Por Muniz Sodré em 7/12/2010 no Observatório da Imprensa | |
Acontece com certa freqüência nas coberturas de grandes eventos, guerras ou catástrofes que uma única fotografia ancore visualmente toda a carga dramática da narrativa midiática. São inúmeros os exemplos, mas até hoje permanece nas retinas de quem tinha idade para acompanhar o noticiário da Guerra do Vietnã a imagem do chefe de polícia de Saigon executando com um tiro na cabeça o jovem vietcong, ainda de mãos amarradas. A foto chocou a opinião pública mundial, muito mais talvez do que os relatos circunstanciados dos combates, em que se morria aos magotes. Seria possível, quem sabe, pensar-se na foto da bandeira nacional hasteada no alto do morro pela polícia como uma imagem representativa da reconquista do Complexo do Alemão pelas forças da ordem. Mas não: essa imagem é um tanto banal, por sua recorrência em outras situações de conflito tanto em episódios de controle da criminalidade interna quanto em batalhas remotas. Além disso, seria eticamente injustificável sugerir, com a ostentação midiática da bandeira, o triunfo puro e simples do Estado sobre apenas uma parcela do tráfico de drogas. Vítima como cúmpliceSim, porque o tráfico, como todo negócio de mercado, supõe oferta e consumo, acionados pela livre vontade dos sujeitos da troca. A bandeira no alto do Alemão sinaliza apenas o lado da oferta – dos vendedores, em suma. Para se justificar moralmente, o verde lábaro teria que ser hasteado também no asfalto, nos bairros de classe média que, à noite, "brilham", como já ironizou um chefe de polícia carioca. Melhor ainda: deveria ser hasteada pelos responsáveis uma bandeirinha na janela de cada apartamento que pudesse proclamar-se livre do consumo desse produto prodigiosamente elástico do ponto de vista da formação de preços e da obtenção de lucros, que é a droga. Assim como na Idade Média européia uma residência podia sinalizar em sua porta que não fora contaminada pela peste negra – a grande dizimadora de populações, fora a guerra –, na Idade Mídia [termo cunhado pelo professor baiano Albino Rubim] em que vivemos, a peste negra é a droga, e não apenas o estupefaciente químico ou vegetal, mas a relação social de droga, induzida pela falência dos valores, pelo extermínio do sentido coletivo e pela metástase consumista. A droga implica um crime em que a vítima é cúmplice do criminoso. É impossível acabar com ela, como proclamam os decadentes nostálgicos da romântica grass dos anos 1960 e 70? Mas então por que tentar acabar com o câncer, a Aids, as pestes? A droga é a peste negra que retorna. Pequeno êxtaseDescartada a imagem da bandeira, voltemos à da perna artificial, que parece muito sugestiva em face da metáfora corrente em comentários de toda ordem: "No Alemão, a polícia quebrou as pernas do tráfico". É fácil passar da foto à metáfora quando se olha para os resultados da ação policial: o território retomado, mortos e presos, um moderníssimo arsenal apreendido, mais de quarenta toneladas de maconha e centenas de quilos de cocaína já incinerados num alto forno – um prejuízo sem precedentes para o tráfico. E a perna nas costas do policial? Um representante da lei especula: "Talvez servisse para esconder droga no interior". Um motorista de táxi: "Não deu para transportar na hora da fuga, e agora basta procurar um bandido perneta". Uma madame de classe média: "Seria igual à do famoso artista?" Um especialista em próteses: "A perna é cara, dá um bom dinheiro". Mensagem de twitter: "Devia ser parte do saque que a banda podre fez nas residências". Está aberta a bolsa dos palpites – ou das apostas. É provável que jamais venhamos descobrir coisa alguma sobre esse fragmento de fato, mero detalhe da cobertura midiática, mas que ficou como uma centelha trágica, porque instalou fotograficamente um ponto enigmático no presente que vivenciamos. Resta-nos, assim, a leitura da imagem. Décadas atrás, Roland Barthes ensinou-nos a ler uma foto: há o punctum (algo que desconserta o olhar, mobilizando a atenção do observador) e o studium (a cultura que preside ao objeto e ao olhar). A perna artificial é desconcertante para o olhar por seu estranho deslocamento, por estar grotescamente fora do lugar. É um órgão sem corpo, como em O Nariz, o satírico conto de Gogol, em que o personagem Koliakov acorda sem o nariz. Deslocado, o órgão reaparece, ilogicamente, no prato de um barbeiro. Estranha, ilógica é a perna artificial nas costas do policial. Mas é sintomática: como no grotesco nariz do conto, há – palavras de Gogol – uma "névoa que encobre o acontecimento". A perna é, aqui, o pequeno enigma, o punctum que desconcerta o olhar. A "névoa" é o studium, a ocultação do fato social, em cuja superfície "surfa" o jornalismo de espetáculo. Mas o que realmente se encobre? Possivelmente a possibilidade de uma indagação sobre a "corporação" do crime – a dos gestores dos milhões de dólares do tráfico, do comércio das armas, do sistema prisional que fabrica monstros com a cumplicidade do Estado, das demandas dos viciados. Essa é a outra "perna" do crime, a que não foi quebrada e que permanece no abrigo dos espaços de vidro fumê, à espreita do pequeno êxtase, ou dos delírios de fim de semana, dos capengas existenciais. Fazer pensarClaro, estamos aqui no plano imaginário das metáforas, induzidas por um foco de análise – a perna, a névoa – que nos permita uma leitura crítica da foto. Como passar do que imaginamos ao real? Talvez admitindo que se sentimos medo por imaginarmos o agigantamento do corpo social do crime, este pode ser imaginário, mas o medo é real. É real o temor, o sério temor cívico é de que, se não se quebrarem as pernas reais da corporação criminosa, quem estará futuramente no alto do Alemão não é o "pé de chinelo" com sua prótese barata, mas o bem vestido lugar-tenente dessa sinistra coligação de polícias, parlamentares e bombeiros denominada "milícia". São muitas as pernas desse estranho corpo híbrido de policial e bandido, que viceja dentro e fora do sistema de segurança do Estado, muito bem informado sobre a vida de cada um dos policiais e articulado com os desvãos podres dos poderes. A leitura da foto é apenas sintomatológica. Em termos analíticos, a sua função é nos fazer pensar. Mas os materiais para a reflexão, mais "comunicáveis" do que os sinais semióticos de que nos valemos, deveriam provir de um jornalismo comprometido com a saúde cívica do socius. E não com a butique jornalística das imagens. |
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
Sintomalogia de uma foto
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