vários pedidos para que eu falasse pelo país inteiro. Então lá estava eu em Kalamazoo naquela tarde de 1992, falando sobre porque contar a verdade sobre Colombo é importante para nós hoje. Eu não estava realmente interessado em Colombo por si só, mas nas questões levantadas por sua interação com os nativos americanos: É possível para as pessoas, superando a história, viver juntas com igualdade, com dignidade, hoje?
Ao final de minha palestra, alguém perguntou algo que já me foi colocado muitas vezes de diferentes maneiras. “Levando em conta as notícias deprimentes do que está acontecendo no mundo, você parece surpreendentemente otimista. O que lhe dá esperança?”
Eu tentei responder. Eu disse que podia entender estar deprimido pelo estado do mundo, mas o sujeito havia capturado corretamente o meu estado de espírito. Para ele e para outros, a minha maneira de encarar as coisas parecia absurdamente jovial num mundo violento e injusto. Mas o que para mim freqüentemente é desdenhado como sendo idealismo romântico e ilusão, é justificado se leva à ação que realize estes desejos, que traga vida a esses ideais.
A vontade de tomar parte em tal ação não pode ser baseada em certezas, mas nas possibilidades vislumbradas numa leitura da história diferente da costumeira e dolorosa reconstituição da crueldade humana. Em tal leitura nós podemos encontrar não apenas guerra, mas oposição à guerra, não apenas injustiça mas rebelião contra a injustiça, não apenas silêncio face à tirania mas ousadia, não apenas insensibilidade mas compaixão.
Seres humanos demonstram um vasto espectro de qualidades, mas são as piores que mais freqüentemente são enfatizadas, e o resultado, demasiadas vezes, nos desencoraja, diminui nosso espírito. E ainda assim, historicamente, o espírito recusa-se render. A história é cheia de momentos em que pessoas, contra barreiras enormes, juntaram-se para lutar por liberdade e justiça, e conseguiram – não com a freqüência que gostaríamos, é claro, mas o suficiente para sugerir que muito mais é possível.
Os ingredientes essenciais para estas lutas por justiça são seres humanos que, ainda que por um momento, ainda que assombrados por seus medos, saem do lugar comum e fazem algo, não importa o quão pequeno. E mesmo os atos menores e menos heróicos aumentam a fogueira que pode explodir por alguma circunstância surpreendente numa mudança tumultuosa.
Indivíduos são os elementos necessários, e minha vida esteve cheia de tais pessoas, normais e extraordinárias, cuja própria existência me deu esperança. As próprias pessoas ali, na platéia em Kalamazoo, claramente preocupadas com o mundo além dos resultados da eleição, eram provas vivas das possibilidades para mudança neste mundo difícil.
Embora eu não o tenha dito na resposta, eu havia encontrado tais pessoas naquela tarde, naquela mesma cidade. No jantar antes de minha palestra eu estive com o pároco do campus, um homem com o físico de um jogador de futebol americano, o que ele realmente tinha sido alguns anos antes. Eu lhe fiz uma pergunta que costumo fazer às pessoas que gosto: “O que lhe levou a pensar da maneira que agora o faz?”
Sua resposta foi de uma palavra, dada por tantos outros: “Vietnã”. Para estas perguntas que nos sondam sobre nossa vida, com que freqüência encontramos respostas de uma palavra: Auschwitz… Hungria… Attica. Vietnã. O padre havia servido lá como capelão. Seu comandante era o Coronel George Patton III. Um verdadeiro filho de seu pai, Patton gostava de chamar seus soldados de “malditos assassinos”, hesitando para usar a palavra “malditos”, mas não a palavra “assassinos”. Patton mandou o capelão carregar uma pistola consigo quando estivesse na zona de combate. O capelão se recusou, e apesar de ameaças, continuou a se recusar. Ele voltou do Vietnã não só contra aquela guerra mas contra todas as guerras. E agora ele estava viajando para El Salvador, para ajudar as pessoas que lutavam contra os esquadrões de morte e a pobreza.
Também no jantar estava um jovem professor de sociologia da Universidade Estadual de Michigan. Criado em Ohio por pais de classe trabalhadora, ele também se opôs à guerra do Vietnã. Agora ele ensinava criminologia, fazendo pesquisa não sobre ladrões e assaltantes, mas sobre o alto crime, sobre oficiais do governo e executivos corporativos cujas vítimas eram não indivíduos mas toda a sociedade.
É impressionante quanta história há em qualquer pequeno grupo. Havia também em nossa mesa uma jovem mulher, recém admitida na universidade, que estava cursando Enfermagem, para que pudesse trabalhar com moradores da América Central. Eu a invejei. Como um dos muitos que escreve, fala, ensina, pratica a lei, prega, e cuja contribuição à sociedade é tão indireta, tão incerta, eu pensei nestes que dão ajuda imediata – os carpinteiros, as enfermeiras, os fazendeiros, os motoristas de ônibus escolares, as mães. Eu lembrei do poeta chileno Pablo Neruda, que escreveu um poema sobre seu desejo de fazer alguma coisa útil com suas mãos, que ele pudesse fazer uma vassoura, só uma vassoura.
Eu não disse nada disso ao sujeito que me perguntou em Kalamazoo. Na verdade, para realmente respondê-lo eu teria que dizer muito mais sobre o porquê de eu ser curiosamente esperançoso face ao mundo como o conhecemos. Eu teria que lhe contar toda minha vida.
Eu teria que lhe contar como era ir trabalhar num estaleiro aos dezoito, e passar três anos trabalhando nas docas, sob frio e sob calor, em meio a barulho ensurdecedor e vapores venenosos, construindo navios de guerra nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial.
Eu teria que lhe contar sobre alistar-se na Força Aérea aos vinte e um, ser treinado como bombardeiro, voar missões de combate sobre a Europa e depois me fazer perguntas dolorosas sobre o que eu fizera na guerra.
E sobre me casar, me tornar um pai, ir à faculdade sob a G.I. Bill of Rights enquanto eu carregava caminhões num depósito, com minha esposa trabalhando e nossos dois filhos numa creche, e todos nós morando numa habitação popular de baixa renda no Lower East Side de Manhattan.
E sobre conseguir meu PhD em Columbia e meu primeiro trabalho real de professor (eu tivera um número de “bicos” como professor), indo morar e ensinando numa comunidade negra no sul por sete anos. E sobre as estudantes do Spelman College que um dia decidiram passar por cima de um muro simbólico e de pedra que circundava o campus, e fazer história nos primeiros anos do movimento pelos direitos civis.
E sobre minhas experiências com este movimento, em Atlanta, em Albany, Georgia, Selma, Alabama, em Hattiesburg, Jackson e Greenwood, Mississipi.
Eu teria que lhe contar sobre mudar para o norte para lecionar em Boston, e juntar-me aos protestos contra a guerra do Vietnã, e ser preso uma meia dúzia de vezes (a linguagem oficial das acusações era sempre interessante: “vagabundagem”, “conduta desordeira”, “fracasso em parar”). E viajar para o Japão, e para o Vietnã do Norte, e falar em centenas de encontros e assembléias, e ajudar um padre católico a ficar escondido a despeito da lei.
Eu teria que recapturar as cenas em uma dezena de cortes onde testemunhei na década de 70 e 80. Eu teria que falar sobre os prisioneiros que conheci, de penas pequenas a prisão perpétua, e como eles afetaram minha visão sobre a prisão.
Quando eu me tornei um professor eu não podia simplesmente deixar fora da sala de aula minhas próprias experiências. Eu sempre me pergunto como muitos professores conseguem passar um ano com um grupo de estudantes e nunca revelar quem eles são, que tipo de vida eles levaram, de onde suas idéias vêm, no que eles acreditam, ou no que eles querem para si, para seus estudantes, e para o mundo.
O simples fato deste acobertamento existir não nos ensina algo terrível – que você pode separar o estudo da literatura, história, filosofia, política, artes, de sua própria vida, de suas mais profundas concepções de certo e errado?
No meu ensino nunca escondi minhas visões políticas: meu ódio pela guerra e o militarismo, minha raiva perante a diferença racial, minha crença num socialismo democrático, numa distribuição racional e justa da riqueza do mundo. Sempre deixei claro meu desprezo por qualquer tipo de valentismo, seja por nações poderosas sobre as mais fracas, governos sobre seus cidadãos, empregadores sobre empregados, ou por qualquer um, da Esquerda ou da Direita, que acha que possui o monopólio sobre a verdade.
Esta mistura de ativismo e ensino, esta insistência em que a educação não pode ser neutra sobre as questões cruciais de nosso tempo, este movimento da sala de aula para as lutas fora dela por professores que esperam que seus alunos façam o mesmo, sempre assustou os guardiões da educação tradicional. Eles preferem que a educação simplesmente prepare a nova geração para tomar seu devido lugar na velha ordem, não que ela questione essa ordem.
Sempre comecei meus cursos deixando claro para meus alunos que eles estariam tendo o meu ponto de vista, mas que eu tentaria ser justo quanto aos outros. Encorajei meus alunos a discordar de mim.
Nunca pretendi uma objetividade que não é nem possível nem desejável. “Você não pode ser neutro num trem em movimento”, eu sempre disse a eles. Alguns não entendiam a metáfora, especialmente quando a tomavam literalmente e tentavam dissecar seu significado. Outros imediatamente entenderam o que eu queria dizer: que os eventos já estão se movendo numa direção mortal, e que ser neutro significa aceitar isso.
Eu nunca acreditei que estivesse impondo minha visão em um quadro em branco, em mentes inocentes. Meus estudantes tiveram um longo período de doutrinação política antes de chegarem à minha classe – na família, na escola, na mídia. Num mercado há tanto tempo dominado pela ortodoxia, eu queria apenas oferecer meus produtos em meio aos outros, deixando os estudantes fazerem suas próprias escolhas.
Os milhares de jovens em minhas classes ao longo dos anos me deram esperança para o futuro. Durante os anos setenta e oitenta, todos pareciam se queixar de quão “ignorante” e “passiva” era a atual geração de estudantes. Mas escutando-os, lendo seus trabalhos e artigos, seus relatórios sobre a atividade comunitária que era parte de suas tarefas, eu fiquei impressionado com sua sensibilidade frente à injustiça, sua disposição para fazer parte de uma boa causa, seu potencial para mudar o mundo.
O ativismo estudantil da década de oitenta foi pequeno em escala, mas nesta época não havia nenhum grande movimento nacional a que se juntar, e havia fortes pressões econômicas de todos os lados para “se dar bem”, “ter sucesso”, e juntar-se ao mundo dos profissionais prósperos. Ainda assim, muitos jovens ansiavam por algo mais, e eu não desesperei. Eu me lembro como na década de cinqüenta observadores desdenhosos falavam da “geração silenciosa” como um fato inquestionável, e então, explodindo essa noção, vieram os anos sessenta.
Há algo mais, ainda mais difícil de se falar, que tem sido crucial para meu espírito – minha vida particular. Como tenho tido sorte de viver minha vida com uma mulher memorável cuja beleza, de corpo e alma, eu vejo novamente em nossos filhos e netos. Roz compartilhou e ajudou, trabalhou como assistente social e professora, mais tarde fez mais de seus talentos como pintora e música. Ela adora literatura e tornou-se a primeira editora de tudo que escrevi. Viver com ela meu deu um senso aguçado do que é possível neste mundo.
E ainda assim eu não me esqueço das más notícias com que constantemente nos defrontamos. Isto me cerca, me inunda, me deprime, me enfurece.
Eu penso nos pobres de hoje, tantos deles morando nos guetos dos não-brancos, muitas vezes vivendo a apenas algumas quadras de riquezas fabulosas. Eu penso na hipocrisia dos líderes políticos, no controle da informação através do engano, através da omissão. E de como, por todo o mundo, governos têm desempenhado um papel no ódio nacional e étnico.
Estou ciente da violência cotidiana para a maioria da raça humana. Toda ela representada por imagens de crianças. Crianças famintas. Crianças aleijadas. O bombardeio de crianças oficialmente declarado “dano colateral”.
Enquanto escrevo isto, no verão de 1993, há um espírito geral de desespero. O fim da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética não resultou em paz mundial. Existe uma guerra brutal acontecendo na Iugoslávia e mais violência na África. A elite próspera do mundo acha conveniente ignorar a fome e a doença em países arrasados pela pobreza. Os Estados Unidos e outras potências continuam a vender armas onde quer que haja lucro, independente do custo humano.
Neste país, a euforia que acompanhou a eleição em 1992 de um presidente jovem e presumivelmente progressista evaporou. A nova liderança política do país, como a velha, parece ter falta da visão, da coragem, da vontade para libertar-se do passado. Mantém um gigantesco orçamento militar que distorce a economia e somente torna possível esforços insignificantes para compensar a gigantesca distância entre ricos e pobres. Sem esta compensação, as cidades continuam inundadas em violência e desespero.
E não há sinal de um movimento nacional para mudar isto.
Apenas o corretivo da perspectiva histórica pode iluminar esta visão sombria. Note quantas vezes neste século nós fomos surpreendidos. Pela súbita emergência de um movimento popular, a súbita deposição de uma tirania, o súbito reacender de uma chama que julgávamos extinta. Nós somos surpreendidos porque não percebemos o quieto murmúrio da indignação, os primeiros fracos sons de protesto, os sinais espalhados de resistência que, em meio ao nosso desespero, anunciam a excitação da mudança. Os atos isolados começam a se juntar, os ímpetos individuais se unem em ações organizadas, e um dia, geralmente quando a situação parece mais desesperadora, um movimento explode e entra em cena.
Pessoas são práticas. Elas querem mudança mas se sentem impotentes, sozinhas, não querem ser a folha de grama que se levanta acima das outras e é cortada. Elas esperam pelo sinal de alguém que fará o primeiro movimento, ou o segundo. E algumas vezes na história, existem pessoas intrépidas que irão aceitar o risco de que se elas tomarem a iniciativa, outras as seguirão rápido o suficientemente para evitar que sejam cortadas. E se nós entendermos isso, nós podemos ser os primeiros a fazer o primeiro movimento.
Isto não é uma fantasia. Isto é como as coisas ocorreram muitas vezes no passado, mesmo no passado recente. Nós somos tão esmagados pelo presente, pela correnteza de imagens e histórias nos afogando todo dia, que não é de admirar quando perdemos a esperança.
Eu percebo que de muitas maneiras é mais fácil, para mim, ser esperançoso, porque de muitas maneiras eu tive sorte.
Sorte, por exemplo, de ter escapado das circunstâncias da minha infância. Existem as memórias do meu pai e da minha mãe, que, imigrantes, se conheceram na fábrica, que trabalharam duro a vida inteira e nunca saíram da pobreza. (Eu sempre fico com raiva quando escuto a voz dos arrogantes e afluentes: Nós temos um sistema maravilhoso; se você trabalhar duro você vai conseguir. Como meus pais trabalharam duro! Como eles foram corajosos simplesmente por manter seus quatro filhos vivos nos prédios sem aquecimento do Brooklyn!)
Sorte, por ir de um emprego ruim a outro, até achar um trabalho que eu amo. Sorte, por encontrar pessoas notáveis em todos os lugares, e ter tantos bons amigos.
E também sorte por estar vivo, porque meus dois amigos mais próximos da Força Aérea – Joe Perry, dezenove, e Ed Plotkin, vinte seis – morreram nas últimas semanas da guerra. Eles foram meus colegas no treinamento básico em Jefferson Barracks, Missouri. Nós marchamos juntos sob o sol do verão. Nós aprendemos a voar em Vermont e jogamos basquete em Santa Ana, Califórnia, enquanto esperávamos nossas designações de combate. Então Joe foi para a Itália como bombardeiro, Ed para o Pacífico como navegador, e eu para a Inglaterra como bombardeiro. Joe e eu podíamos nos corresponder, e eu brincava com ele assim como os que voavam B-17s brincavam com os que voavam B-24s – nós os chamávamos de B-Dash-Two-Crash-Fours.
Na noite em que a guerra européia terminou, minha tripulação foi para Norwich, onde todos estavam nas ruas, loucos de alegria, a cidade acesa por luzes que se mantiveram apagadas por seis anos. A cerveja fluía, enormes quantidades de peixe com batata eram enrolados em jornais e distribuídos para todos, pessoas dançavam e gritavam e se abraçavam.
Alguns dias depois disso, minha carta mais recente para Joe Perry voltou com uma anotação a lápis no envelope: “Falecido” – uma despedida rápida demais para a vida de um amigo.
Minha tripulação voou em nosso velho B-17 de volta através do Atlântico, pronto para continuar bombardeando no Pacífico. Então veio a notícia de que a bomba atômica havia sido lançada em Hiroshima, e ficamos gratos – a guerra terminara. (Eu não tinha idéia de que um dia eu visitaria Hiroshima e encontraria pessoas cegas e aleijadas que sobreviveram à bomba, e que eu repensaria esse bombardeio e todos os outros.)
Quando a guerra terminou e eu voltei à Nova Iorque, fui à casa da esposa de Ed Plotkin – ele havia escapulido de Fort Dix na noite antes de ser mandado para o exterior, para passar uma última noite com ela. Ela me contou que Ed havia morrido um pouco antes da guerra terminar e que a criança havia sido concebida naquela noite. Anos mais tarde, enquanto lecionava em Boston, alguém veio para mim depois de uma aula com um bilhete: “A filha de Ed Plotkin quer encontrar você.” Nós nos encontramos e eu lhe contei tudo que podia lembrar sobre o pai que ela nunca viu.
Portanto eu creio que recebi um presente – imerecido, pura sorte – de quase cinqüenta anos de vida. Estou sendo consciente disso. Por anos depois da guerra eu tenho tido um sonho recorrente. Dois homens estão andando na minha frente em uma rua. Eles viram, e são Joe e Ed.
No fundo da minha psique, eu acho, está a idéia de que eu tive tanta sorte e eles não, e eu lhes devo algo. Claro, eu quero me divertir; não tenho desejo algum em ser um mártir, embora eu conheça alguns e os admire. Ainda assim, eu devo a Joe e a Ed não desperdiçar meu presente, usar estes anos bem, não apenas para mim mas para todo o novo mundo que nós todos pensávamos que tinha sido prometido pela guerra que tirou suas vidas.
E assim eu não tenho o direito de desesperar. Eu insisto na esperança.
É um sentimento, sim. Mas não é irracional. Pessoas respeitam sentimentos, mas ainda assim querem razões. Razões para continuar, para não se render, para não fugir para o luxo particular ou o desespero privado. Pessoas querem provas sobre as possibilidades de comportamento humano a respeito do qual tenho falado. Eu sugiro que existem razões. Eu acredito que há prova. Mas demais para falar ao sujeito da pergunta aquela noite em Kalamazoo. Eu precisaria escrever um livro.
Então eu decidi escrever este
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