Texto de Eduardo Pacheco de Carvalho
Enquanto as salas de cinema dos shoppings center se locupletam de pessoas sedentas pela veneração à violência alheia na Tropa de Elite II, as salas de estar Brasil adentro, repletas de carentes de tudo, assistem - por imagem aberta digital - passivamente às ações de cumprimento da função do Estado no Rio de Janeiro, estampadas diuturnamente pela espetacularização da mídia em torno da tragédia regional, transformando-a em questão brasileira. Isto bem a contento da tropa DA elite, a qual agradece o faturamento gerado sobre o infortúnio da população, às custas de sua boa-fé, em prol da audiência desmedida em favor dos anunciantes.
A morte dá lucro. Sua eminência causa prazer. Engorda os meios de comunicação, atraindo magnética e hipnoticamente o manso e manipulável sujeito que, na intranqüilidade de seu ‘lar, acri-doce lar’, solta o brado retumbante mandando os demais calarem-se, para poder então ouvir o ‘som das balas ricocheteando’ em nosso faroeste caboclo, fazendo inveja ao bom e velho Tenente Ricochete (o viúvo de Blau-Blau, outrora morto por outra bala perdida). Os ‘especialistas’ em violência urbana embasbacaram-se, ante o não derramamento de sangue, para tristeza dos editoriais a La Bonner, Datena e afins, ávidos diante da possibilidade de imagens exclusivas, tomadas nos declives dos morros, donde se esperava uma portentosa e rubra Niagara Falls, bem ao estilo das cartilhas hollywoodianas do dever ser.
40 homens na camionete preta, 200 fugiram para o Complexo favelar adjacente: a precisão matemática da notícia gerada dos correspondentes in loco da guerra civil fluminense, faz crer que o panótico existe e está no meio de nós, d.C. Nós os esfomeados, que não nos alimentamos de cultura porque isto não existe no mercado. Não há acesso. Você aí, tem fome de quê? O BOPE dá IBOPE, e seu ex-comandante hoje é ‘comentarista de segurança’ do telejornal da direita. A ala conservadora do país, a manter seu status quo em detrimento da ignorância dos demais, sem medir causas muito menos conseqüências.
Rajadas noturnas cortando o céu da Bagdá Tropical, são o tempero que dá sabor ao prato da mídia, jogado sobre a mesa sem toalha a qualquer hora. Veja, que a desgraça é de graça. & Leia, que a novela é na favela. Não perca, depois dos comerciais, imagens da mansão de Polegar, aquele que abastecia também o mauricinho Ilha e tantos outros plays and boys da zona sul. Este front necessita ser escancarado, explícito, pois senão ninguém acredita. O quê? Bandeiras nacionais hasteadas no alto dos morros? Espetacular! Conquista de território é o que mais agrada aos civilistas, pois a propriedade está em jogo. Como se aquilo fosse um lugar digno de moradas humanas. Como se as autoridades pretéritas não tivessem sido coniventes com a disseminação da miséria, empilhando barracos como dominó.
War II, com helicópteros blindados contra as balas de titânio que saem dos fuzis contrabandeados no país sem fronteiras, com aduanas porosas. Vamos ‘retomar’ o morro, as toneladas de maconha que o ex-Presidente da República sugere descriminalizar, a cocaína que fez da socialite vip uma coitadinha que conseguiu vencer o vício, tão tarde que já não importa quantos morreram para fornecer subsídios para suas narinas fugirem da realidade, ou quantos aviõezinhos foram implodidos no solo antes de levantarem vôo para a vida, que nunca veio. Que rufem os tamborins, ela regenerou-se! Que exemplo de pessoa, digno de uma reportagem no semanário de seu reacionário namorado: faça como a mulher do espelho fez durante toda a sua vida, transforme-se num Tamanduá...no final é só ir ao Cirurgião Plástico e pedir para ele figurá-lo em ‘gente’ de novo.
Neste ínterim, surge no cenário real da fantasia cinéfila ele, o novo herói nacional, o sucessor de Macunaíma. Desta vez com caráter, mas trabalhando em favor da manipulação mental. O Capitão que celebra a morte, antônima ao seu próprio sobrenome. Chefe de uma Instituição co-auxiliar da Força Auxiliar, cuja existência se justifica (o dinheiro público empregado nela se explica), um microcosmo do que existe na macro relação entre o Pentágono e os Talibãs. É o mal do qual a sociedade civil carece. Lá, quem sai vitoriosa é a indústria bélica. Aqui, quem sai derrotado é o ‘cidadão’ brasileiro.
Èmile Durkheim tinha avisado: “o crime é algo de bom, é positivo e saudável para a sociedade, porque ele, além de reforçar os valores de toda sociedade (contrapondo-se a eles, tornando-os mais nítidos, evidenciando-os; é o anti-valor que faz existir o valor, só existindo o mal pode-se conhecer o bem; o antagonismo reforça a existência do protagonista), ele também a oxigena: traz novas perspectivas e paradigmas, novas alternativas comportamentais, é responsável por sua dinâmica, pedindo por novos modelos de comportamento; sem o crime, a sociedade estaria estática, paralisada, estagnada, impedindo a reciclagem, a renovação e a dinâmica social”.
Esta visão, permite imaginar uma determinada “normalidade” na existência de criminosos organizados, como sendo parte da fisiologia anatômica do organismo social, portanto, esta realidade torna-se “normal”. Por sua vez, esta interpretação repousa na (in)consciência das autoridades representantes do povo no sistema democrático, uma certa passividade, cuja inércia tem mais explicações do que possa aparecer na telinha. Por exemplo: alguém tem de frear a população, mantê-la latentes em suas casas ao som do Rei do Plágio e sob as imagens do combate ao narcotráfico, nunca sem deixar de aderir ao ditame comportamental das novelas e realitys; imaginem se este povaréu todo sai às ruas reivindicando seus direitos? Pensar se todos os correntistas forem sacar todo seu dinheiro nos bancos de uma só vez, é impossível para o Sistema. Falo de outra coisa: até a Lua tem o seu lado B.
Então eu pergunto: cadê a outra frente de batalha? Isto é, onde estão os CONSUMIDORES? Adianta expulsar a infantaria sem render o QG? Falo da elite, a qual tem recursos financeiros para consumir as drogas que a marginalia material fornece. A high society do Rio Babilônia - com filiais em todo o país - a marginalia formal dos atores bonitinhos, as cantoras e sua recaídas, coitadinhos. Incluindo os desarmados e encamisados traficantes out-favela, intermediando horror na porta das escolas, colégios e faculdades, apresentando entorpecentes aos seus, aos nossos e aos meus filhos, possibilitando provocar uma solução de continuidade em nossas vidas. Os mauricús e patricêtas infiltrados nas instituições de ensino que abastecem o mundo acadêmico. Parceiros, os usuários do ‘êxtase’ nas raves, das seringas nos bares e do crack nas esquinas. A galera da balada maresia. Filhos e netos daqueles que foram politicamente enfumaçados pela cannabis trazida na década de 70 pela CIA (segundo Glauber) a domar os ânimos de uma nação (até os dele) potencialmente desenvolvimentista. Ou seja, toda aquela turma cuja capitânia o Marcola também apontou. Narco-CPIs, resultados nulos: ineficácia institucional. Não basta atacar os 'beira-mar', é preciso paralelamente nadar até os 'iates'. Enquanto não chegarem neles, os engravatados senhores dos anéis de Sativa, a recidiva será eminentemente fatal.
Idiota seria eu se me posicionasse contrário à ocupação dos morros: discernimento. O que me revolta é a tal produção demasiada e forçosamente artística das operações policiais. A forma pela qual a mídia expõe esse trabalho, com outro intuito, o de disseminar verticalmente o medo sobre a sociedade. E sempre jogando o dolo no colo do mais fraco. E a culpabilidade dos mais fortes, onde fica? Das cúpulas de Abadias e Scarfaces tupiniquins, o que será que será? Quem irá lhes servir, fazer girar seu capital? O que o poder público instituído fará com seus clientes, os dependentes físico-químico-psíquicos agora sem as suas charolas, carreiras, cachimbos e garrotes? Eles não se insurgirão todos contra este resgate de cidadania dos moradores das favelas? Onde será o novo entreposto das drogas? Haverá uma epidemia de crise de abstinência generalizada no topo da pirâmide social? Existirão leitos suficientes nos hospitais e clínicas particulares para abrigar toda essa gente, ou terão que tomar os lugares disponíveis no SUS?
Tudo isto acontecendo, você aí na praça dando milho aos pombos, sem se preocupar devidamente com as eventuais zoonoses. Bem na época em que o Congresso Nacional vota a majoração dos salários de seus nem tão moralmente legitimados integrantes. Tal qual fizeram no tempo do maníaco do parque, de Susana & Cravinhos, dos Nardonis e tantos outros: enquanto a violência é destilada na TV, nos jornais e nas revistas e também enquanto ela sustenta votos para radialistas, o erário público é aviltado, sem espaço para a verdadeira notícia, aquela que mostraria o descaso da falta de classificação da classe política, pela ausência de vontade política no intento do louvor ao privado, deteriorando a consciência do que é público, em prejuízo total das necessidades básicas da população.
As UPPs são exceção a esta regra. Importantes, é óbvio. Mas há de se refletir sobre os gastos que são empregados para instalá-las, mantê-las e ampliá-las. Quantos milhares de reais custam aos cofres públicos a logística destas operações de guerra civil. E responder que este dinheiro poderia ser investido nos direitos básicos do cidadão, como educação, saúde e moradia por exemplo. E que tudo isto está sendo gasto só porque os compradores de droga necessitam alimentar seu vício: é o final da cadeia produtiva que TAMBÉM deve ser combatido, muito porque, sem o consumidor final, este ciclo econômico não existiria. A turma da maresia tem co-participação, num verdadeiro concurso de crimes, onde só os mais vulneráveis juridicamente são penalizados. Os dedos amarelos, as narinas de platina e as veias saltadas permanecem incólumes.
Faço questão de que você aí me chame de careta. Você que dá os seus tapinhas de vez em quando (porque um tapinha não dói, não é mesmo?), suas cafungadas ou seus picos: você está imune. A legislação não foi feita para você. E sim para aquele que o municia. Você que mantém este mercado paralelo da ilicitude, que fomenta o crime organizado, que ajuda indiretamente na desagregação das famílias, no aliciamento da adolescência, descaminho da juventude, está colaborando, através de suas “paz e liberdade” artificiosamente alcançadas, para o retrocesso no processo de desenvolvimento de uma Nação. Tudo pelo seu prazer individual, obtido a duras penas para suas viagens alucinatórias pelas estradas da alienação mental e deterioração espiritual.
Eu, careta, já perdi amigos, já perdi parente, em função do consumo de drogas por parte deles, seja pela morte propriamente dita ou pela morte em vida, a morte afetiva, que talvez seja pior. Mas não perderei jamais minha noção de cidadania, muito menos a preocupação em afastar minhas filhas desta variante do mal. Tem mais gente como eu, gente que não fica em casa. E você, tem fome de quê?
Nosso sistema prisional, o cárcere, está para lá de ultrapassado. Urge repensá-lo, e reservar os complexos penitenciários para os chefões Escobares juntamente com os criminosos do colarinho branco. Os traficantes, assim não seriam, se tivessem tido acesso à EDUCAÇÃO. Instrução, capacitação, qualificação profissional, como queira. É preciso refletir e finalmente investir nisto.
Zeu se fodeu. Sua clientela idem. Em partes. Porque agora eles terão de atravessar a cidade maravilhosa, indo atrás da camionete preta. Não é a minha praia. Sou mais um fuscão preto. Não preciso subir o morro, porque na minha consciência ele não existe. O problema é que os morros existem, diferentemente das bruxas. Eles estão na vida de muitas pessoas, algumas próximas a você. São aqueles que sobrevivem ao paradoxo interno, louvando a tropa DA elite. O filme, é apenas mais um instrumento de controle social. Cabe a você ficar na reta ou não. Digo, na poltrona do cinema do shopping, devorando combos com Coca Zero e babando pelas comissuras labiais. Ou não.
Faça alguma coisa, por elas, as pessoas ao seu alcance, antes que seja tarde. Converse com o dependente mais próximo, orientando-o. Vamos lá, você é capaz, não se acanhe. Mostre a ele que a viagem mais alucinante de todas as viagens, é a própria realidade, isto é: a prória vida. Indiretamente, você será recompensado. E que a gente possa ir ao Alemão para comer einsbein com chucrute, regado a chope, mais nada.
“...Amanhã estarei mudo, mais nada
Amanhã estarei mudo. Mais nada.”
– “Motivo”, poema de Cecília Meirelles, musicado por Raimundo Fagner.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Posso não publicar, baseado nas regras de civilidade que prezo. Obrigado.