por Alexandre Haubrich, jornalista, editor do blog Jornalismo B
Aos quatro anos de idade, Edson Teles entrou em um prédio na Rua Tutóia, no bairro
do Paraíso, em São Paulo para encontrar os pais, que não via há alguns dias. Simpáticos
nomes o da rua e o do bairro. Edson ouviu a voz da mãe chamando seu nome, mas,
quando se virou, não reconheceu o rosto e o corpo que portavam aquela voz. Em
seguida, encontrou o pai, em outra sala, sentado em uma cadeira aparentemente normal
para uma criança. Mas havia cintas de couro nos braços da cadeira. Era 1972, e Edson
visitava os pais no DOI-CODI, centro da repressão da Ditadura Militar brasileira. “Meu
filho perguntou 'por que o pai é verde?' e minha filha perguntou por que eu estava azul”,
contou anos atrás a mãe de Edson, Maria Amélia de Almeida Teles.
Na última semana, em um seminário em Porto Alegre, Edson desabafou: “me
envergonho de ser brasileiro. Oferecemos o Brasil para ser paraíso dos torturadores.
Se torturarem em nome do Estado, aqui são anistiados”. E Edson e sua irmã Janaína
não são um caso raro. Muitas crianças viram seus pais serem torturados pelo Estado
brasileiro que, entre 1964 e 1985, impôs a seus cidadãos o fim da cidadania e de
qualquer possibilidade de dignidade. Socos e pontapés eram carinhos. A violência vinha
através de choques elétricos por todo o corpo, afogamentos, fuzilamentos simulados.
Homens e mulheres, muitas vezes nus, eram pendurados em paus-de-arara, humilhados
de todas as formas, reduzidos a nada. E se Edson e Janaína não são um caso raro, e
tampouco a tortura a que foram submetidos seus pais foi um caso raro, também não foi
a tortura a única forma pela qual cidadãos brasileiros foram agredidos por seu próprio
Estado.
Assassinatos e sequestros também eram comuns. Sim, hoje ainda são. Mas, naqueles
anos, quem cometia esses crimes era o Estado, e os cometia como Estado, não apenas
através de indivíduos que corrompiam as instituições. O Estado e seus agentes eram
os criminosos, os assassinos, sequestradores, torturadores. Brasil nunca mais. Muitos
cidadãos brasileiros foram obrigados a fugir do país. Deixaram para trás seu lugar e
seus familiares, amigos, colegas. Deixaram para trás toda uma vida para começarem a
construir outra longe daqui.
O silêncio, para os militares e civis que referendaram o Golpe de 1964, era a causa
pela qual lutavam. Gritos? Permitidos apenas nas salas de tortura, e apenas gritos de
dor. Parte significativa da imprensa apoiou a Ditadura de seu início até as portas de seu
fim, quando percebeu que, ou abandonava o moribundo, ou morreria junto. A outra
parte da imprensa, porém, a parte séria, viu muitos de seus representantes torturados,
desaparecidos ou acuados. O fetiche do silêncio.
Derrubada a democracia que se aprofundava no governo João Goulart, os golpistas
não queriam mais saber de política, apenas de poder. Um professor falando sobre
política em aula poderia ser denunciado por um aluno como terrorista. A mesma
coisa em conversas de bar ou de qualquer lugar. O risco de tortura, assassinato
ou “desaparecimento” sempre iminente. Se antes a política já era afastada do povo, em
64 o Estado tirou do povo o direito de se aproximar da política.
Com a chamada “abertura democrática” da década de 1980, não acabou-se
verdadeiramente com a Ditadura. Até hoje suas sobras contaminam a vida dos
brasileiros. A herança da Idade das Trevas tupiniquim está no autoritarismo e na
violência policial, na despolitização popular, na agressividade da direita, na ignorância,
no conservadorismo moral preconceituoso, racista, machista e homofóbico. Esses
resquícios sobrevivem também no imaginário demente de alguns políticos e alguns
militares que anseiam pela reinstitucionalização de todos esses absurdos.
Continuam dominando importantes setores do país as pessoas que financiaram e
apoiaram de diversas formas a Ditadura Militar. Grandes empresários, destacados
políticos, graduados militares. Os donos da comunicação brasileira também entram
nesse bolo. É por tudo isso que, enquanto nossos países vizinhos agem para limpar a
sujeira deixada por suas respectivas ditaduras – sem varrer essa sujeira para baixo do
tapete –, aqui o silêncio segue imposto.
É para punir os responsáveis pelo massacre da cidadania brasileira que é necessário
revisar a Lei da Anistia, assinada em 1979, que, ao mesmo tempo em que beneficiou
quem lutava por um Estado democrático, absolveu automaticamente as pessoas que,
em nome do Estado brasileiro, cometeram todos os tipos de crime. A tortura e o
assassinato em nome do Estado foram permitidos, o que configura uma arbitrariedade
e um desrespeito aos brasileiros representados por esse Estado. Os cidadãos que
lutaram contra a Ditadura Militar já foram fortemente punidos das mais diversas formas
ainda durante aquele período. Os representantes dessa Ditadura, não. Além disso, a
Lei da Anistia foi aprovada pelos opositores ao regime com uma arma na cabeça. Da
mesma forma que obtinham confissões através da tortura, os governantes de então
impuseram sua própria imunidade como condição para deixarem o povo brasileiro ser
re-empoderado minimamente.
A abertura imediata de todos os arquivos da Ditadura Militar e a ampla divulgação
de seu conteúdo, assim como o trabalho de resgate histórico do que vivemos, é outra
obrigação do Estado brasileiro. Os cidadãos têm o direito de conhecer sua própria
história, a história de seu país. Se o Estado é uma instituição da sociedade, e esta é
formada pelo conjunto dos indivíduos, o Estado somos nós, e nós temos o direito de
conhecer a verdade e o dever de lutar por esse direito. Para que não corramos o risco
de retornar àquela situação de terror precisamos saber detalhadamente o que nos levou
a ela o que a manteve por tanto tempo. Só assim, com a punição dos gerentes da nossa
Idade das Trevas e com o direito à verdade, poderemos realmente encarar de frente as
heranças daquele tempo que ainda nos assombram.
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