Colaboração de Marise no Portal Luis Nassif
A operação Moshtarak
A operação militar dos aliados em Marjah foi concebida e divulgada como o modelo da “nova guerra” do comandante das forças dos EUA e da OTAN, general Stanley McChrystal, que a impôs ao presidente BHObama. Marjah situa-se em região afegã em que se planta muita papoula, matéria-prima para fabricação de uma cadeia de drogas e aplicações. O Taleban domina em algumas áreas e tem forte presença e apoio da população: 92% dos habitantes da província de Helmand são da etnia pashtun, 40% da população do país e base do Taleban.
A megaoperação, com cerca de alguns milhares de tropas (as citações giram em torno de 15 mil) e entre elas e pela primeira vez contingentes do novo exército afegão, apoio aéreo e armamento pesado, assessores para dezenas de temas e delegados do governo, visava a limpeza (cleaning) da cidade, a expulsão ou morte dos insurgentes e o estabelecimento do poder do governo central com seus organismos. Uma das grandes questões da guerra, para o Pentágono, é o retorno do Taleban, a áreas das quais foi afastado, após a retirada das tropas invasoras.
A primeira operação
Em 26 de março de 2009 uma grande operação, Aabi Toorah, havia sido realizada na região de Marjah, como noticiou o Defence - News, parte do site do Ministério da Defesa britânico. A matéria traz descrição militar técnica detalhada da operação, retrata os movimentos de tropas e armamentos, e em nenhum momento faz referência a uma cidade: trata-se de uma área rural e de uma operação em campo aberto.
A operação Moshtarak serviria para mostrar que: os invasores podem vencer a guerra; o Taleban pode ser expulso das regiões em que detém controle; o governo afegão pode funcionar em lugares em que mostra rara presença; a população afegã pode confiar nos invasores amigos; enfim, que o general McChrystal (do qual se fala como possível candidato do stablishment a presidente nas próximas eleições) é grande estrategista e pode conduzir a permanente política de guerra dos EUA a bom termo. Como objetivo mais elevado, serviria também para alterar a percepção da população dos EUA e de países aliados sobre o desenrolar da guerra.
Uma das diretrizes centrais era e é a tentativa de evitar mortes de civis, que vêm ocorrendo ininterruptamente desde 2001, com maioria de mulheres e crianças, e que sabidamente indispõem a população contra os aliados e fornecem combatentes ao Taleban, muitos deles pagos para combater. Alguns percalços imediatos abalaram a diretriz, como se pode ver aqui.
Para dar magnitude à nova investida, a imprensa foi chamada a colaborar na divulgação dos pontos de vista das forças de ocupação. A expressão “foi chamada” é eufemisno: a imprensa grande sistematicamente reproduz os pontos de vista dos comandantes militares em sua cobertura de eventos de guerra. Há os repórteres embedded, que acompanham as tropas e vivem com elas, mas suas matérias devem ser aprovadas pelos superiores militares, e assim só podem expressar os pontos de vista e as rígidas diretrizes sobre informação do Pentágono.
A falsificação desvendada
Como relata Porter, no dia 2 de fevereiro oficiais da base dos marines na região, em entrevista publicada pela Associated Press, afirmaram esperar combater entre 400 e 1.000 insurgentes na “cidade do sul afegão de 80.000 habitantes”. A Associated Press (AP) vai além: Marjah seria “a maior cidade sob controle do Taleban”, o “ponto central da rede logística e de tráfico de ópio dos militantes”. A AP fornece o número de 125.000 habitantes para a “cidade e vilas anexas”.
A partir daí, o clima de exaltação à operação experimenta consolidação e crescimento, abastecido sempre por informações militares oficiais. O canal ABC News no dia 3 seguinte anuncia que a “cidade de Marjah e seus arredores são densamente povoados, mais urbanos e densos que qualquer outro lugar que os marines tivessem sido capazes de ‘limpar e reter’” (clean and hold). No dia 5 de fevereiro o Guardian londrino falava coisas como “a evacuação de muitos civis da cidade de Marjah e áreas periféricas” e noticiava que milhares de moradores “fugiam da cidade” para a capital da província, Lashkar Gah, e para a segunda maior cidade do país, Kandahar.
Em 9 de fevereiro a revista Time registra a “cidade de 80.000”; no dia 11, é a vez do Washington Post reproduzir a falsificação. No dia 14, um dia após o início da operação Moshtarak, o porta-voz dos marines afirmava que as tropas já estavam “na maior parte da cidade”, e que o inimigo ainda dominava “algumas vizinhanças”. A CNN no dia 15 citava no mesmo artigo a “região de Marjah” (duas vezes) e a “cidade de Marjah” (uma vez), sem qualquer esclarecimento pelo equívoco. Tardiamente, quando a mídia já havia parado de citar a cidade, o The New York Times de 26 de fevereiro ainda falava da “cidade de Marjah, de 80.000 habitantes”.
Uma chamada no seu buscador internet (o Google forneceu 76.300 opções) com os nomes-chave ‘Marjah’ e ‘Moshtarak’ fornecerá milhares de opções, boa parte com mídias e sites e esses números apresentados.
O Instituto para o Estudo da Guerra, um think tank dos EUA que se apresenta como independente e não lucrativo, composto na maioria por ex-militares de patente e estudiosos acadêmicos afinados com o Pentágono, em 11 de fevereiro, dois dias antes do início das operações, trouxe artigo de Jeffrey Dressler com afirmações e dados que corrigem mas confirmam as falsas informações da imprensa.
“A missão é retomar a cidade de Marjah na província de Helmand, uma fortaleza Taleban e centro da rede de ópio”. Cita 15.000 tropas envolvidas. “A cidade de Marjah situa-se no sul do distrito de Nadi Ali. [...] Marjah está a 25 milhas [40 km] a sudoeste da capital provincial Lashkar Gah. Relatos da imprensa sugerem que Marjah abriga de 50.000 a 80.000 habitantes, mas eles parecem se referir ao distrito inteiro de Nad Ali. A população da própria Marjah e vilas periféricas é certamente menor que 50.000”.
Na segunda semana pós-invasão, o site oficial das forças invasoras apontava que os moradores da “região” recebiam as tropas como uma “nova aurora”. O Times online de 20 de fevereiro reproduzia a voz de um tropa afegã: “Nada vai me dar mais prazer que combater o Taleban” . E acrescentava: “The police will be the first taste of civilian government that Marjah’s 80,000 residents have had in years”.
A BBC (18/2), que expressa a voz do governo britânico sob o manto de ‘independência’, expõe boa parte das questões. Afirma: “A ofensiva conjunta envolve forças americanas, canadenses, britânicas, dinamarquesas e estonianas”. Mais adiante: “Analistas afirmam que [a operação] coroa a nova abordagem de ‘contrainsurgência’ do comandante general Stanley McChrystal. A população local foi avisada sobre o que viria e, assim, poderia proteger-se e ficar longe da batalha”.
Em termos práticos, os agricultores que não fugiram não devem nem podem sair de suas casas para trabalhar: podem ser confundidos com combatentes talebans. O que se sabe é que os moradores de Marjah estão furiosos com a nova aurora; perdem colheitas e equipamentos, vêem familiares e próximos serem mortos, vivem sob ameaça e terror. Não é possível ficar longe da batalha: a guerra está na porta de casa.
Em língua portuguesa
Apenas mais um exemplo do exterior: o site O Diário, de Angola, sem data visível, registrava: “O porta-voz do governador de Helmand, Daud Ahmadi, explicou que as forças internacionais e afegãs capturaram até agora 2500 quilos de explosivos no âmbito da ofensiva ‘Operação Moshtarak’ contra a localidade de Marjah, com 80 mil habitantes e onde se escondem centenas de rebeldes”.
Em 14 de fevereiro o Estadão noticiava, sob o título “Ofensiva da OTAN em Marjah pode levar semanas”: “O general Larry Nicholson [...] afirmou que pode levar semanas para que a ofensiva ]...] tome o forte do grupo fundamentalista Taleban na cidade de Marjah”. A cidade havia se tornado fortaleza. Uma semana depois, 21, a notícia era: “Ofensiva em Marjah pode levar meses, diz OTAN”. A notícia jogava a vitória para o futuro e não falava mais em cidade, só em região. Mas traz dado interessante: “Representando um golpe para a Otan, o primeiro-ministro da Holanda disse hoje que os 1,6 mil soldados holandeses deixarão o Afeganistão provavelmente este ano, em consequência da oposição doméstica à presença das forças do país no Afeganistão”.
Mas o troféu de hilaridade fica, como é de esperar, com a Folha, que trouxe dia 25 de fevereiro (negrito meu) em seu portal: “A bandeira do Afeganistão foi hasteada nesta quinta-feira em sinal de vitória contra os talibãs em Marjah, sul do Afeganistão, epicentro da ofensiva 'Mushtarak’”.
É a rendição total da cidade de Marjah, fortaleza (general Larry Nicholson) e epicentro (jornalista Otavio Frias Filho), a Marjah que, como a batalha de Itararé e o detetive Bill Ferrer, nunca existiu. E a Folha, sem o saber, já havia mostrado a contrafação, na segunda foto da Folha online de 13 de fevereiro, com a legenda: “Afegão observa chegada das tropas internacionais de sua casa, na cidade de Marjah, cenário de ofensiva”.
Não há cidade.
WORD WAR
Estranhezas e deslizes imperiais
Há algo de aparência inacreditável nessa falsificação pública de uma realidade facilmente decifrável, e a explicação só pode ser buscada na consideração do jogo atual de forças e prepotências e no papel da informação e da imprensa ocidental com relação ao império. É inaceitável, dada a importância e a envergadura da operação, que nenhuma grande mídia tenha enviado ao menos um repórter à fictícia cidade de Marjah. Mais estranho ainda é que essa mesma grande mídia sequer tenha tido a curiosidade de consultar fontes.
Nem que fosse a corriqueira e popular Wikipedia, para constatar que a capital da semi-desértica província de Helmand (1 milhão 400 mil habitantes, uma das 34 províncias do país de 32 milhões de membros de várias etnias), a cidade de Lashkar Gah,tem 200.000 habitantes, e que as duas outras cidades citadas no capítulo Districts são Sangin, com 14.000 habitantes, e Musa Qala, à qual é atribuído um máximo de 20.000 habitantes. Sangin e Musa Qala, centros dos distritos de mesmo nome, são as duas únicas cidades chamadas capitais dos distritos. Ainda na Wikipedia, dos 13 distritos da província de Helmand, 4 têm menor população que a atribuída à cidade de Marjah; e 3 deles, Washir, Dishu e Kanashin, abrigam 31.500, 29.000 e 17.500 habitantes. A região de Marjah nem sequer é considerada distrito, pertence ao distrito de Nad e-Ali, o mais populoso.
A mesma Wikipedia, no verbete recente Marja, apesar de se confundir chamando Marja de district, mas inserindo a região no District of Nad e-Ali, informa corretamente a população entre 80 mil e 125 mil habitantes espalhados por área de duas centenas de quilômetros quadrados. O verbete cita os artigos de Gareth Porter e Jeffrey Dressler.
A falsificação tem como pano de fundo a necessidade de apresentar a vitória de Marjah como uma nova face da guerra: eficaz, eficiente, humana, voltada para o desenvolvimento do país, o fortalecimento do governo e a consolidação da democracia, e o país finalmente livre dos combatentes que resistem aos invasores e ameaçam a estabilidade regional e a segurança do império.
O Pentágono e o governo BHObama acham-se empenhados em alterar a percepção sobre a guerra, tanto da parte dos afegãos, quanto, e principalmente, dos cidadãos dos EUA, crescentemente em oposição à sua aventura afegã, em consonância com a maioria dos públicos dos países europeus envolvidos na ocupação.
A produção de informação sobre guerras há muito deixou de ser atribuição da grande imprensa, que se limita a reproduzir de forma acrítica e automática as fontes oficiais e agências e fazer circular fiapos de verdade em meio a montanhas de contrafações organizadas e sujeitas a normas elaboradas por variados especialistas. Extremo cuidado é dedicado ao uso de palavras e suas repercussões emocionais e psicológicas; palavras-chave e conceitos atuais: terrorista e terrorismo, Al Qaeda, direitos humanos, combatente inimigo, suspeito, comunismo, democracia, liberdade, stalinismo, fanatismo, etc. Paz não faz parte de nenhuma lista, nem se fala de paz hoje.
País amigo
Aos países amigos jamais se atribuem certas características sempre apresentadas como exclusivas dos inimigos. Não que, por exemplo, a Arábia Saudita não seja uma espantosa e assassina ditadura de cortes de partes do corpo de vítimas e mutilações variadas, das mais repressivas da história, que chega a requintes de, por exemplo, mulheres não poderem dirigir autos e serem obrigadas a pedir autorização a seus mandantes masculinos até para ir ao médico.
A sua exposição na mídia inexiste com essas características: a vaga é ocupada sempre e todo o tempo pelos inimigos Irã, Cuba, Mianmar, China, Cuba, Cuba, Cuba, etc. A falsificação da informação é acompanhada pela exposição também falseada. Já antigos inimigos que entram em acordo com o império e seus aliados desaparecem: após acordo com os EUA, o enlouquecido ditador líbio Muammar al Khadafi há anos sumiu do noticiário. A exposição excessiva de aspectos do inimigo e a supressão sistemática dos aspectos próprios e dos amigos funciona de forma anestesiante: com a repetição, fixa-se o que se quer.
Cuba e a Folha: Word War em ação
Uma clara amostra desse jogo da mídia, de esconder certas características e ressaltar as que interessam aos seus reais mandantes, vem sendo exposta ao máximo nível de repugnância pela Folha (Estadão também) sobre a questão dos “prisioneiros políticos” cubanos e o comportamento do governo Lula. Na verdade, a mídia é sócia menor nesse jogo, e o atual caso cubano é significativo. Desde a visita de Lula precedida pela morte de um dissidente, a Folha insere editoriais, artigos, comentários de colunistas, pequenas notas e reportagens cheias de acusações a Lula e representantes do governo. O objetivo é: atingir Lula e expor a conivência do seu governo com a ditadura cubana e com a “tortura e morte de ‘dissidentes’ em masmorras nas mãos dos carrascos comunistas”.
É sempre preciso ler a grande mídia, disponível na rede em milhares de sites. É preciso ler até mesmo a mídia periférica de tiragem inexpressiva de 300 mil exemplares como a Folha; o país tem 190 milhões de habitantes. A maioria dos “dissidentes”cubanos presos é composta, ou de criminosos que em qualquer país seria presa, e, em muitos, executada, ou (são 75) de agentes pagos pela CIA para sabotagens e crimes diversos. Esses 75 nos EUA seriam inevitavelmente considerados terroristas e condenados à morte.
Houve processo em 2003, a acusação apresentou documentos fartos da interferência dos serviços de inteligência dos EUA no país. Há uma ditadura hereditária e prisioneiros de consciência em Cuba, e é necessária ação enérgica mundial para abrir as grades. Mas há prisioneiros de consciência em dezenas de países; a única opção possível é uma campanha humanitária mundial. A obsessão com Cuba serve a outros interesses.
Este é o fato omitido sistematicamente: muitos dos ‘dissidentes cubanos’ apresentados pela mídia e pela Folha como prisioneiros de consciência são apenas criminosos comuns ou responsáveis por atos de sabotagem e assassinato. Ingênuo pensar que o bloqueio de 50 anos não tenha sido e seja acompanhado de atos permanentes de destruição, inda mais por se tratar do país que opera a mais letal máquina de guerra e assassinatos da história humana.
O mais conhecido atualmente desses agentes é o criminoso duas vezes condenado por agressão, apresentado como psicólogo e jornalista Guillermo Fariñas, que aliás não é um prisioneiro, vive em sua casa, em mais um de seus jejuns em prol da liberdade. Teve condenação por duas agressões, uma na clínica em que trabalhava, e que afetou severamente o rosto e a saúde de uma mulher. Na prisão, tornou-se um dissidente a serviço; agora, é talvez o único dissidente do mundo que faz protestos profissionais em casa.
São todos iguais?
A campanha da imprensa grande nacional, com Folha e Estadão à testa, sobre a pretensa omissão do governo brasileiro com relação à questão cubana é ridícula. Seria até interessante que Lula tomasse a iniciativa de chamar Raul Castro e condenar Cuba pela ditadura de décadas e pela prisão de reais dissidentes políticos, mancha em sua história. Mas junto com isso seria necessário chamar BHObama às falas por sua política (como ele mantém e amplia a política do regime anterior, é agora sua) de tortura sistemática ao redor do mundo, e inclusive na ilha de Cuba. Afinal, por que Lula iria denunciar a tortura de Raul Castro e omitir a de BHObama? Se assim agisse, o governo Lula iria se confundir com a Folha, e isso seria intolerável para ambos.
E há uma diferença fundamental: Raul afirma que em Cuba prende-se, mas não se tortura; há maus tratos, como em qualquer lugar. A afirmação ainda não foi desmentida. BHObama jamais poderá afirmar algo semelhante. O centro de torturas científicas de Guantánamo (Gitmo), localizado na ilha de Cuba, em território cubano apossado pelo governo dos EUA há décadas, fartamente denunciado e documentado (em juízo nos EUA, no Reino Unido, em vários países), é claramente superior aos campos de extermínio alemães em que a tortura era rotina. Os judeus eram exterminados de forma rápida; afinal, eram ‘subhomens’para seus algozes, e havia sempre mais candidatos às vagas.
Já BHObama mantém adultos e jovens presos sem acusação nem culpa formada sob regime de isolamento e tortura há mais de oito anos. E até crianças de creche sabem que a tortura em Guantánamo é científica: há assessores de psicologia, farmacologia, medicina etc., que elaboram teorias já divulgadas sobre os ‘limites de resistência’ física e psicológica dos prisioneiros. As teorias são testadas e refinadas todo dia com os prisioneiros. A política do governo, além do mais, é ineficaz para os fins a que se destina, a coleta de informação, como apontam especialistas do ramo. Adolph Mengele deve estar rindo em algum lugar. O governo brasileiro é omisso: não denuncia maus tratos a presos em Cuba. E a Folha é omissa também ao esconder as torturas dos seus inspiradores ideológicos. Suas forças se espalham mundo afora, em desaparecimentos, torturas e assassinatos.
[As prisões de tortura e extermínio dos EUA espalhadas pelo mundo e em navios e bases são um mundo masculino; as mulheres, poucas, que habitam esses territórios insurgentes lá nos seus países são mortas. Uma das mais refinadas técnicas de tortura de Gitmo é prender um homem nu numa caixa pequena e escura em que não tenha a menor capacidade de movimento, e junto com ele na caixa colocar exemplares vivos que lhe sejam pessoalmente repelentes (insetos, baratas, ratos, lagartos, lesmas, taturanas, moscas, vermes... cada pessoa tem os seus) e deixar o rosto e o corpo do homem sujeitos aos seres repelentes, com atenção aos tempos. É bom retirá-lo em um tempo entre o momento em que o homem estaria ‘quebrado’ (a função dessa técnica é ‘quebrar rapidamente’ um homem) e o momento em que, ultrapassado algum ponto de resistência e horror, ele teria preferido a morte. Impossível não lembrar da sala 101 da masmorra do poder no romance “1984”, de George Orwell, e de suas torturas personalizadas.]
A quem serve tudo isso?
Há prisioneiros políticos, há ditaduras que têm de ser denunciadas e combatidas, há necessidade de cidadãos organizados na condenação. Mas o uso fraudulento e intensivo de um caso particular entre centenas, em dezenas de países, para atingir ilegitimamente o governo de um presidente eleito duas vezes e aprovado, e também sua candidata, é inequivocamente criminal. A direita e seus candidatos estão em desespero, mas mesmo assim é necessário manter-se em patamares mínimos de civilidade e decência.
O que não transparece desse sórdido noticiário tendencioso é a resposta à pergunta básica: além do óbvio objetivo interno de destruição do governo Lula e de sua candidata, a quem aproveita? A que forças serve essa sistemática falsificação? O governo BHObama, a par de sua fraqueza perante o Great Game e seus mandantes e de seus problemas internos, vem empreendendo investidas que o afastam das práticas fascistas do regime Cheney-Bush. A reaproximação tímida, incipiente e dificultosa com Cuba é um avanço, após mais de 50 anos de bloqueio obsessivo e criminoso à economia, à população e à segurança da ilha.
A Folha não responderia, mas a pergunta insiste: a que interesses superiores e a quais forças organizadas aproveita manter clima de histeria, atrapalhar a normalização das relações entre EUA e Cuba e colocar obstáculos à pessoa de Lula como reconhecido futuro coordenador da nova organização latino-americana sem Canadá e EUA? A Folha talvez ignore, mas BHObama sabe que, logo após a posse, recebeu visitas de altos players de serviços de Inteligência e foi informado de que, se insistisse em levar adiante na justiça a responsabilização de autoridades e operadores pelas torturas empreeendidas em todo o mundo por agentes da CIA e militares, que poderiam envolver centenas de autoridades, agentes e oficiais, sua segurança não poderia ser garantida. BHObama desistiu.
BHObama também sabe que na parede da Sala Oval a partir da qual governa, ou tenta governar, já esteve pendurado um retrato de um presidente que não chegou ao fim do mandato, John Fitzgerald Kennedy. Morreu com tiros na cabeça, talvez pelas mãos das mesmas forças que se opunham, entre outras questões, à normalização das relações com Cuba. Kennedy iniciou negociações após a fracassada tentativa de invasão da baía dos Porcos em 1961, por tropas mercenárias treinadas nos EUA e agentes de seus serviços de Inteligência. A crise dos mísseis posterior com a URSS moveu a questão para outros rumos.
A Folha se insere na corrente contrária à normalização democrática das relações entre os países da América Latina e com os EUA, com suas campanhas antiLula, contra Cuba e Venezuela e seus associados. Com o tempo vem firmando posição e se transformando numa mídia right-wing nacional, porta-voz principal da direita brasileira e internacional no país.
O jogo do poder e a mídia
O surrado exemplo da falsificação oceânica de informações sobre o Iraque, anterior à invasão de 2003 pelas tropas de EUA-UK, foi de maior magnitude que este recente caso de Marjah; no entanto, ecoou durante mais de um ano pela mídia, e foi levado inclusive ao Conselho de Segurança da ONU por um secretário de Estado. O azar de Saddam Hussein, e motor da questão, foi governar um país com mares de petróleo: fosse, ao invés, o maior produtor de alfaces do planeta, morreria velho.
Os principais passos foram, e continuam sendo, a difusão de falsas informações (no caso iraquiano, armas de destruição em massa, aliança Al Qaeda-Saddam, busca da bomba nuclear etc.), a produção de provas falsificadas para lhes conferir sustentação, e a repetição à exaustão pela mídia, e a censura à exposição das vozes contrárias. Nada que Joseph Goebbels não tivesse ensinado e praticado.
Para muitos analistas (veja centenas de exemplos aqui), é relevante ressaltar, a manipulação da informação em plano mundial é uma política de Estado. A informação foi, desde o início do século XX, com os bolcheviques e depois os nazistas e os aliados ocidentais, encarada como arma estratégica, e é hoje um item tão importante quanto o número e a qualidade de equipamentos e de tropas em ação num teatro de guerra.
Assim, Porter, como vários dos analistas dos exemplos acima, chama atenção para o fato de, embora registrada a partir de porta-vozes dos marines e das forças conjuntas da OTAN no Afeganistão, essa cadeia de falsificações do caso Marjah ser fabricada nos altos escalões de tratamento da informação do Pentágono. É tarefa de milhares de profissionais de áreas variadas que as planejam, elaboram e difundem pela grande mídia mundial.
Porter cita o Manual de Campo da Contrainsurgência do Pentágono, que prescreve uma atividade central das ‘operações de informação’ em guerras como a afegã: “estabelecer a narrativa da contrainsurgência”. Conforme consta do Manual, a atividade é feita nos “higher headquarters”, comandos mais altos, e não em campo. O Manual acrescenta ainda que o noticiário da mídia “influencia diretamente a atitude de públicos-chave”, e cita “uma guerra de percepções [...] conduzida continuamente com o uso do noticiário da mídia”. Militares costumam falar claro. Às vezes são traídos por coincidências: na sigla tenebrosa brasileira Doi-Codi, Doi significa Departamento de Operações de Informações.
Não existe mais informação sobre guerras: existe a guerra da informação, a Word War. O caso Marjah desvenda, em pequeno véu, acontecências dessa guerra. A Folha mostra outra faceta da mesma guerra.
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